sábado, 30 de setembro de 2023

Lula precisa se deixar filmar e fotografar usando um andador



Submetido a uma cirurgia para implantação de prótese no quadril direito, Lula passa bem. Optou por não se licenciar do cargo. Estima-se que receberá alta hospitalar até terça-feira. Nas próximas semanas, despachará no palácio residencial do Alvorada. Chefe da equipe médica que operou o presidente, o doutor Giancarlo Polesello, informou que a recuperação do paciente incluirá a companhia de um andador. Lula deve ao país uma divulgação massiva de imagens da utilização do equipamento.

Na última terça-feira, falando para o programa oficial "Conversa com o Presidente", Lula declarou: "Vocês não vão me ver de andador, de muleta, vocês vão me ver sempre bonito como se eu não tivesse operado." A declaração foi ofensiva, incoerente e irresponsável. Ofendeu porque o capacitismo, termo que define a discriminação praticada contra pessoas com deficiência, desrespeita os brasileiros cuja mobilidade depende de equipamentos como andadores e cadeiras de rodas.

A falta de coerência decorre do fato de que Lula incluiu no grupo que subiu a rampa ao seu lado no dia da posse uma pessoa com deficiência. Fica a impressão de que a celebração da diversidade era apenas cenográfica. A fala foi irresponsável porque um presidente da República não é apenas uma faixa ou uma casaca. É preciso que por trás da pose exista uma noção qualquer de compromisso público.

A Presidência oferece àquele que a ocupa uma tribuna especial. Algo que o ex-presidente americano Theodore Roosevelt chamou de bully pulpit —púlpito formidável, numa tradução livre. De um bom presidente, dizia Roosevelt, espera-se que aproveite a vitrine privilegiada para irradiar confiança e bons exemplos.

Para converter declarações inaceitáveis em exemplo Lula precisa se exibir diante de fotógrafos e cinegrafistas usando um andador. Longe de enfeiar, o equipamento embeleza seres humanos que lutam para se manter íntegros e integrados.

Meta de Barroso é transformar Supremo de espelho em janela



Num discurso feito de otimismo e sutileza, Luís Roberto Barroso virou a pagina do 8 de janeiro para enxergar o capítulo seguinte da história: "As democracias contemporâneas precisam equacionar e vencer os desafios da inclusão social, da luta contra as desigualdades e do aprimoramento da representação política." Ou seja, não basta vencer o que Barroso chamou de "culpados de sempre". É preciso reconhecer que "extremismo, populismo e autoritarismo" se assanham porque encontram material nas debilidades do regime democrático.

Havia no pronunciamento de Barroso materia prima para um programa de governo. Mas interessa saber o que o substituto de Rosa Weber oferece em termos práticos como contribuição do Supremo Tribunal Federal para a melhoria do regime. Ao enumerar suas prioridades, Barroso escorou sua gestão em três estacas: o "conteúdo", a "comunicação" e o "relacionamento".

Isso inclui, segundo ele, "aumentar a eficiência da Justiça" e "melhorar a comunicação com a sociedade" para desfazer "incompreensões e mal-entendidos". De resto, disse Barroso, "o Judiciário deve ser técnico e imparcial, mas não isolado da sociedade." O ministro quer que o Supremo endergue e ouça "o sentimento social." Fácil de falar, dificílimo de realizar numa presidência de escassos dois anos.

Eficiência nas decisões, didatismo na comunicação e sensibilidade no relacionamento com a sociedade. Barroso parece estar à procura de um antídoto capaz de livrar o Supremo de um veneno que Bolsonaro inoculou nas instituições brasileiras: a desconfiança. Todo o resto depende disso.

O ministro resumiu seus propósitos numa frase: "A gente na vida deve ser janela e não espelho, ter a capacidade de olhar para o outro, e não apenas para si mesmo." Foi como se Barroso aconselhasse os outros dez ministros do Supremo a questionar os seus botões sempre que olharem para o espelho: e se a vida for do outro lado? Aperfeiçoando-se, o Supremo talvez contribua para melhorar a democracia, esse extraordinário modelo de organização social que, no Brasil, é composto de três poderes e milhões de impotências.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Eleição de conselheiros tutelares: entenda o que faz um conselheiro e como proteger crianças e adolescentes


Eleição de conselheiros tutelares: entenda o que faz um conselheiro e como atuar na proteção de crianças e adolescentes. — Foto: Fábio Tito/g1

Denunciar uma agressão ou situação de abuso contra criança ou adolescente é responsabilidade de qualquer cidadão. No entanto, após a denúncia ser realizada, quem entra em ação para constatar se existem irregularidades e zelar pela integridade dos jovens, são os membros do Conselho Tutelar.

No próximo domingo (1º), moradores do Vale do Paraíba e de todo o país vão votar para eleger conselheiros tutelares. A votação para os representantes será feita, pela primeira vez, por meio de urnas eletrônicas.

Os eleitos têm de trabalhar diariamente para garantir a preservação dos direitos das crianças e dos adolescentes. Diante da importância do cargo, às vésperas das eleições o g1 reuniu algumas informações para explicar quais são as responsabilidades de um conselheiro tutelar.

Imagem de arquivo - Crianças sob proteção em abrigo — Foto: Maurício Barbosa /g1

Proteção

De forma geral, a palavra que melhor define a função de um conselheiro tutelar é proteção. O Conselho Tutelar é um órgão que averigua se crianças e adolescentes são vítimas de eventuais situações de abuso e violência, para poder tirá-las dessa situação de risco e garantir que seus direitos sejam atendidos.

A função foi determinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990. É função do conselheiro tutelar garantir o cumprimento do ECA ao atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e atuar em conjunto com pais e responsáveis.

De acordo com o ECA, são atribuições do Conselho Tutelar atender crianças e adolescentes com direitos violados ou ameaçados. Além disso, o conselheiro é responsável por promover o encaminhamento de situações aos pais ou responsáveis, mediante termo de responsabilidade.

Violência, maus-tratos, abuso sexual, privação de comida ou falta de acesso aos estudos, são exemplos de violações do ECA que são averiguadas pelo Conselho Tutelar.

Eleição de conselheiros tutelares: entenda o que faz um conselheiro e como atuar na proteção de crianças e adolescentes. — Foto: Reprodução/RPC

Líderes comunitários

De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, os conselheiros são também considerados lideranças comunitárias, por isso são escolhidos por votação popular e não por concurso público, por exemplo.

A pasta destaca que é fundamental que os conselheiros estejam ligados à comunidade que moram e atentos às violações para transformar a realidade das comunidades.

Quais ações são tomadas por um conselheiro tutelar?

Assim que o Conselho Tutelar recebe uma denúncia de suspeita de maus-tratos, é obrigatória a adoção de certas medidas para garantir a proteção da criança. Entre elas, existe a possibilidade de afastar a vítima do convívio com o agressor.

No caso de uma criança é vítima de abuso sexual, o conselheiro precisa buscar meios de intervenção inicial da saúde, para evitar gravidez indesejada, Infecção Sexualmente Transmissível (IST), além de danos físicos.

Depois, ele precisa comunicar à polícia, para que a autoridade faça uma investigação sobre o caso ou prisão em flagrante.

Além disso, o conselheiro tutelar pode cobrar o Poder Público em casos de negligência contra as crianças e adolescentes, como ausência de vaga em creche, matrícula em escola distante do domicílio, vulnerabilidade socioeconômica, falta de atendimento pela rede de saúde pública, entre outros.

Apoio e acompanhamento

O ECA também garante que esses profissionais deem orientação, apoio e acompanhamento temporários. Também atuam para garantir matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento de ensino, se necessário; e ainda inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente.

Outras funções incluem o pedido de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial e a inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos, dentre outras competências.

Como denunciar situações de abuso?

Um dos principais canais para denúncia é o Disque 100, do governo federal. Só que os casos levam de dois a três dias para serem notificados às autoridades estaduais, que então começam a investigar.

Nas situações em que a violência está sendo testemunhada na hora, é preciso chamar imediatamente a Polícia Militar, pelo telefone 190.

Quem suspeita de maus-tratos e denuncia tem a proteção do anonimato e não será punido caso a denúncia não se confirme.



Bolsonarismo, o sujeito oculto da posse de Barroso no STF



Foi a ministra Rosa Weber, ao despedir-se ontem do Supremo Tribunal Federal, quem disse: “Não somos onze ilhas”. A crítica mais comum que se faz ao tribunal é a de que cada ministro é uma ilha, com suas próprias leis e vontades. Daí a insegurança jurídica que suas decisões provocam.

Um dos prodígios do desgoverno de Bolsonaro nos últimos quatro anos foi justamente o de unir os ministros do tribunal, à exceção de dois: Kassio Nunes Marques e André Mendonça, nomeados pelo ex-presidente que se tornou inelegível. No mínimo, hoje, os outros nove formariam uma espécie de arquipélago.

A ameaça de a democracia dar lugar a um regime autoritário sob o comando de Bolsonaro e dos militares de volta ao poder sem disparar um só tiro, aproximou os ministros que passaram a atuar em bloco desde meados de 2021, pelo menos. Naquele ano, Bolsonaro tentou dar um golpe no dia 7 de setembro.

Tinha o apoio dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. O golpe acabou abortado pela reação do Supremo, à época presidido pelo ministro Luiz Fux. Na ocasião, o Supremo entrou em estado rigoroso de prontidão que desestimulou o golpe planejado para dezembro e enfraqueceu o de 8 de janeiro.

É emblemática a imagem registrada na noite do dia 9: Lula, governadores de Estado, ministros do governo e os ministros Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli, lado a lado, saindo do Palácio do Planalto e atravessando a Praça dos Três Poderes para visitar a sede semidestruída do Supremo.

Natural, portanto, que a posse de Barroso como novo presidente do Supremo servisse para celebrar a vitória da democracia. Ela esteve presente em todas as bocas, especialmente nas de Barroso, Gilmar Mendes, o decano do tribunal, e Rosa, de saída definitiva. O sujeito oculto das falas não teve seu nome citado, nem precisava.

Rosa:

“O Dia da Infâmia [8 de janeiro] há de ser sempre lembrado como propulsor do fortalecimento do nosso estado democrático de Direito em um renovar de energias diante da união e resposta imediata e firme dos Poderes e da sociedade civil à vilania praticada e na contramão do que pretendia aquela horda hostil”.

Gilmar:

“Naqueles tempos de calmaria e normalidade, a continuidade [do tribunal] era um dado. Meses atrás, era por muitos considerada uma dúvida. Essa Corte suportou, durante um par de anos, as ameaças de um populismo autoritário”.

Por tudo isso que se viu e se viveu, a presente cerimônia simboliza mais do que a continuidade de uma linhagem sucessória institucional. Ela assume um colorido novo. A posse de Vossa Excelência [Barroso] torna palpável a certeza de que, sim, o Supremo Tribunal Federal sobreviveu.”

“A atual ordem constitucional sabe se defender, seja de golpismos explícitos, seja de erosões autoritárias como aquela sistematicamente conduzida em 2022 contra o sistema eleitoral”.

“Vivemos um tempo que requer compromisso inequívoco dos três Poderes em favor da Constituição. Será fatal para os Poderes constitucionais a dúvida, a hesitação”.

Barroso:

“Em todo o mundo a democracia constitucional viveu momentos de sobressalto, com ataques às instituições e perda de credibilidade. Por aqui, as instituições venceram tendo ao seu lado a presença indispensável da sociedade civil, da imprensa e do Congresso Nacional. E justiça seja feita: na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo”.

“Um país não é feito de nós e eles, somos um só povo. A democracia venceu e precisamos trabalhar para a pacificação do país”.

“Numa democracia não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil”.

Barroso: a conciliação, sim, sem jamais agredir os direitos fundamentais


O ministro Roberto Barroso na solenidade em que tomou posse como presidente do Supremo Tribunal Federal: um discurso impecável Imagem: Sergio Lima/Poder 360

Procurem no dicionário o sentido da palavra "soberbo". Uma das acepções nos aponta "arrogante" como sinônimo. Mas também define o que tem "aspecto grandioso", o "belo", o "magnífico", o "valioso", o "preciso", o que demonstra "destemor e bravura". Roberto Barroso, novo presidente do Supremo, fez nesta quinta um discurso de posse soberbo. Soube falar ao presente, acenou para o futuro e expôs — e isto me agradou muito especialmente — a natureza da Constituição da República Federativa do Brasil, tantas vezes vilipendiada pela ignorância... soberba! Convidou ao diálogo dos fortes, não ao conciliábulo entre chantagistas e covardes.

DA NATUREZA DO TEXTO
A crítica mais recorrente à Carta aponta a sua largueza e a sua disposição de abarcar todos os setores da vida pública, discorrendo longamente sobre uma gigantesca lista de direitos, sem que liste também as obrigações. É uma consideração obviamente demeritória, como se o Brasil, um gigante indômito e ávido por grandes feitos, se visse atado por amarras manipuladas por algum ente metafísico.

De saída, noto que vocês jamais ouviram essa crítica sair da boca dos despossuídos. Ela costuma frequentar a pena, a militância e o "lobby" dos poderosos, aqueles mesmos que, com impressionante despudor, insistem em que uma das sociedades mais desiguais da Terra está condenada ao atraso porque haveria por aqui um excesso de benefícios sociais. Com a pança satisfeita de iniquidades, ignoram, por exemplo, que mais da metade da mão-de-obra hoje no país está na informalidade, o que representa, na esmagadora maioria dos casos, em déficit de liberdade, de bem-estar, de respeito.

AUTOCONTEÇÃO E DEMOCRACIA
Em meio à balbúrdia provocada por arruaceiros que transformaram o STF no principal alvo de suas investidas, o novo presidente da Corte observou com pertinência:
"É imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os outros Poderes e com a sociedade, como sempre procuramos fazer e pretendo intensificar. Numa democracia não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, presidente Arthur Lira, presidente Rodrigo Pacheco, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil."

Depois do 8 de janeiro, seria impossível evitar o tema da defesa da democracia:
"E, também, estamos sempre juntos, como lembrou o ministro Gilmar Mendes na sua bela oração, em sólida unidade na defesa da democracia. A democracia constitucional é a composição de valores diversos, duas faces da mesma moeda. De um lado, soberania popular, eleições livres e governo da maioria. De outro, poder limitado, Estado de direito e respeito aos direitos fundamentais. Um equilíbrio delicado e essencial. Em todo o mundo, a democracia constitucional viveu momentos de sobressalto, com ataques às instituições e perda de credibilidade. Por aqui, as instituições venceram, tendo ao seu lado a presença indispensável da sociedade civil, da Imprensa e do Congresso Nacional. E, justiça seja feita, na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo. Costumamos identificar os culpados de sempre: extremismo, populismo, autoritarismo... E de fato eles estão lá."

Barroso foi um dos magistrados mais miseravelmente atacados pela máquina de difamação bolsonarista, que passou a lhe atribuir, como se dotado fosse de superpoderes, a derrota do voto impresso no Parlamento. Parte da campanha de desqualificação do sistema de votação se deu quando presidia o Tribunal Superior Eleitoral. De fato, o arreganho contra as instituições democráticas se espalha mundo afora, capitaneado, no mais das vezes, pelo populismo de extrema-direita — isso digo eu, não ele. Mas também é verdade que os criminosos foram derrotados. Mas convém não descuidar da vigilância — esse sou eu de novo...

Fez bem em destacar que "as Forças Armadas não sucumbiram", apensando à constatação um adjunto adverbial: "na hora decisiva". Estou entre os que avaliam, mas isto não cabe ao ele falar, que a leniência dos fardados com a arruaça, inclusive com uma nota pusilânime dos três comandantes militares no dia 11 de novembro, concorreu para produzir o resultado de 8 de janeiro. Mas, é fato, "não sucumbiram" — ainda que isso possa se dever a injunções que não tinham a ver com a vontade, mas com a falta de condições objetivas para sustentar um eventual golpe de Estado. De toda sorte, tivesse havido a virada de mesa, teria sido um evento catastrófico para o país, mesmo que durasse pouco.

DEFINIÇÃO FELIZ
Como tenho dito aqui e em toda parte, restou à extrema-direita apenas o discurso dos chamados "costumes". Sua pauta consiste em mobilizar a sociedade contra os perigos que representariam, vejam que coisa!, justamente as minorias destituídas de direitos. Alguns temas que mobilizam os piores rancores -- e já se falou aqui do caráter analítico do nosso texto constitucional -- estiveram, estão ou estarão no Supremo: descriminação de maconha para consumo; aborto; marco temporal para demarcação de terras indígenas; união homoafetiva; criminalização da homofobia e transfobia etc.

Tenta-se até, num movimento de espantosa delinquência intelectual e política, votar uma PEC que transformaria o Congresso numa corte revisora do Supremo. É o tipo de coisa que não chega nem a estar errada de tão estúpida. Trata-se, como afirmei ontem aqui, de um movimento de intimidação do Supremo. Barroso reiterou um compromisso que ouso chamar de moral e ético. Numa passagem particularmente feliz, definiu assim os direitos fundamentais: "são os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna." Mais ainda: são "a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna".

O ministro reiterou os compromissos daquela Casa:

"Temos sido parceiros da ascensão das mulheres, na luta envolvente por igual respeito e consideração, no espaço público e no espaço privado, bem como contra a violência doméstica e sexual. Também temos atuado, sempre com base na Constituição, em favor do heroico esforço da população negra do país por reconhecimento e iguais oportunidades, validando as ações afirmativas, imprescindíveis para superar o racismo estrutural que a escravização e sua abolição sem inclusão acarretaram. Do mesmo modo, a comunidade LGBTQIA+ obteve neste Tribunal o reconhecimento de importantes direitos, com destaque para a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, tendo por desdobramento a possibilidade do casamento civil".

Há quem queira que o tribunal deveria passar longe de todas essas questões, dissociando-as, na expressão do agora presidente, de uma "reserva mínima de justiça" que deve assistir essas populações. E não fugiu da demarcação de terras indígenas, a causa mais recente que motivou a declaração de guerra da vanguarda do atraso:
"Povos indígenas passaram a ter a sua dignidade reconhecida, bem como o direito a preservarem sua cultura e, ao menos, uma parte de suas terras originárias. Atuamos, ainda, para que pessoas com deficiência sejam valorizadas na sua diferença, no esforço de se proporcionar acessibilidade e inclusão. E a proteção ambiental foi igualmente objeto de atenção do Supremo"

Essas, destacou o orador, não são causas "progressistas", mas "da humanidade, da dignidade humana, do respeito e consideração por todas as pessoas."

PACTO CIVILIZATÓRIO
Mas é possível conciliar os diferentes? Respondeu:
"A democracia venceu, e precisamos trabalhar pela pacificação do país. Acabar com os antagonismos artificialmente criados para nos dividir. Um país não é feito de nós e eles. Somos um só povo, no pluralismo das ideias, como é próprio de uma sociedade livre e aberta. 'Bastar-se a si mesmo é a maior solidão', escreveu o poeta. O sucesso do agronegócio não é incompatível com a proteção ambiental. Pelo contrário. O combate eficiente à criminalidade não é incompatível com o respeito aos direitos humanos."

Mais:
"No interesse da justiça, pretendo ouvir a todos, trabalhadores e empresários, comunidades indígenas e agricultores, produtores rurais e ambientalistas, gente da cidade e do interior. E, também, conservadores, liberais e progressistas. Ninguém é dono da verdade, ninguém tem o monopólio do bem e da virtude. A vida na democracia é a convivência civilizada dos que pensam diferente. E quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, mas meu parceiro na construção de uma sociedade aberta, plural e democrática."

ENCERRO
O discurso traduz o que a civilização democrática pode produzir de melhor. As discordâncias são próprias da vida em sociedade, mas se define um método, com regras conhecidas, para que possam ser expostas e exercitadas.

Torço, é claro!, para que vocações autoritárias se deixem convencer pelo avanço e pelo pacto civilizatórios. Mas também sou realista. As circunstâncias da política brasileira dos últimos anos levaram ao florescimento — e como são flores do mal e dos maus! — de uma militância fanaticamente reacionária. Ela vê na defesa dos direitos fundamentais — "que são os direitos humanos incorporados à ordem jurídica" — mero território para a guerra ideológica, de sorte que combatê-los passa a ser uma forma de enfrentar o inimigo. Ora, a consequência inescapável dessa postura são a discriminação e a violência política, que têm de ser enfrentados e vencidos.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Barroso: STF 'iluminista' pode julgar à revelia do Congresso



Dono de uma personalidade jurídica progressista, Luís Roberto Barroso defende teses e valores que provocam ojeriza na oligarquia política. Alheio à acusação de que o Judiciário tornou-se ativista, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal avalia que a Corte pode, sim, exercer o que chama de papel "iluminista", "independentemente da vontade do Congresso e mesmo contra a maioria popular, para proteger minorias e avançar a história."

Como exemplo do iluminismo judicial, Barroso menciona "o julgamento que equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, abrindo caminho para o casamento entre pessoas do mesmo sexo." A essência do pensamento do ministro foi borrifada nas 271 páginas de "Sem Data Venia", livro que lançou em 2020, pela editora História Real. Tudo o que se atribuirá a Barroso abaixo, entre aspas, foi extraído de sua obra.

Além das atribuições inspiradas no Iluminismo, Barroso atribui a cortes constitucionais como o Supremo outros dois papeis. Ambos sujeitam os magistrados a incompreensões políticas:

1) "O [papel] contramajoritário, que é o apelido que se dá no Direito constitucional ao fato de que juízes não eleitos podem invalidar decisões do Congresso ou do presidente. Foi o que ocorreu, segundo Barroso, quando "o Supremo considerou inconstitucionais os dispositivos legais que impediam a publicação de biografias não autorizadas."

2) "O representativo, que é o papel que as Cortes exercem quando atendem a demandas sociais que tinham amparo na Constituição, mas não foram satisfeitas a tempo e à hora pelo Congresso Nacional." Por exemplo: "A decisão que derrubou, por inconstitucional, o modelo mafioso de financiamento eleitoral que vigorava no Brasil."

Barroso anota que, "como regra geral, decisões políticas devem ser tomadas por quem tem voto. Nessa linha, se o Congresso tiver atuado, editando uma lei, a postura do Judiciário deve ser de contenção, de deferência para com o Parlamento".

O ministro realça, entretanto, que, "nas situações em que o Congresso deveria ter atuado, mas não quis ou não conseguiu, por falta de consenso mínimo, o quadro se modifica." Sobretudo se estiver em jogo "um direito fundamental que dependa, para ser exercido em plenitude, de uma providência legislativa" sonegada pelo Congresso.

Refletindo sobre o princípio da separação de Poderes, Barroso avalia que, num "modelo idealizado", os "juízes não criam o direito, mas se limitam a aplicar a Constituição e as leis, que são obras de agentes políticos eleitos para esse fim." Mas o ministro pondera: "Para muitas situações da vida, inexiste uma clara e prévia decisão política do constituinte ou do legislador definindo a solução a ser adotada."

Quando não há uma fórmula legislativa para a resolução de determinado problema, escreve Barroso, "é o próprio juiz que tem que elaborá-la, o que o torna coparticipante do processo de criação do direito. Nesse caso, a linha divisória entre política e direito deixa de ser nítida, porque essa função criativa do juiz sempre terá uma natureza política."

Para Barroso, julgamentos que envolvem "direitos fundamentais —como liberdade de expressão, liberdade religiosa, proteção de minorias—, ou defesa da democracia —impedir o prolongamento de um modelo de financiamento eleitoral que gerou sucessivos escândalos de corrupção— podem legitimar um comportamento mais ativista" do Supremo.

Barroso lamenta algo que foi festejado por oligarcas da política e do empresariado: a decisão do Supremo que reverteu a regra que permitia a prisão de corruptos condenados em segunda instância. Sem essa regra, avalia o ministro, processos criminais se eternizam até a prescrição, "dando salvo-conduto aos ladrões de casaca."

Barroso defende a descriminalização do aborto: "Tratar a interrupção da gestação como crime, nas primeiras semanas de gravidez, afeta, sobretudo, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares." É defensor do casamento homoafetivo: "O que vale na vida são os nossos afetos. Impedir uma pessoa de colocar o seu amor e a sua sexualidade onde mora o seu desejo é privá-la de uma dimensão essencial de sua existência."

O ministro defende a liberação das drogas: "Há décadas se pratica no Brasil o mesmo tipo de política de enfrentamento contra as drogas. Polícia, armamentos, mortes e muitas prisões. Não é preciso ser expert no assunto para reconhecer o óbvio: não tem dado certo."

Novo dono da pauta do Supremo, o sucessor de Rosa Weber provoca reações que talvez o forcem a retardar a conclusão de julgamentos que gostaria de apressar. Entre eles o que trata da descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez e o que impede a prisão de consumidores de maconha.

Barroso assume o Supremo sob uma atmosfera de curto-circuito



Luís Roberto Barroso assume a presidência do Supremo Tribunal Federal contra um pano de fundo marcado pela desavença com o Congresso. Deve-se o acirramento ao destemor da ministra Rosa Weber. Antes de pendurar a toga, ela levou à vitrine fios desemcapados que os antecessores escondiam.

Majoritário no Congresso, o conservadorismo reagiu contra a derrubada do marco temporal para a demarcação de terras indígenas e a perspectiva de descriminalização do aborto e do consumo de maconha. Embora Lula se finja de morto, a eletrificação do ambiente começa a travar a agenda legislativa do governo.

Para restaurar o marco temporal que o Supremo julgou inconstitucional, a bancada do Boi se associou à turma da Bala e da Bíblia, dispondo-se despejar votos numa proposta do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, que agrava a proibição do porte de drogas. Ou em projetos que endureçam a legislação antiaborto.

Condestável do centrão, o presidente da Câmara, Arthur Lira, surfa a onda de insatisfação conservadora para impor a Lula a ameaça de bloqueio de propostas que aumentam a receita da Fazenda. Algo vital para o êxito do projeto econômico gerido pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda). Lira exige que Lula cumpra o "acordo" que prevê que a Caixa Econômica lhe será entregue de "porteira fechada".

Ao soltar os demônios que se escondiam nos fundões de supremas gavetas, Rosa Weber trouxe à tona divergências que haviam sido engolfadas pelo tsunami do 8 de janeiro. Fez isso num instante em que ganharam o noticiário as primeiras condenações dos executores do quebra-quebra e a delação de Mauro Cid, que encosta a tentativa de golpe em fardados da cúpula militar.

Nessa atmosfera de curto-circuito, a democracia brasileira é submetida a um teste de funcionalidade por um Supremo de viés majoritariamente progressista, um Congresso de perfil conservador e um Planalto chefiado por presidente de esquerda. Brasília vive o momento mais tenso desde o 8 de janeiro. E os democratas já não podem invocar as crises fabricadas por Bolsonaro como álibi para suas debilidades.

Obstrução e PEC anti-STF são face parlamentar dos golpistas de 8 de janeiro


Os deputados Domingos Sávio (PL-MG) e Pedro Lupion (PP-PR): o exercício do golpismo de 8 de janeiro, mas por outros meios. O objetivo e os valores são os mesmos

O terra-planismo legiferante tomou conta de parte do Congresso, sob o olhar cúmplice, quando não o estímulo, de alguns que deveriam, até por dever de ofício, investir na distensão. Está em curso uma verdadeira cruzada contra o STF que ainda ecoa as teses do arruaceiro e expressa a face maquiada do golpismo. Por quem batia o coração dessa gente no 8 de janeiro?

Vivemos a consequência — e sei lá se isso se conserta um dia — dos anos da "razia Bolsonaro". O Poder Executivo, sob a desordem do "capitão", foi reduzido a um monturo incompetente, cabendo ao Legislativo, então, estruturar algum eixo de governabilidade por intermédio da justaposição de interesses e do balcão que atendia a parlamentares e cartórios. Essa gente criou balda. Lula conseguiu recuperar parte do protagonismo para o Poder, mas vive com a faca no pescoço.

"Ah, é que o governo não dialoga com..." Vamos lá: não dialoga com quem? Os revoltados da hora, por exemplo, integram a chamada bancada ruralista, ou Frente Parlamentar da Agropecuária, para empregar um nome que esconde a garrucha — ou a 9 mm — no terno. A última graça dessa turma é obstruir votações porque se diz inconformada com a decisão do Supremo, que, por nove a dois, limitou-se a ler o que está na Constituição, a saber: inexiste marco temporal para a demarcação de terras indígenas. A propósito: se existir, digam onde está.

PROJETO DE LEI

O Senado seguiu a Câmara e aprovou o projeto de lei que estabelece a Carta de 1988 como a referência de ocupação para eventual demarcação. Busca, assim, sobrepor a sua decisão à do tribunal. É evidente que o troço já nasce inconstitucional.

Um mínimo de razoabilidade, ainda que imprestável, ousaria ao menos uma PEC: "Se o STF afirma que o marco temporal é incompatível com a Lei Maior porque lá não está, então vamos muda-la". Seria um delírio manso. Entendo que persistiria a incompatibilidade com os Artigos 231 e 232. "Ué, mas não podem ser mudados?" Para cassar direitos fundamentais de um grupo já vulnerável? A resposta é "não!"

A Corte não deu um murro na mesa, dizendo um "demarque-se, e eventuais ocupantes não índios das áreas em disputa que vão caçar sapo". Comprovado o direito indígena, o ocupante de boa-fé — não o grileiro profissional — será indenizado. "Ah, mas isso não serve..." Lobistas fazem terrorismo, reproduzido por canalhas ou por idiotas, prevendo o apocalipse na agropecuária se não se impuser o marco temporal. Trata-se de uma soma de aberrações e mentiras.

Obstruir o andamento normal do Congresso, deixando de votar temas do interesse da população e do governo — que, afinal, tem de implementar políticas públicas — por quê? Lula manda na vontade dos magistrados? A suposição, que vejo ventilada aqui e ali, de que o Planalto seria a mão que move os ministros é um despropósito.

A FACE MAIS MANSA DO GOLPISMO

É claro que estamos diante do golpismo numa face, ou fase, mais mansa, mas ainda muito convicto. Alguém é abobado o suficiente para dissociar essa armação contra o STF dos processos que lá correm e das primeiras condenações dos arruaceiros? Como naquela música, o "caso não é de ver para crer; está na cara".

Na sexta passada, na minha última coluna na Folha, escrevi:

(...) Um novo surto de estupidificação, também a sincera, está em curso e tem como alvo o Supremo, justamente o ente que decide o destino dos golpistas. É retaliação. Infelizmente, até uma figura sempre ponderada, como Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, houve por bem disputar o coração dos dinossauros.

Evitei acima uma palavra, recusando o clichê "corações e mentes". Como ensina Francisco Torrinha, no "Dicionário Latino Português", "mens, mentis" designa "o princípio pensante", o "espírito", "a inteligência". E não reconheço tais manifestações na "devastidão" — termo que se esqueceu de acontecer — bolsonariana. "Devastação" não expressa a razia havida. O senador resolveu dar pipoca à ignorância. Patrocina uma PEC que criminaliza o porte de qualquer quantidade de droga. Quer, assim, fazer frente a um STF que estaria a legislar no caso da maconha. A iniciativa ficaria bem num Tiranossauro Rex a se fingir de herbívoro boa-praça. Advogado, ele sabe que os presídios estão abarrotados de jovens, pretos e pobres em razão da aplicação porca de uma lei ruim. Se sua PEC prospera, tudo piora. Quem dá bola, senhor, para "a lágrima clara sobre a pele escura"?

Há outra ação que mira o tribunal: o projeto de lei que define a Constituição de 1988 como o ano de referência para a demarcação de terras indígenas. O texto já foi aprovado pelos deputados. É grande o risco de ser piorado pelos senadores. Leiam o conjunto dos direitos assegurados àquela população e constatarão que a limitação temporal é inconstitucional. Uma lei não se sobrepõe à Carta.

Na Câmara, ensaia-se a tentativa de tornar ilegais futuras uniões homoafetivas, matéria já julgada pela corte. Não vai prosperar, eles sabem. O "Deputado Pastor Sargento" Isidório (Avante-BA) acredita ter a síntese definitiva sobre o caso: "Todo mundo sabe da minha fala clássica de que, é uma fala, inclusive, universal: o homem nasce como homem, com binga, portanto, com pinto, com pênis. Mulher nasce com sua cocota, sua 'tcheca', com sua vagina, mesmo com o direito à fantasia. Homem, mesmo cortando a binga, não vai ser mulher. Mulher, tapando a cocota, se for possível, não será homem, todo mundo sabe". O "Peçanha da genitália alheia" resolveu fazer sombra ao poeta Eliot na definição do que é um clássico...

Segue a sanha dos reaças contra o tribunal. O ódio aos ministros aumentou com a volta, vitoriosa, de Lula ao jogo eleitoral, com a resistência oferecida às sandices do biltre durante a pandemia e com a disposição de punir o golpismo. Nove meses depois daquele 8 de janeiro, dar corda e cartaz ao primitivismo mais abjeto sob o pretexto de enfrentar o ativismo dos magistrados é apostar na "devastidão" em que o "Deputado Pastor Sargento Isidório" nos revela o seu pensamento "clássico" e "universal" sobre binga e pepeca. É esse o caminho, Pacheco?

CORTE REVISORA?
Como loucura pouca é bobagem, celerados resolveram colher assinaturas para apresentar uma PEC que daria ao Congresso o poder de revogar decisões do STF por três quintos dos votos de cada Casa.

Como inexiste matéria que esteja livre da apreciação do Judiciário, seria o próprio tribunal a declarar a inconstitucionalidade da maluquice. E aí? Responderia o deputado Domingos Sávio (PL-MG), que resolveu ser o orador da turma: "Ora, a gente derruba a decisão!"
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Assim, vejam que obra de gênio!, teríamos a primeira ditadura verdadeiramente parlamentar do mundo. A sensacional proposta consistiria em acrescentar um novo inciso ao Artigo 49 da Carta, que trata das competências do Congresso. De fato, o Inciso V lhe confere a faculdade de "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa". Mas também isso está sujeito à apreciação da corte constitucional.

SUPREMÃO DO SUPREMINHO?
"A PEC assegura de maneira mais clara o que a Constituição já diz. Ela deixa claro o artigo 49, que relata quais são as competências do Congresso Nacional, não se mexe nas competências do STF nem nas do Executivo", disse Sávio após reunião na FPA nesta terça. "O Congresso poderá, por maioria constitucional, sustar os efeitos de decisão transitada em julgado no STF que tenha extrapolado os limites constitucionais". Que homem singelo!

E quem decide se houve ou não a extrapolação? Ora, os valentões. Eles se tornariam, pois, o Supremão do Supreminho.

Pedro Lupion (PP-PR), o presidente do Frente Parlamentar da Agropecuária, reflete:
"Dados os acontecimentos da última semana em relação ao julgamento do marco temporal no STF e a usurpação de competências do Poder Legislativo, suscitaram algumas reuniões, algumas composições de frentes parlamentares e grupos dentro do Congresso à reação dessa invasão de competências".

Os golpistas, arruaceiros e terroristas não conseguiram destruir o Judiciário. Sávio e Lupion, pelo visto, se oferecem para fazê-lo. Qualquer coisa, restará chamar as Forças Armadas como Poder Moderador, não é mesmo? Vai além do ridículo. Trata-se de mais um movimento para intimidar o STF.

ENCERRO
A bancada ruralista está sabotando o governo que apresentou o maior Plano Safra da história. Esses caras já não falam como representantes de um setor da economia. Têm a ambição de impor "diktats" aos outros dois Poderes. Ao contrário do que dizem, não querem um país crescendo em paz; buscam a guerra. Adivinhem por quem estavam torcendo naquele 8 de janeiro...

Arthur Lira (PL-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidentes, respectivamente, da Câmara e do Senado assistem de camarote ou participam do festim liberticida?

Fiquem atentos ao colunismo filogolpista. Daqui a pouco a corja começa a dizer que o Supremo está mesmo exagerando...

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Quem cala é cúmplice


General Heleno durante depoimento na CPI do 8 de janeiro — Foto: Agência Câmara

Elogios ao 'silêncio' de Aras e negativas cínicas de Heleno diante da CPI são tentativas intoleráveis de reescrever a História

É cada vez mais comum, e mais imediato, que homens públicos que faltem com a responsabilidade do cargo que exercem tentem reescrever a História para maquiar suas faltas. Nesse mister nada digno, costumam contar com a condescendência dos pares e dos que com eles se relacionam. Os últimos dias foram pródigos em arreganhos dessa natureza, carregados de desfaçatez e rapapés.

A omissão de Augusto Aras diante dos riscos que Jair Bolsonaro, que o nomeou duas vezes para a Procuradoria-Geral da República, ofereceu à democracia e à saúde pública na pandemia foi colocada na conta de um certo silêncio salvador por parte de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

E o general Augusto Heleno, um dos maiores entusiastas do bolsonarismo e das ações para desacreditar as instituições, com insinuações golpistas em relação ao processo eleitoral durante o tempo em que ocupou o estratégico Gabinete de Segurança Institucional, compareceu perante a CPI dos Atos Golpistas para bancar o senhorzinho inocente que nada sabia e minimizar as graves investidas de seu ex-chefe contra o Estado Democrático de Direito e as instituições. Seu depoimento foi um escárnio com os senadores e deputados que integram a comissão e a sociedade.

O desagravo a Aras contou com o beneplácito dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, em mais uma das guinadas de posição que têm se tornado cada vez mais comuns entre os integrantes da mais alta Corte do país e que, certamente, contribuem para que não haja clareza quanto ao que pretende o STF.

Não foram poucas as vezes em que variados ministros, as turmas ou mesmo o plenário do Supremo tiveram de admoestar Aras e Lindôra Araújo pela omissão do Ministério Público Federal (MPF), sob seu comando, nas questões atinentes aos ataques de Bolsonaro à democracia e às ações e omissões do Executivo no enfrentamento da pandemia. Os próprios procuradores muitas vezes tiveram de tomar a frente em questões que o chefe da PGR fingia não enxergar.

O decano da Corte foi duro ao escrutinar os dois mandatos de Aras ao participar do “Roda Viva” e só agora, numa despedida que para o país demorou muito, resolveu ver o papel do escolhido de Bolsonaro numa certa “reinstitucionalização” do MPF.

Não é porque a Lava-Jato e a gestão de Rodrigo Janot cometeram excessos que precisam ser apurados, e muitos dos quais já geraram nulidades processuais, que Aras precisa ser enaltecido e redimido. Esses reducionismos é que vão deseducando o Brasil para a democracia, para exigir dos homens públicos coerência e coragem no cumprimento de seus deveres constitucionais, a despeito do governante de turno.

O caso do general Heleno é mais grave e bastante emblemático do grau de corrosão do tecido militar pelo bolsonarismo. Ao tentar negar a participação de Mauro Cid em reuniões com representantes das Forças Armadas, no que foi pego na mentira no ato, o general procurou dissimular a gravidade do que Bolsonaro insinuava ou pedia abertamente nesses encontros, agora relatados pelo ex-ajudante de ordens.

Tanto no caso de Aras quanto no de Heleno, não há propósito nobre na omissão e no silêncio diante de arreganhos golpistas de um presidente ou de descaso com a vida da população durante uma pandemia. Nem a atitude dos comandantes das Forças, de não aceitar seguir com nenhum plano de ruptura institucional, mas não denunciar abertamente, é tolerável.

Todos eles teriam o dever constitucional de agir. Se não o fizeram, precisam ser responsabilizados, e sua inação e sua cumplicidade com crimes e tramas criminosas ser registrados pela História, sem homenagens descabidas, proteção corporativa ou depoimentos perante o Parlamento eivados de cinismo e desdém.

Para não passar por conspirador, Heleno se camuflou de abilolado



Augusto Heleno evitou comparecer fardado à CPI do Golpe. Pressentindo que a conjuntura o arrastara para um ambiente hostil, recorreu a uma velha tática do combate na selva. Acabou exagerando na camuflagem. Para esconder a conspiração à flor da pele, exibiu-se aos parlamentares como um abilolado sem visão. Ao final da inquirição ficou entendido o seguinte: em terra de cego, general que tem um olho não diz a ninguém que os golpistas ficaram nus.

Para Heleno, o acampamento que pedia golpe na frente do QG de Brasília era uma "manifestação pacífica" e Bolsonaro não saiu do quadrado constitucional. Na percepção do general, a delação do tenente-coronel Mauro Cid é "uma fantasia", pois ajudante de ordens que senta numa reunião do presidente com comandantes das Forças Armadas é coisa que "não existe".

Sobre o quebra-quebra de 8 de janeiro, Heleno disse que não teria como dar explicações, porque deixou a chefia do Gabinete de Segurança Institucional no dia 31 de dezembro. Na verdade, o general tornara-se ex-ministro da pasta que deveria cuidar do serviço de inteligência ainda no exercício do cargo.

Heleno não viu os terroristas que saíram da porta do quartel para queimar ônibus e carros e tentar explodir um caminhão de combustível. Não viu as tratativas golpistas de Bolsonaro com o hacker de Araraquara na cozinha do Alvorada. Heleno não viu nem mesmo o Mauro Cid que se escondia atrás dele na foto de uma reunião do chefe com os comandantes das Forças, no Planalto.

O general chamou de "bobagem" e "besteira" a acusação de tentativa de golpe. A alturas tantas, disse: "Não ia dar certo nunca." Foi seu comentário mais certeiro. Já não se fazem golpistas como antigamente. Augusto Heleno, um ex-valentão, não vê, não sabe e não participa de nada. Só mente um pouco. O cinismo é o máximo de sofisticação filosófica do general. É o que mais se aproxima da verdade.

Antes de pendurar a toga, Rosa espeta um espinho no pé de Lula



Um dia depois de Lula ter afirmado que não cogita levar em conta o critério da diversidade na próxima indicação para o Supremo Tribunal Federal, a ministra Rosa Weber rendeu homenagens às mulheres. Sob sua presidência, o Conselho Nacional de Justiça aprovou regra que favorece a paridade de gênero em tribunais de segunda instância.

Hoje, as promoções de juízes de carreira para esses tribunais baseiam-se em dois critérios: antiguidade e merecimento. Resolução relatada pela conselheira Salise Sanchotene e aprovada por pressão de Rosa criou duas listas para a ascensão por merecimento —uma mista, com homens e mulheres, como ocorre hoje. Outra apenas com juízas.

Esse par de listas será utilizado alternadamente até que os tribunais tenham entre 40% e 60% de magistradas mulheres na sua composição. Vale para os tribunais de Justiça estaduais, tribunais regionais federais e os tribunais regionais do trabalho.

Nesta quinta-feira, Rosa transferirá o cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça para o ministro Luís Roberto Barroso. Pressionado a entregar a toga da nova aposentada para outra mulher, de preferência negra, Lula sinaliza a intenção de escolher um homem para o qual possa telefonar.

Indicada por Lula no seu primeiro mandato, Cármen Lúcia passará a ser a única mulher num plenário de 11 togas —9% do total. O retrocesso rende críticas a Lula até no quintal petista. A perspectiva de aumento do número de mulheres na segunda instância potencializa o desgaste. O que foi uma Rosa agora é espinho. Um espinho espetado no pé de Lula.

Aras é um pesadelo do qual o país tem dificuldade de acordar



A história dos quatro anos de Augusto Aras na chefia da Procuradoria-Geral da República é uma mentira encadernada pelo déficit público. Antes de deixar o cargo que não mereceria ocupar há quatro anos, Aras mandou imprimir, com verbas do alheio, uma autopropaganda camuflada de prestação de contas.

Há 35 anos, quando o Congresso Constituinte presidido por Ulysses Guimarães converteu o Ministério Público numa entidade independente, imaginou-se que surgiria no país uma instituição respeitável. Se a gestão de Augusto Aras serviu para alguma coisa foi para demonstrar que a respeitabilidade está sob ameaça.

Reza a Constituição que a Procuradoria deve zelar pelos interesses da sociedade. A função de procurador-geral será exercida com maior eficácia se o titular for escolhido pelo presidente da República de forma republicanamente impessoal. Mas a impessoalidade, depois da diversidade, é o critério que menos interessa a Lula no momento.

O livro que Aras distribui aos amigos vale como um dossiê das culpas do pior procurador-geral de todos os tempos. Numa obra que fala sobre a maneira como a gestão de Aras "salvou vidas" durante a pandemia, fica difícil eleger o trecho mais mentiroso. O pior, entretanto, não é o pesadelo, mas a dificuldade que o Brasil tem de acordar dele. Lula não parece interessado em reescrever a história da Procuradoria. Ele busca algo muito parecido com um recomeço em falso.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Contra CPI, Heleno pode usar sua própria receita: Lexotan na veia



Ao buscar refúgio no Supremo contra a CPI do Golpe, Augusto Heleno tornou-se um personagem constrangedor. No mínimo, virou um ex-corajoso. No máximo, deixou aflorar uma insuspeitada covardia.

Submetido ao caráter lotérico do Judiciário, o general bolsonarista caiu nas mãos de Cristiano Zanin. O indicado de Lula indeferiu o pedido de Heleno para se ausentar da CPI. Assegurou-lhe, porém, o direito ao silêncio.

É pequeno o apreço do general pelo Judiciário e pelo Legislativo. Em dezembro de 2021, falando para agentes da Abin, Heleno disse que "dois ou três ministros do STF" tramavam "esticar a corda até arrebentar." Revelou que injetava "Lexotan na veia" duas vezes por dia "para não levar o presidente a tomar uma atitude mais drástica."

Em 2019, Heleno defendia que Bolsonaro governasse em conexão direta com as ruas. Em 2020, a voz do general foi captada numa transmissão ao vivo reclamando da fome dos parlamentares por emendas: "Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. Foda-se!"

Em 2021 e 2022, Heleno associou-se aos planos golpistas de Bolsonaro. Agora, acossado pela delação do companheiro de armas Mauro Cid, resta ao ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro recorrer ao próprio remédio. Para evitar barracos na CPI, "Lexotan na veia."

Brasil se livra de Aras, mas Lula sonha com outro antiprocurador



O Brasil se livra nesta terça-feira de Augusto Aras. Em quatro anos, Aras conquistou um lugar de destaque na história. Desce ao verbete da enciclopédia como o pior procurador-geral da República de todos os tempos.

A pretexto de "despolitizar" o Ministério Público Federal, Aras bolsonarizou a chefia do órgão. Visando o desmonte da Lava Jato, criou o lavatismo com sinal trocado, que não denuncia ninguém acima de um certo nível de poder e renda. Para "descriminalizar a política", condescendeu com políticos criminosos.

Remunerado pelo contribuinte para defender os interesses da sociedade, Aras fez opção preferencial pela advocacia dos interesses de Bolsonaro. Pagou com a omissão sua indicação fora da lista tríplice da corporação.

Simulou rigor com "averiguações premilinares". Arquivou mais de 70 acusações. Fechou os olhos para a política de estado letal na pandemia. Enterrou os indiciamentos da CPI da Covid. Associou-se por omissão ao projeto golpista que passou pelo 7 de Setembro e desaguou no 8 de janeiro.

Na abertura do ano do Judiciário, com Bolsonaro já desachado do Planalto pelo eleitor, Aras fez uma tríplice declaração de amor ao regime democrático no plenário reconstruído do Supremo: "Democracia, eu te amo, eu te amo, eu te amo."

Na semana passada, o antiprocurador fez no mesmo plenário da Suprema Corte um autodesagravo. Apresentou-se como vítima de "incompreensões e falsas narrativas". Nesta segunda-feira, agraciado por Aras com imerecida medalha da Ordem Nacional do Mérito do Ministério Público, o ministro do Supremo Dias Toffoli exagerou no agradecimento.

Toffoli atribuiu a estabilidade democrática à inépcia de Aras. "Não fosse a responsabilidade, a paciência, a discrição e a força de seu silêncio, Augusto Aras, talvez nós não estivéssemos aqui. Nós não teríamos talvez democracia". Abandonado pelo senso do ridículo, Toffoli declarou que Aras não usou o Ministério Público como "um alpinismo para outros interesses". Deu-se exatamente o oposto.

Sob Bolsonaro, Aras caprichou no puxassaquimo para tentar chegar ao Supremo. Sob Lula, escalou o antilavatismo para obter um terceiro mandato na PGR. Amealhou inacreditáveis apoios no petismo. Foi recebido no Planalto. Mas Lula preferiu buscar uma reencarnação de Aras no corpo de outro antiprocurador.