Um dia depois de deixar o cargo de secretário nacional de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira levou à web uma carta de despedida. Nela, encontrou uma forma poética para explicar a sua saída. Em vez de batizar de Jair Bolsonaro o obstáculo que o impediu de continuar no Ministério da Saúde, recorreu a Carlos Drummond de Andrade: "No meio do caminho tinha uma pedra..."
Num texto claro e suave, sem caneladas, o personagem resumiu o prejuízo que a troca de dois ministros da Saúde em plena pandemia provocou: "Estávamos à frente pelo menos duas semanas em relação aos demais países da Europa e Américas, ampliando a capacidade laboratorial, leitos, EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] e Respiradores."
Nesse ponto, Wanderson escondeu Bolsonaro atrás dos versos de Drummond pela primeira vez: "No entanto, como dizia o poeta e conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, 'no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho'." (leia a íntegra da carta)
Enfermeiro epidemiologista, Wanderson tornou-se um rosto conhecido dos brasileiros durante a gestão do ex-ministro Henrique Mandetta. Desde o início da crise do coronavírus, participava de entrevistas diárias com jornalistas. Ao recordar a experiência, enalteceu o ex-chefe e a equipe formada por ele.
"Não poderia esperar que a maior pandemia do século chegaria às minhas mãos, no auge de minha carreira, com a melhor equipe e o melhor ministro, para planejar a estratégia, pensar em ações, definir objetivos, metas, comunicar diariamente o que sabíamos, o que não sabíamos e o que estávamos fazendo para aprender sobre a nova doença, salvar vidas e empregos. Esta sempre foi a orientação de Mandetta."
Há 40 dias, no auge da desavença entre Mandetta e Bolsonaro, Wanderson pediu demissão. "Pelo bem de minha saúde e de minha família, era hora de deixar o caminho livre para novas ideias, novas pessoas e novas estratégias", escreveu na carta. Entretanto, a pedido de Mandetta, foi ficando.
Tomado pelas palavras, Wanderson estava disposto a esticar sua permanência na gestão do substituto de Mandetta. "O ministro Nelson Teich seguiria pelo mesmo caminho." Após um convívio de duas semanas, Teich convidou-o a permanecer no cargo. "Creio que faríamos um ótimo trabalho, mas aí entra o princípio da impermanência..."
Abstendo-se de citar Bolsonaro, cujos caprichos anticientíficos empurraram Teich em direção à porta de saída apenas 28 dias depois da posse, Wanderson recorreu a Drummond pela segunda vez: "Lamentavelmente [Teich] não teve tempo de mostrar seu trabalho, pois novamente 'tinha uma pedra no meio do caminho'."
Guindado à condição de ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello não enxergou utilidade em convidar Wanderson para uma conversa sobre a transição no seu setor. O que não impediu o técnico de ser gentil com o militar: "Desejo sucesso na condução desse grande desafio. Lamento não ter tido a oportunidade de lhe apresentar os elementos das decisões adotadas na minha gestão."
Wanderson preocupou-se em não deixar o general no escuro. Documentou tudo num "Relatório de Gestão 2019-2020, publicado no site da SVS e entregue pessoalmente" a Pazuello. "É importante atentar para outros problemas além da covid-19", escreveu na carta.
Na despedida, Wanderson fez um derradeiro alerta: "Sobre a resposta à Pandemia de covid-19, seria muito bom conhecer o contexto de cada decisão que foi tomada, pois nem tudo que se vê é o que parece, nem tudo que parece é o que realmente é. Há muita história em cada decisão que deve ser contextualizada ao seu tempo."
Nesta terça-feira, dia em que a carta de Wanderson foi publicada na internet, o Ministério da Saúde contabilizou 391.222 diagnósticos positivos para o coronavírus. O número de mortos somou 24.512.
Os números, por eloquentes, suscitam uma interrogação: por que o governo trocou dois ministros da Saúde em menos de um mês e desmontou a equipe técnica do ministério? Drummond explica: "Havia uma pedra no meio do caminho.
No momento, a pedra negocia com o centrão a indicação de um substituto para Wanderson. Cogita-se nomear um apadrinhado do mensaleiro Valdemar Costa Neto, um ex-deputado condenado por corrupção que controla o PL (ex-PR) como se fosse um cartório.
Por Josias de Souza
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