quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A lenda do fã que trocou o mito pelo isolamento



Acharam-no por acaso. Sua aparência era aterradora. Estava um fiapo, imundo, a barba na altura do peito. Não falava. Grunhia.

Nenhum documento. Trazia apenas uma foto de Bolsonaro no bolso de trás da bermuda. Vestia uma camiseta surrada, na qual se lia: "Direita Já".

Levaram-no para um hospital. Demorou duas semanas para voltar a si. Neste finalzinho de 2020, começou a falar coisa com coisa.

Em 2018, após celebrar a vitória do capitão e o anúncio de que Guedes e Moro seriam superministros, perdera-se na selva.

Sobrevivera durante dois anos por milagre, alimentando-se de ervas e raízes. O dano mental superara as sequelas físicas.

— Como vão as coisas?

O médico hesitou. Um sujeito naquelas condições, ainda traumatizado, poderia sofrer uma recaída.

— As coisas?

— Sim, doutor, as coisas. Como vão as coisas?

— Vão bem, muito bem.

— Seja mais específico, doutor. Fale-me da agenda do Paulo Guedes. Vendeu muitas estatais? Zerou o déficit fiscal? O PIB está bombando?

— Veja bem, não entendo dessas coisas. O pouco que sei é o que vejo de relance no noticiário.

— Não me enrola, doutor. O Guedes zerou o déficit no primeiro ano? Arrecadou R$ 1 trilhão com privatizações, como prometeu? O PIB decolou?

— Nenhuma estatal foi vendida.

— Mas, mas...

— Sabe como é... O Congresso... Coisa e tal... O déficit fiscal explodiu. Mas foi por culpa do coronavírus, não do ministro. Graças à pandemia, entramos em recessão.

— Coronavírus?!?!? Pandemia?!?!? Assim o senhor me assusta, doutor.

O médico sacou uma seringa. Enfiou a agulha num frasco de sedativo. O cenho crispado denunciava-lhe a tensão.

— Fique calmo, não há razão para estresse. Bolsonaro está bem-posto nas pesquisas.

— Não poderia ser diferente, doutor. Quem tem Sergio Moro como ministr... Não, não, doutor. Injeção não!

Acordou 48 horas depois. A enfermeira, desavisada, deixara a televisão ligada no telejornal. Olhos esbugalhados, viu todo o noticiário. Covid, quase 200 mil mortos, vacinação no exterior, falta de vacinas e seringas no Brasil, a Europa trancada em casa, o brasileiro desafiando o vírus em grandes festas e aglomerações, o Supremo investigando a denúncia de Moro sobre a interferência do mito na Polícia Federal, o operador de rachadinhas da primeira-família em prisão domiciliar, o apoio de Bolsonaro ao candidato do centrão à presidência da Câmara, 14,2 milhões de desempregados, inflação com viés de alta...

Fugiu naquela mesma noite, antevéspera da virada de 2020 para 2021. Um taxista diz tê-lo deixado na boca da selva. Contou que, no caminho, ouviu no rádio do carro uma retrospectiva com as frases de Bolsonaro sobre a pandemia: "é só uma gripezinha", "e daí", "todos vamos morrer um dia", o Brasil "tem que deixar de ser um país de maricas", "vacina obrigatória só aqui no Faísca", o cachorro da família Bolsonaro, "se você virar um jacaré é problema seu..."

O motorista conta que o passageiro saltou com o táxi ainda em movimento. Embrenhou-se na mata aos pulos. Grunhia como um javali. Ainda não foi encontrado. Isolou-se.

Por Josias de Souza

Festas de final de ano são eventos patológicos



Mal comparando, a pandemia do coronavírus é como uma avalanche. Cada pessoa representa uma pedra. Se infectada, ela desliza por um penhasco, e vai contaminando outras pessoas. Esse movimento, quando foge ao controle, soterra o sistema de saúde, provocando mortes. É contra esse pano de fundo fúnebre que proliferam por diferentes pontos do mapa do Brasil grandes celebrações de final de ano. Pessoas se reúnem às centenas para dançar, comer, beber e se infectar.

Convites são comercializados na internet com inusitada transparência. Flagrantes de grandes aglomerações inundam as redes sociais com hedionda naturalidade. Não bastasse a pandemia, o Brasil enfrenta surtos de insensatez. O grande problema é que a imprudência dos insensatos infecciona a precaução dos cuidadosos. Nenhum ser humano tem domínio sobre a vida e a morte. O nascimento é uma contingência. O funeral, uma fatalidade. O segredo da existência está em saber usufruir da transição entre o útero e a sepultura.

A vida se torna muito mais agradável e divertida quando conseguimos combinar a liberdade de fazer escolhas com a responsabilidade pelas escolhas que fazemos. Quem vai a uma grande festa em plena pandemia exibe a sensibilidade de uma pedra que não se sente responsável pela avalanche que provoca. E cada vez que alguém imagina que a crise sanitária não é seu problema, essa atitude individual magnifica o problema coletivo.

Quem enxerga neste ocaso de 2020 razões para participar de festejos coletivos empurra com mais força para dentro de 2021 uma avalanche que abarrota os hospitais, tira o sono dos profissionais da saúde, sobrecarrega os coveiros e dilacera a alma dos familiares e amigos dos quase 200 mil mortos que a Covid já produziu no Brasil. Se a sociedade brasileira já estivesse sendo vacinada, as festas seriam focos de irresponsabilidade. Numa quadra em que faltam ao Brasil, além de vacinas, também as seringas, a celebração é um evento patológico.

Bolsonaro dedica-se a governar as redes sociais



Admita-se que há três grandes problemas sobre a mesa: a ruína fiscal, o desemprego e a vacina. Bolsonaro não tem nada de muito relevante a dizer sobre nenhum desses temas. Em vez de governar os problemas, é governado por eles. Gasta o tempo livre de que dispõe distribuindo culpas e governando as redes sociais. Despeja nelas polêmicas e aglomerações.

Na visão de Bolsonaro, o desemprego é culpa de governadores e prefeitos, a "turma do fique em casa". A ruína fiscal é culpa do vírus, que forçou o governo a exercitar sua generosidade, distribuindo auxílio emergencial aos pobres e socorro financeiro a empresas, estados e municípios. A falta de vacinas é culpa dos fabricantes, que desdenham de um mercado vasto como brasileiro.

Se houvesse presidente em Brasília, ele estaria empenhado em recolocar nos trilhos a pauta de reformas econômicas. Isso sinalizaria apreço pela responsabilidade fiscal, que atrairia investimentos, que criariam empregos. Combinando-se tudo isso com a vacinação, o Brasil se encaminharia para algo mais parecido com a normalidade.

Neste final de ano, com suas obsessões bem encaminhadas, Bolsonaro foi à praia. Hospedou-se à custa do erário no Forte dos Andradas, uma confortável hospedaria militar, assentada no Guarujá (SP). Dispõe de praia privativa, com 400 metros de extensão. Mas o capitão e o coronavírus não gostam de privacidade.

Bolsonaro precisa ver e, sobretudo, ser visto. O vírus depende das aglomerações para infectar. Estabeleceu-se uma parceria. O capitão trocou seus 400 metros de intimidade por uma aparição na Praia Grande. O corona, presença invisível, serviu-se das cenas produzidas por seu aliado infeccioso.

Por Josias de Souza

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A tempestade perfeita que poderá custar o mandato de Bolsonaro



Se for o que resta para mostrar a que ponto chegou Bolsonaro, compare-se o seu comportamento com relação à vacinação em massa contra o vírus com o comportamento dos governantes mais autoritários do mundo, todos, como ele, de extrema-direita.

O ditador da República da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, anunciou que não se vacinará porque a Covid-19 já o pegou faz algum tempo – como se não pudesse pegá-lo outra vez. Mas a imunização no seu país começou uma semana antes do previsto.

Até abril serão vacinadas 1,2 milhão de pessoas. Numa segunda etapa, mais 5,5 milhões. Na Hungria do primeiro-ministro Viktor Orbán, um dos poucos chefes de Estado a comparecer à posse de Bolsonaro, a vacinação começou no último sábado.

A Polônia tem um governo nacionalista conservador admirado pelo presidente brasileiro. Pois bem: ali, ontem, os dois líderes dos partidos rivais Plataforma Cívica (liberal) e Lei e Justiça (conservador) foram filmados vacinando-se juntos.

Ontem também, os países da Comunidade Econômica Europeia compraram mais 100 milhões de doses da vacina da Pfizer. Em colapso desde a explosão do seu porto em Beirute, o Líbano comprou à Pfizer duas milhões de doses de vacina.

Aqui, onde nas últimas 24 horas o vírus matou 1.075 pessoas e infectou mais de 57 mil, a Pfizer indicou em nota que no momento não irá pedir autorização de uso emergencial do seu imunizante porque as exigências do governo demandam tempo.

Como uma das muitas vacinas que já foram aprovadas em outros países e que estão sendo aplicadas por toda parte não pode estar rapidamente disponível para os brasileiros? É a pergunta que Bolsonaro e seus cúmplices se recusam a responder.
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Na melhor das hipóteses, segundo o Ministério da Saúde, a vacinação contra o vírus está prevista para começar em 20 de janeiro, e na pior até o final da primeira quinzena de fevereiro. Quantas vezes você não leu previsões furadas?

Por outra parte, por que o espanto com a incompetência do governo Bolsonaro em dar início à vacinação? Quando foi que o governo dele revelou-se competente para tentar resolver um só grande problema do país nos últimos 2 anos?

O prefeito Alexandre Kalil, de Belo Horizonte, reeleito com uma votação recorde, estoca há meses seringas de sobra para vacinar os habitantes de sua cidade e de cidades próximas. O que impediu o governo federal de fazer a mesma coisa?

Fracassou o pregão eletrônico realizado ontem pelo Ministério da Saúde para a compra de seringas e agulhas. De um total de 331 milhões unidades previstas para serem adquiridas, o ministério conseguiu fornecedor para apenas 7,9 milhões. Uma titica.

Não se brinca impunemente com vidas alheias, mas Bolsonaro insiste em brincar. Gosta de viver em perigo. Por que não brinca com a própria vida, quando nada para relembrar os antigos e bons tempos de paraquedista do Exército?

Só a vacinação em massa já, e bem-sucedida, salvará o sonho de Bolsonaro de se reeleger daqui a dois anos, e mesmo assim não será tão fácil como parecia. O contrário disso será com toda certeza a abertura de um processo de impeachment.

Crime de responsabilidade é razão para a abertura de um processo de impeachment do presidente. Falhar gravemente em garantir a vida das pessoas é o maior crime de responsabilidade que um presidente pode cometer. E daí?

Daí que é por isso que Bolsonaro precisa tanto eleger Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara dos Deputados. A abertura de um processo de impeachment depende exclusivamente do presidente da Câmara. Por lá, mais de 50 pedidos repousam numa gaveta.

Por Ricardo Noblat

Mãe Joana assume rédeas da pasta da Saúde



A ineficiência do Ministério da Saúde mudou de patamar. Sob o general Eduardo Pazuello, a pasta havia se transformado numa trincheira. Os militares continuam lá. Mas assumiu o comando do plano nacional de vacinação contra a Covid uma velha conhecida dos brasileiros: Mãe Joana. Graças às artimanhas da veneranda senhora, a inépcia sanitária do governo atingiu o ápice. Nesse novo estágio, a esperança é a última que mata.

Há duas semanas, quando o brasileiro inquietava-se com a falta de vacinas, o coronel Elcio Franco, número 2 na hierarquia da Saúde, declarou num vídeo que "seria irresponsável darmos datas específicas para o início da vacinação, porque depende de registro" na Anvisa. O sonho da vacina certificada ainda não foi realizado. Mas o governo acaba de realizar o pesadelo da falta de seringas. Numa licitação para a compra de 331,2 milhões de seringas, amealhou 7,9 milhões.

O almoxarifado vazio encheu de irresponsabilidade a oratória do braço direito do general Pazuello. Mesmo desaparelhado, o coronel Elcio animou-se a fixar um calendário para a vacinação. O planejamento oficial ainda não permite à plateia saber quando chegará a sua vez. Mas o brasileiro pelo menos já pode raciocinar com hipóteses, desde as mais amplas —na pior das hipóteses o vírus vai me matar, na melhor das hipóteses não— até as mais específicas.

No caso do que nos espera com a gestão de Mãe Joana na Saúde, o leque de hipóteses é enorme, já que ninguém sabe o que foi feito da fama de mestre em logística que costumava ser atribuída ao general Pazuello. "Na melhor hipótese, nós estaríamos começando a vacinação a partir do dia 20 de janeiro", disse o coronel Elcio, com gelatinosa firmeza. "Num prazo médio, entre 20 de janeiro e 10 de fevereiro. E, no prazo mais longo, a partir de 10 de fevereiro."

Dias atrás, ao discursar na cerimônia de lançamento de um plano de vacinação arrancado a fórceps em parto conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, o pseudoministro Pazuello sapateou sobre os esquifes da pandemia: "Somos os maiores fabricantes de vacina da América Latina. Pra quê essa ansiedade, essa angústia?".

Nesta semana, Bolsonaro declarou que não cabe ao governo ir atrás de vacinas. Os fabricantes é que devem fazer fila na Anvisa. Onde já se viu negligenciar um "mercado consumidor" gigantesco, com "210 milhões de habitantes."

O coronel Elcio, estufando o peito como uma segunda barriga, ecoou o capitão: "O Ministério da Saúde, enquanto Ministério da Saúde, tem feito a sua parte. Fizemos o plano [de vacinação], estamos com a operacionalização pronta, nos preparando para esse grande dia. Mas precisamos que os laboratórios solicitem o registro."

Sob o comando de Mãe Joana, como se vê, o Ministério da Saúde virou uma pasta de ficção, gerida por gênios incompreendidos. Há apenas dois problemas: 1) a diferença entre a genialidade e a estupidez é que a genialidade tem limites; 2) a ficção é muito confortável, mas a realidade ainda é o único lugar onde se pode obter vacinas e seringas.

Por Josias de Souza

Bolsonaro tortura fatos para tirar vacina de foco



Com um hirto 't' no início, outro 't' no meio, um 'or' gutural seguido de um 'ur' que evoca dor, TORTURA é uma palavra de cabelo em pé, assustada da própria significação. Desafiada, a ditadura instituída em 1964 converteu a tortura e a execução de adversários em política de estado. Debochar e duvidar dos suplícios impostos à torturada Dilma Rousseff, como fez Jair Bolsonaro, é um ultraje típico do ser desumano em que o personagem se converte sempre que lhe convém.

Há método na indignidade de Bolsonaro. Ele carrega afrontas no bolso desde os tempos de deputado. A diferença é que instilava ódio e desinformação em comícios realizados no plenário da Câmara. Agora, dispõe da tribuna especial que a Presidência da República oferece. Algo que o ex-presidente americano Theodore Roosevelt chamou de bully pulpit —púlpito formidável, numa tradução livre.

De um bom presidente, dizia Roosevelt, espera-se que aproveite a vitrine privilegiada para irradiar confiança e bons exemplos. Bolsonaro faz o oposto. Ele usa o cargo como palanque para envenenar o cotidiano. Produz insegurança e exibe práticas deletérias.

No momento, Bolsonaro tortura os fatos que enodoam o regime de 1964 para retirar de foco a realidade atroz de 2020, com tudo o que o ano evoca: do negacionismo à falta de vacinas. O capitão ainda não notou. Mas a tática é inútil. Negar fatos históricos como a ditadura e a tortura é difícil. Fingir que a inépcia governamental não tem nada a ver com a falta de vacinas é tão impossível quanto esconder mais de 190 mil cadáveres.

Por Josias de Souza

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Negociação avança e Davi Alcolumbre deve assumir ministério no governo



Tudo indica que Davi Alcolumbre (DEM-AP) deixará o Senado para assumir algum ministério no governo de Jair Bolsonaro. O atual presidente do Senado passou parte da tarde desta segunda-feira, 28, em reunião por videoconferência com o presidente da República — esses encontros se tornaram cada vez mais frequentes nas últimas semanas. Segundo fontes próximas a Alcolumbre, o presidente Bolsonaro entregou a ele um convite para assumir um ministério a partir de 2021. As possibilidades, por ora, são o Ministério do Desenvolvimento Regional (encabeçado por Rogério Marinho), o Ministério de Minas e Energia (comandado por Bento Albuquerque) e a Secretaria do Governo (Luiz Eduardo Ramos). Por último, o Ministério da Saúde, principal pasta no combate à pandemia do novo coronavírus e alvo de diversas polêmicas ao longo de 2020, também surge como opção.

Ainda não há clareza de qual será o movimento de Alcolumbre, mas ele está tentado a aceitar a nova posição. O senador teria deixado nas entrelinhas uma predileção para assumir a pasta comandada por Rogério Marinho, que conta com força para promover projetos econômicos e dar vazão a projetos de parlamentares, o que lhe daria mais cacife para conseguir eleger um sucessor na presidência do Senado. No entanto, há dentro do governo o reconhecimento de que o ex-deputado Marinho tem cumprido a sua função no cargo e guarda certo prestígio junto a Bolsonaro, embora tenha se envolvido em disputas com o ministro da Economia, Paulo Guedes, um dos alicerces da gestão do capitão reformado. “Até a prorrogação da Lei Aldir Blanc Davi iria tratar”, diz uma fonte próxima ao presidente do Senado, sobre a reunião entre Alcolumbre e Bolsonaro. “Esses ministérios citados estão no radar, mas pode mudar. Nada certo…”, reitera. A aproximação entre os dois se intensificou após o Supremo Tribunal Federal (STF) negar a possibilidade de reeleição de Alcolumbre na presidência do Senado. Há de se destacar que ambos sempre mantiveram um clima amistoso e de o senador ser considerado alguém que fala a língua da política que agrada Bolsonaro.

A ideia do governo é usar o trânsito político de Alcolumbre para a aprovação das reformas estruturantes que consideram terem sido “interditadas” pelo Congresso em 2020, apesar dos partidos aliados do governo também terem travado a pauta de votações em muitos momentos. Bolsonaro quer, como contrapartida, do senador formar uma candidatura única para a sua sucessão na casa. Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo no Congresso, é um nome que agrada a Bolsonaro. Há quem avalie a estratégia como um movimento de defesa do presidente da República, que teria o intuito de blindar eventuais processos que seu filho Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) possa sofrer.

Alcolumbre atua na política desde 2001, após ser eleito vereador no Amapá. Logo, ascendeu ao cargo de deputado federal e, desde 2015, é senador pelo estado amapaense. Tem curso superior incompleto na área de Ciências Econômicas pelo CEAP (Centro de Ensino Superior do Amapá). Foi incumbido de representar o Senado na Conferência das Nações Unidas Sobre Mudanças do Clima (COP-23), em 2017, na Alemanha, e participou, dentre outras coisas, dos eventos promovidos pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em Nova York e Washington, em 2019.

Na Veja

Ala radical bolsonarista detona os chineses, mas o setor de compra do governo segue cliente fiel de companhia de tecnologia e segurança



Veja como o discurso contra a China, tão presente na ala radical do bolsonarismo, não chega ao dia a dia do departamento de compras do governo.

Recentemente, a Nuctech do Brasil, braço local de uma companhia chinesa de tecnologia, fechou contratos milionários com o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência para fornecer equipamentos de raio-X tanto ao Planalto quanto à Agência Brasileira de Inteligência.

A companhia chinesa, segundo dados do governo, tem uma longa e milionária lista de negócios fechados com governos brasileiros desde os tempos de Dilma Rousseff. São mais de 30 milhões de reais em contratos.

No Radar da Veja

sábado, 26 de dezembro de 2020

Bolsonaro nega no Supremo a omissão ambiental que os fatos confirmam


AM - DESMATAMENTO/AMAZÔNIA/QUEIMADAS - GERAL - Imagem registrada no dia 26/08/2019 mostra unidade de conservação ambiental atingida pelo fogo na região de Manicoré, no Amazonas. Em meio à alta do desmatamento e das queimadas na Amazônia, o Grupo Especializado de Fiscalização (GEF) do Ibama, considerado a tropa de elite do instituto para o combate ao crime organizado na área ambiental, não foi a campo neste ano para combater crimes desse tipo. O Ibama é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Isso se soma a uma queda geral no número de autuações do Ibama na Amazônia. Até 23 de agosto foram aplicadas 1.639 multas por crimes contra a flora na região - queda de 42% em relação ao mesmo período do ano passado. É também a menor taxa desde 2010. 26/08/2019 - Foto: GABRIELA BILó/ESTADÃO CONTEÚDO Imagem: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo

Em resposta encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro apresentou-se como protetor das florestas. Negou que seu governo tenha se omitido no combate ao desmatamento. A pose é boa. Mas um presidente da República não pode exagerar na teatralidade. É preciso que, por trás da pose, exista uma conexão qualquer com a realidade.

Sob Bolsonaro, o governo negligenciou tanto o meio ambiente que acabou conspurcando o ambiente inteiro. A noção de que o crime ambiental avança é confirmada pelos fatos. Notícia veiculada pela Folha informa: de janeiro a novembro, as queimadas consumiram 116.845 km² do território da Amazônia e do Pantanal. Isso corresponde a quase três estados do Rio de Janeiro.

O presidente manifestou-se sobre meio ambiente no âmbito de uma ação movida no Supremo. Nela, o partido Rede Sustentabilidade aponta falhas na proteção ambiental e pede à Corte que imponha ao governo providências concretas para combater o desmatamento. A ação judicial é de agosto do ano passado. Mas só agora a relatora Cármen Lúcia requisitou a manifestação do Planalto.

A resposta foi encaminhada por meio da Advocacia-Geral da União. A pretexto de refutar a acusação de que o governo é omisso, o documento enumera ações deflagradas para enfrentar as queimadas e o desmatamento. Ironicamente, algumas das providências mencionadas confirmam a impressão de que, no setor ambiental, a gestão Bolsonaro é parte do problema.

Mencionou-se, por exemplo, o uso das Forças Armadas no combate às queimadas. Faltou esclarecer que os militares foram mobilizados para suprir a deficiência resultante da desmobilização dos órgãos ambientais. "O Ibama não atrapalha mais", disse o próprio Bolsonaro, há dois meses. "Por isso o Ricardo Salles (ministro do Meio Ambiente) apanha."

O documento citou também a criação do Conselho Nacional da Amazônia Legal e a proibição do uso de fogo no roçado por 120 dias. Comandado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, o conselho surgiu como uma tentativa de reverter —por ora sem sucesso— a imagem antiambiental do governo. Algo que atrapalha os negócios e afugenta investidores. O veto ao fogo veio depois que o fósforo já havia sido riscado.

Além de Bolsonaro, também o ministro Ricardo Salles terá de enviar explicações ao Supremo. Quando a ação foi protocolada, há um ano e quatro meses, ainda não havia a fatídica declaração de Salles na reunião ministerial de 22 de abril. Depois que o ministro afirmou que era preciso aproveitar a comoção do coronavírus para "passar a boiada" sobre os entraves da legislação ambiental, qualquer coisa que ele disser em defesa do meio ambiente soara artificial diante dos fatos.

Por Josias de Souza

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Hoje, a melhor antevisão de futuro é ver Bolsonaro no banco dos réus



Vai chegando ao fim um ano horrível, mas não nosso desassossego. 2021 nos trará ainda muitas dificuldades e muitos desafios também na saúde. A pandemia está longe do fim, e o processo de vacinação em massa não será tranquilo. Não temos um governo, mas uma balbúrdia liderada por um fanfarrão com discurso de homicida em massa.

Também a democracia, por óbvio, continuará sob permanente ataque. E, ainda que seja estupefaciente, a questão democrática passa hoje por essa área.

Jair Bolsonaro, um depredador contumaz de institucionalidade, escolheu a saúde dos brasileiros como campo de batalha ideológica, o que eleva a insanidade a um patamar inédito.

Que outro presidente ou que político no mundo ousariam tratar o coronavírus — que já matou, até o dia 23, 189.220 pessoas, com 961 mortes só nesta quarta — como "a melhor vacina"?

Bolsonaro o fez durante visita a Santa Catarina. Negou-se abertamente a usar uma máscara que lhe foi oferecida: "Eu não uso". Estava cercado de outros desmascarados.

O presidente manipula o desalento da população e os contratempos que variados graus de isolamento social impõem, fazendo proselitismo contra a vacina e tentando desmoralizar os cuidados mínimos para evitar a contaminação.

Tornou-se abertamente um "necropolítico" — um político da morte —, incentivando tanto os seus seguidores como o povo a desafiar uma doença que pode ser letal. Pessoas já recuperadas relatam efeitos colaterais de longa duração.

Enquanto brasileiros vão se aglomerando nas praias e nas ruas, o Reino Unido decreta lockdown porque duas mutações do vírus, ainda mais contagiosas, se espalham. A reinfecção é, sim, possível e já está entre nós.

Seguimos, no entanto — ou parte considerável dos brasileiros —, como se não houvesse amanhã. Ou como se o amanhã fosse eterno, o que dá na mesma.

Nada há de muito bom ou otimista a declarar, só a desejar. A única forma de ser otimista é sendo um realista prudente. Só é possível melhorar apontando os erros, reconhecendo-os, corrigindo-os. Só assim o amanhã pode ser melhor. Ou pioramos. E, como costumo escrever aqui, países nunca fecham as portas, mas podem entrar em decadência contínua.

Protejam a si mesmos, àqueles que lhes são caros e aos outros. Tal postura, por enquanto, é a melhor vacina.

Só um potencial homicida em massa — variante genérica do genocida — escolhe o vírus como o melhor imunizante.

Os democratas brasileiros precisam se organizar para criminalizar esse tipo de discurso. Ele tem de ser banido da esfera política e precisa ser tratado na área penal. Como crime de lesa humanidade.

Assim, os melhores votos que podemos deixar sobre o futuro anteveem que Bolsonaro ainda responderá por seus crimes de responsabilidade e por suas falas homicidas.

Este é o único bem que ele pode fazer ao Brasil: ser um exemplo de que atos e falas têm consequência na democracia.

Sei que o Natal não será tão feliz e que o novo ano não será lá essas coisas.

Cultivemos, no entanto, nosso jardim.

Por Reinaldo Azevedo

Rossi é o nome do grupo liderado por Maia; Bolsonaro no jogo do perde-perde


Arthur Lira e Baleia Rossi: o primeiro é o homem de Bolsonaro para tentar submeter a Câmara aos caprichos do Planalto; o segundo é o nome apoiado por uma coalisão de 11 partidos que defendem a independência do Legislativo, apesar das muitas diferenças que... os unem! Imagem: Reprodução/ Ailton de Freitas/Agência O Globo

O grupo de partidos liderado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, indicou o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) como candidato ao comando da Casa. A definição do nome é prenúncio de severas dificuldades para o presidente Jair Bolsonaro na Casa se ele continuar a fazer a coisa errada. E aí pouco importa que vença a peleja. Já explico. Antes, algumas considerações sobre números.

A votação é secreta — e isso significa, por óbvio, que haverá defecções dos dois lados. Não fosse assim, bastaria a Rossi correr desde já para o abraço. Darão apoio oficial à sua postulação as seguintes legendas, além do próprio MDB: DEM, PSL, PSDB, Cidadania, PT, PV, PSB, PDT, PC do B e Rede. Se todos os integrantes de cada bancada sufragassem o nome escolhido, seriam 280 votos. Bastam 257 para eleger um presidente em votação única, sem precisar proceder a um segundo turno entre os dois mais votados.

Ocorre que a coisa não é bem assim. Estima-se que metade, talvez um pouco menos, da bancada do PSL, por exemplo, ficará com Arthur Lira (PP-AL), o candidato apoiado por Bolsonaro. Parte da bancada do PSB já havia manifestado apoio ao postulante bolsonarista. O Diretório Nacional da legenda — que segue de centro-esquerda, embora o partido tenha, digamos, "endireitado" bastante — barrou o apoio a Lira por 80 votos a zero. A questão é saber quem põe o guizo no pescoço do gato.

Assim, é certo que Rossi não tem, nesse grupo, os 280 votos. É provável que não chegue aos 257 necessários. Precisará, pois, contar com o apoio de legendas que não integram bloco nenhum e, por óbvio, conta com traições também do outro lado. Estão oficialmente com Lira os seguintes partidos: Progressistas, PL, PSD, Avante, Solidariedade, Patriota, Pros. PSC e Republicanos. Ao todo, são 194 parlamentares.

Também nesse caso, a adesão do partido não quer dizer fidelidade total. O escolhido pelo grupo liderado por Maia tem votos, com absoluta certeza, no Progressistas, por exemplo. Aliás, se a escolha ficasse apenas ao gosto do atual presidente da Câmara, o indicado seria alguém desse partido: Aguinaldo Ribeiro (PE). Ele não é o único deputado da legenda que se negará a votar em Lira. Também há defecções, entre outros, no PSD e até no Republicanos, a legenda de Edir Macedo.

Assim, o resultado é incerto, mas é claro que sai como favorito quem tem mais gordura para resistir a traições e dissensões. E é claro que esse nome é Baleia Rossi. Formalmente, seu bloco conta com 86 deputados a mais. Notem ainda que, somando-se todos os parlamentares dos dois grupos, chega-se a 474. Há, portanto, um grupo de 39 que, por enquanto, não apoiam ninguém.

O governo, para usar uma frase que já é um clássico, está "fazendo o diabo" para auxiliar Arthur Lira. De liberação de emendas a promessa de ministérios, só não vale dançar homem com homem nem mulher com mulher — afinal, convenham, esse é um governo que não faz essas coisas. O resto vale.

AS CONSEQUÊNCIAS
A entrada de Jair Bolsonaro na disputa parte de uma premissa falsa, que contaminou também Paulo Guedes, ministro da Economia: a de que Maia criou dificuldades para o governo no comando da Câmara. Isso é tão falso como a solução que Guedes apresentou para enfrentar a crise gerada pela pandemia, lembram-se? Este especialista no próprio pensamento propôs três parcelas de R$ 200 para os informais e que os trabalhadores fossem pra casa com contrato de trabalho suspenso. Depois se disse: "Não era bem aquilo'. Era bem aquilo.

Quem se encarregou de dar viabilidade política ao auxílio emergencial, que salvou a cabeça de Bolsonaro, foi justamente... Maia! Assim com foi o principal responsável pela aprovação da reforma da Previdência. E é quem mais tem buscado criar condições para votar as outras reformas, que não andam em razão da incompetência do governo — e da do ministro da Economia em particular.

Maia pode, sim, ser gloriosamente acusado — e aqui vão meus parabéns — por não ter se engajado na agenda reacionária de Bolsonaro, que, por óbvio, não trazia bem nenhum ao país. Ao contrário: contribuiria para exacerbar ainda mais os ânimos.

Quando buscava o apoio das esquerdas, Arthur Lira tentou se comprometer com a resistência à agenda de costumes do bolsonarismo. E alguns caíram na conversa. Ora, então ele seria o nome de Bolsonaro para quê, com que finalidade? Não seria em razão de sua adesão à agenda liberal e reformista, coisa que o centrão não é. O que conta é mesmo a inflexão reacionária que o presidente gostaria de imprimir na Casa.

Se o grupo de Maia vence a parada, é claro que Bolsonaro sofre uma derrota importante. Não creio que Rossi venha a criar dificuldades para a agenda de reformas, embora as esquerdas não gostem dela. Mas que se dispute no voto. O necessário é que se faça um pacto, como se tenta fazer, pela civilidade política — que represente, para citar um exemplo, um "não" à excludente de ilicitude.

Se Lira vencer, haverá, sim, o esforço em favor de um retrocesso na qualidade da vida democrática — e, ora vejam!, o ambiente pró-reformas se deteriora um pouco. O centrão não é conhecido por seu amor às teses liberalizantes. Juntar-se-ia, entendo, o ruim com o pior: a resistência às reformas com o esforço obscurantista. Não daria certo. Bolsonaro entrou na disputa para perder perdendo e perder ganhando.

O presidente ainda teria tempo de fazer a coisa certa: sair da disputa e deixar que vença quem conseguir mais votos por seu próprio esforço. Definido o vitorioso, o certo é tentar a convivência institucional, respeitando-se a independência entre os Poderes.

Mas isso que acabo de escrever, eu sei, é sabedoria convencional.

Esse governo não é convencional.

Tampouco é sábio.

Por Reinaldo Azevedo

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Trevas da Ignorância (Felicio Vitali)




No início do ano que vem o governo chega a metade do seu mandato. O saldo é negativo em todos os sentidos e em todas as direções em que se olhar. 

Um levantamento do jornal O Estado de São Paulo aponta que nenhuma promessa de campanha foi plenamente cumprida e os "doze principais eixos" da campanha, viraram um grande fiasco. 

Numa cara de pau sem limite o governo, que tem ojeriza em fazer o que é preciso, insiste em mentir e tenta transferir ao congresso e STF, a responsabilidade da sua incapacidade de entregar as suas promessas. 

Aliás, é verdade que em muitos casos, foi até bom que não se tenha cumprido. Estaríamos muito pior, caso fosse levada até o fim, a exemplos, as pautas de costumes, da educação e de segurança pública. 

Até as prometidas medidas contra a corrupção, ficaram pelo caminho e se não fosse o STF empurrar o procurador geral, a lata de lixo seria o destino de todas as denúncias. 

Na economia, o famoso "posto Ipiranga" prometeu uma gasolina de octanagem Premium e entregou uma mistura que só faz a felicidade dos "mecânicos", estabelecidos nos envidraçados prédios da região da Faria Lima. 

O governo "liberal" não privatizou e não fechou uma única empresa estatal. Pelo contrário, além de não cumprir com as metas de privatização, ainda abriu duas novas empresas e ocupou as demais com os apadrinhados corruptos do Centrão. 

De resto, todos os ministérios, de alguma forma fizeram o país retroceder, com suas desastrosas administrações. Não é possível apontar um que fez apenas o básico e se salvou do caos geral. 

Desnecessário falar do menino da boiada do ministério do meio ambiente, do retardado terraplanista do ministério do exterior e do general que caiu de paraquedas no ministério da saúde. Esses ganharam de todos os demais na dissimulação, incompetência e insensibilidade, empatando com o posto Ipiranga fake. 

A última do cara de tartaruga preso num peito de pombo, foi achar que o povo está "muito ansioso por vacinas". 

Mas o pior de tudo, é ver o mundo com as vacinas acendendo uma luz no fim do túnel e aqui, a ignorância tentando apagar a lamparina, jogando sobre ela trevas da imbecilidade e cloroquina. 

O mais triste ainda, como disse o articulista do jornal, é constatar que a mediocridade do governo está nos levando ao fundo do poço e, na maior desfaçatez, seus apoiadores acham que será cavando cada vez mais fundo, é que sairemos do buraco.

Por Felicio Vitali

CRIVELLA E VERDADES INCONVENIENTES 1: Incompetência, religião e roubalheira



Vamos a algumas considerações sobre a prisão preventiva do ora afastado prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e de algumas pessoas do seu entorno, correndo o risco — e isto não é novo — de desagradar a gregos, troianos e guerreiros sem partido, dispostos apenas a atirar.

A IGREJA UNIVERSAL
De saída, destaque-se que foram para a cadeia dois parentes de Edir Macedo, comandante máximo da Igreja Universal do Reino de Deus: o próprio Crivella, que é seu sobrinho, e Mário Macedo, primo de Edir, braço direito do prefeito e homem de confiança do próprio patriarca. Embora católico, Mário já exerceu cargo de comando, por exemplo, na Line Records, uma das empresas ligadas à Universal. Quando tem alguma desconfiança sobre a fidelidade, vamos dizer, financeira de seus subordinados, Macedo -- o Edir -- recorre a Macedo, o Mário, para a prova dos noves. O homem é uma espécie de auditor "in pectore" do empresário Edir Macedo.

É evidente que é impossível dissociar essas prisões da natureza do Republicanos, partido que tem uma singularidade: nenhum outro é braço de uma denominação religiosa. Este, com justiça, é considerado propriedade da Universal — de Macedo, portanto. Crivella é um bispo licenciado da Igreja, assim como Marcos Pereira, deputado (SP), presidente da legenda e primeiro vice-presidente da Câmara.

O ABRIGO DOS BOLSONAROS
O entorno do presidente Jair Bolsonaro tenta fazer o diabo -- com o perdão da palavra em texto em que falamos de homens tão pios -- para evidenciar que ele nada tem a ver com Crivella. Bem, os fatos apontam na direção oposta. O mandatário de Brasília pode não ter relação com as acusações que pesam contra o prefeito, mas as vinculações políticas, hoje, são escancaradas.

O Republicanos serviu de abrigo aos Bolsonaros: o senador Flávio e o vereador Carlos aportaram na legenda à esteira da crise do clã com o PSL. Quando a turma de Macedo abriu os braços para o Zero Um, o dito escândalo da "rachadinha" — diminutivo simpático para designar "peculato (roubo de dinheiro público) — já estava dado em todos os seus contornos.

Logo, pode-se dizer, sem medo de errar, que alguém com a biografia de Flávio não constrange o senso de moralidade do Republicanos — e, por consequência, dos donos da legenda: a igreja e seu patriarca. O partido chegou a ter alguma dúvida se aderia ou não ao bloco formado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), que ainda escolherá um nome para disputar a Presidência da Câmara, se lançava um candidato (o próprio Pereira) ou se embarcava na nau bolsonarista, liderada por Arthur Lira (PP-AL). Bidu! Os valentes escolheram o capitão.

Até porque havia uma dívida de gratidão: o presidente abraçou a candidatura micada de Crivella à reeleição: de forma enfática no primeiro turno; com menos entusiasmo no segundo. E também esse alinhamento expõe a natureza de Crivella, do Republicanos e do mercado ideológico da fé.

INCOMPETÊNCIA ASSOMBROSA
Ainda que Crivella fizesse uma gestão honesta como os anjos, é de se notar a incompetência da gestão como variável independente. Não são assim tão raros os casos em que a roubalheira convive com a prestação de serviços, ainda que estes não primem pela excelência -- e que se note: estamos falando de crime, e criminosos têm de ser punidos.

A gestão de Crivella chega a ser estupefaciente pela inércia, pela inabilidade, pela incapacidade técnica, pela pasmaceira... E, claro!, a população pobre é quem mais padece com a ruindade. Segundo o Ministério Público do Estado, há mais do que isso: também há a roubalheira. Vale dizer: o mau-caratismo teria se juntado à deficiência técnica. Uma coisa é certa: a cidade do Rio vive os últimos dias da pior gestão da sua história.

REACIONARISMO ASQUEROSO
A principal vitrine dos Republicanos era a Prefeitura do Rio -- uma exposição, na verdade, de desastres. A eventual reeleição de Crivella era considerada essencial para tentar minimizar a memória terrificante dos primeiros quatro anos. Sem se dar conta do desgaste da imagem de Bolsonaro nas grandes cidades, o partido apelou ao presidente.

Não deu certo. Ainda que o "capitão" tenha congregado os reacionários todos no apoio a Crivella, o que se viu foi uma consolidação de rejeições solidárias. Crivella já tinha na sua biografia como prefeito o recolhimento da HQ dos Vingadores que trazia um beijo gay na capa. A união com Bolsonaro na disputa deste ano levou a campanha para o esgoto da extrema direita. No auge da delinquência, o prefeito ora encarcerado chegou a dizer que a eventual vitória de Paes implicaria a entrega da Educação para o PSOL, que, então, levaria para as escolas a promoção da pedofilia.

Já não era uma campanha, mas um vômito. Nem o PSOL assumirá a educação. E, por óbvio, se assumisse, a acusação de pedofilia é uma estupidez criminosa.

O CARÁTER DO REPUBLICANOS
Essa inflexão delirantemente reacionária está menos para uma convicção do que para um oportunismo, o que não melhora em nada a moral da história. Até piora. Expõe o caráter de um grupo político que constituiu, por exemplo, a base de apoio ao PT quando este estava no poder.

Dilma Rousseff foi uma das estrelas da inauguração do chamado "Templo de Salomão", a faraônica sede da Universal em São Paulo, e Crivella foi seu ministro da Pesca entre 2 de março de 2012 a 17 de março de 2014. Assim que foi indicado para o cargo, resumiu a sua experiência no assunto:
"Nem sei colocar uma minhoca no anzol. Eu preciso aprender muito. Conheço um pouquinho na teoria e muito menos na prática. Vai ser mesmo um intensivão".

E como se justificava a adesão de uma estrela da Universal, com convicções genericamente conservadoras, a um governo nominalmente de esquerda? Crivella deu uma resposta que os integrantes do Republicanos dariam hoje para justificar a parceria com Bolsonaro:
"Espírito público, político, de saber como as coisas caminham, resolver as controvérsias, eu diria sossegar as vaidades e egos, isso eu tenho boa experiência".

O prefeito agora encarcerado, sob a acusação de liderar uma organização criminosa, agarrado ao que a extrema direita produziu de mais abjeto, servia a um governo de esquerda há pouco mais de seis anos.

O CARÁTER DA UNIVERSAL
Aqui é preciso pensar um tanto o pentecostalismo muito particular da Igreja Universal do Reino de Deus. Uma das precursoras no país da chamada "Teologia da Prosperidade" -- uma espécie de "aposte, com uma oferta à igreja, que Deus responderá com abundâncias" --, a denominação comandada por Edir Macedo reflete algumas heterodoxias do próprio líder.

Se, para boa parte do pentecostalismo — e do cristianismo —, o aborto, por exemplo, é uma abominação, não é essa a convicção de Macedo.

Em vídeo desaparecido do Youtube, ele fez uma espécie de palestra. E afirmou:
"Eu pergunto: 'O que é melhor? Um aborto ou uma criança mendigando, vivendo num lixão?' O que é melhor? A Bíblia fala que é melhor a pessoa não ter nascido do que ter nascido e viver o inferno. Eu sou a favor do aborto, sim. E digo isso alto e bom som, com toda a fé do meu coração. E não tenho medo nenhum de pecar. E, se estou pecando, eu cometo este pecado consciente... "Se'... Eu não acredito nisso. É uma questão de inteligência, nem de fé. Lá em Nova York, depois que foi promovida a lei sobre o aborto, a criminalidade diminuiu assustadoramente. Por quê? Porque deixou de nascer criança revoltada, a criminalidade diminuiu".

Macedo dizia estar amparado por um trecho do Eclesiastes (6,3) para defender seu ponto de vista, a saber:
"Se um homem tem cem filhos e vive muitos anos, por mais numerosos que sejam os dias de seus anos, se sua alma não se sacia de felicidade e nem sequer lhe dão uma sepultura, eu digo que um aborto é mais feliz do que ele".

É evidente que nada há aí que justifique o aborto. Ao contrário, a prática é citada como o extremo da fealdade.

O que demonstro é que as heterodoxias políticas do Republicanos/Universal são compatíveis com suas heterodoxias teológicas. O grupo político que já serviu ao petismo — e do qual o petismo se serviu — é aliado circunstancial de Bolsonaro. E nada impede que possa buscar outras alianças, produzindo, no caminho, desastres como Crivella.

CRIVELLA E VERDADES INCONVENIENTES 2: Preventiva, domiciliar e açodamento


A defesa de Marcelo Crivella recorreu ao STJ contra a prisão preventiva. O ministro Humberto Martins, presidente do tribunal, no exercício do plantão judicial, converteu a decisão em prisão domiciliar, com uso de tornozeleira e restrição de contato com investigados. Considerou as acusações graves, mas não viu motivos para que não fosse substituída por cautelares diversas da prisão. Então vamos ver.

As acusações que pesam contra o prefeito são pesadas.

Afirma o Ministério Público do Estado:
"O vértice da organização criminosa é ocupado por Marcelo Crivella, que, na qualidade de Prefeito do Rio de Janeiro, concentra em suas mãos as atribuições legais indispensáveis para a consecução do plano criminoso, meticulosamente elaborado pela organização criminosa. Em outras palavras, seu status funcional de alcaide lhe confere, e a mais ninguém, a capacidade de executar e determinar a execução dos atos de ofício necessários à materialização das escusas negociatas".

O objetivo do grupo, diz o MP é
"Aliciar empresários para participação nos mais variados esquemas de corrupção, sempre com olhos voltados para a arrecadação de vantagens indevidas mediante promessas de contrapartidas".

Sendo mesmo assim, o lugar do prefeito e dos que atuaram com ele é a cadeia. Mas depois de condenado.

Na abordagem de verdades incômodas (leia mais aqui), faço, nesse caso, a pergunta que tem se tornado corriqueira no país: a prisão preventiva era necessária e atende aos requisitos previstos no Artigo 312 do Código de Processo Penal, a saber: garantia da ordem pública ou econômica, garantia da instrução criminal ou risco de não aplicação da lei penal (fuga)?

Crivella tem mais nove dias de mandato. Para sustentar o pedido de prisão antes do oferecimento da denúncia, suponho que o MP tenha recolhido já uma pletora de indícios ou provas — e contundentes o bastante para convencer a desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, que decretou as prisões e as manteve depois da audiência de custódia.

Pergunta: nos nove dias restantes, essas provas correriam algum risco? O prefeito cometeu algum outro crime que não aqueles que devem compor a denúncia, quando houver? Por determinação constitucional, o foro dos prefeitos é o Tribunal de Justiça (Artigo 29). A partir do dia 2 de janeiro, no entanto, o caso de Crivella terá de migrar a para a primeira instância, já que jurisprudência do Supremo devolve para essa esfera os processos

Lembro tese definida pelo tribunal no julgamento da Ação Penal 937:
"(I) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e
(II) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo."

O caso de Crivella, que nem denúncia tem, está muito longe da fase das alegações finais. Parece-me que a prisão preventiva, nessas circunstâncias, atende mais a um certo clamor do que a rigor da Justiça. Convém lembrar sempre que os motivos de uma preventiva não devem se confundir com os motivos de uma condenação.

Crivella, como exponho nestes dois artigos, encarna tudo o que mais abomino em política. Mas me oponho ao pega-pra-capar judicial que ele e seus aliados apoiaram um dia. Que seja vítima daquilo que seus próprios partidários incentivaram não muda a natureza das coisas.

A prisão se dá durante o recesso judicial, que começou no dia 20 — e o presidente do TJ responde pelo tribunal, a menos que Rosa Helena tenha comunicado que continuaria a despachar, o que é permitido. De toda sorte, junto com a prisão, veio o afastamento do mandato — ainda que uma coisa pareça implicar a outra, são distintas.

Parece-me que só um colegiado do TJ poderia tomar essa medida, ainda que o mandato de Crivella esteja na reta final. O país não pode correr o risco de banalizar o afastamento de pessoas eleitas de seus respectivos cargos por meio de decisões monocráticas, mormente quando tomadas em situações excepcionais.

Martins amansou a decisão da desembargadora, mas não a contestou. Esse mesmo tribunal viu um de seus ministros afastar monocraticamente um governador de Estado.

Pode até haver aqui em mim um quê de implacabilidade, que se regozijaria com a ida de Crivella para Bangu 8, o que não aconteceu ainda. Um gosto pessoal não se confunde com a questão institucional. Hoje é Chico. Amanhã é Francisco.

Ser Crivella o político odioso que é não pode abrir as porteiras para uma decisão arbitrária. Ou melhor: essas porteiras, em muitos outros casos, estão abertas faz tempo. A prisão de um político cuja trajetória repudio não me leva a um juízo oportunista a respeito. Mesmo contra oportunistas.

Por Reinaldo Azevedo

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

STF vira Supremo Tribunal da Família Bolsonaro


Jair Bolsonaro acompanhado dos filhos Flávio, Eduardo e Carlos Imagem: Roberto Jayme/Ascom/TSE

A família Bolsonaro entra no ano de 2021 com o pé esquerdo. Pai e filhos exibem seus calcanhares num desfile compulsório pelos escaninhos do Supremo Tribunal Federal. Estão em cartaz encrencas novas e investigações prorrogadas.

Sob a supervisão do ministro Luís Roberto Barroso, o deputado Eduardo Bolsonaro chega ao Ano Novo como alvo de apuração da Procuradoria da República sobre o uso de dinheiro vivo na compra de imóveis no Rio de Janeiro. Coisa de R$ 196 mil, em valores corrigidos pela inflação.

A investigação é preliminar. Mas, considerando-se o histórico de Barroso, pode se tornar definitiva. O ministro não vê com naturalidade políticos que têm ojeriza ao sistema bancário.

Em 2018, ao votar a favor do envio de Aécio Neves para o banco dos réus, Barroso não digeriu a alegação do tucano de que uma propina recebida da JBS em espécie era apenas um empréstimo do amigo Joesley Batista.

"No mundo dos negócios lícitos", disse Barroso na ocasião, "um pagamento de R$ 2 milhões em quatro parcelas de R$ 500 mil se faz por transferência bancária."

Nas palavras do ministro, "ninguém sai por aí transportando mochilas e malas de dinheiro a menos que haja alguma coisa errada na operação."

Em outra iniciativa que terá desdobramentos depois do Réveillon, a ministra Cármen Lúcia ordenou ao procurador-geral Augusto Aras que apure a suspeita de que Jair Bolsonaro colocou a engrenagem da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, a serviço da defesa do primogênito Flávio no caso da rachadinha, eufemismo para corrupção.

Ao enumerar os delitos que podem ter sido cometidos, Carmen Lúcia incluiu na lista a expressão que faz tremer mandatos: "Crime de responsabilidade." O centrão não perde por esperar. Ganha.

A investigação sobre a Abin é prima do inquérito em que Bolsonaro é acusado por Sergio Moro de tramar a conversão da Polícia Federal num aparelho de proteção de familiares e amigos.

Isso ocorreria a partir da transferência do delegado Alexandre Ramagem, amigo da família Bolsonaro, do comando da Abin para a direção-geral da PF. Uma migração que só não ocorreu porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, vetou.

Moraes também jogou água no champanhe dos Bolsonaro ao prorrogar por 90 dias inquéritos que azucrinam a primeira-família. Entre eles o que trata da politização da PF e o que apura o envolvimento de militantes, empresários e parlamentares bolsonaristas na organização e no financiamento de atos antidemocráticos.

O rol dos suspeitos inclui o vereador Carlos Bolsonaro, citado mais de 40 vezes no processo, e seu irmão Eduardo.

Pai e filhos desfilam suas fragilidades na instância máxima do Judiciário com tal assiduidade que muita gente logo começará a chamar o STF de Supremo Tribunal da Família.

Aos pouquinhos, vai ficando claro que Jair Bolsonaro é o chefe de uma organização familiar. Essa organização explorou durante as últimas décadas uma espécie de holding de servidores fantasma e de rachadinhas.

Com sede no gabinete do próprio Bolsonaro, na Câmara Federal, a holding familiar tinha filiais nos mandatos de Flávio, na Assembleia do Rio; e de Carlos, na Câmara municipal carioca.

Segundo o Ministério Público há na contabilidade da organização transações imobiliárias feitas em moeda sonante, uma fantástica loja de chocolates, repasses monetários para ex-mulheres do chefe do clã, e até depósitos do operador de rachadinhas Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle.

Um pai convencional, à medida que progride, cuida de preparar os filhos para a vida. Bolsonaro teve a pretensão de preparar a vida para os filhos. O problema é que proliferam os indícios de que a conta do empreendimento familiar foi espetada no déficit público.

Por Josias de Souza

Crivella: a cadeia é o desfecho do que a política do Rio produziu de pior


Marcelo Crivella ao chegar à Polícia. No camburão, Rafael Alves, o todo-poderoso da Prefeitura, embora não ocupasse
cargo nenhum Imagem: Reprodução/TV Globo

Leiam o que informa O Globo.

A três dias do Natal e a nove do fim de seu mandato, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Bezerra Crivella (Republicanos), foi preso na manhã desta terça-feira. O político era investigado em um inquérito que ficou conhecido como o QG da Propina — um esquema de corrupção que acontecia dentro da prefeitura. Além de Crivella, foram presos Rafael Alves, homem de confiança do prefeito e apontado como operador do esquema, e o delegado aposentado Fernando Moraes. O ex-senador Eduardo Benedito Lopes também é alvo ação que é comandada pela Coordenadoria de Investigação de Agentes com Foro (CIAF) e pelo Ministério Público estadual, mas não foi encontrado em casa. A decisão é da desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita.

Os investigadores chegaram pouco antes das 6h à casa de Crivella, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio. Quatro carros com policiais e promotores pararam no local. Crivella foi levado para a Cidade da Polícia, na Zona Norte.

"Isso é uma perseguição política. Lutei contra todas as empreiteiras, tirei recursos do pedágio, do Carnaval, é isso é perseguição. Quero que se faça justiça", disse Crivella logo após a prisão.

Revelada com exclusividade pelo GLOBO em dezembro, a investigação QG da Propina teve como alvo o governo Crivella e está baseada na colaboração premiada do doleiro Sérgio Mizrahy, preso pela operação Câmbio, Desligo no ano passado.

Na delação, homologada pelo Tribunal de Justiça do Rio, Mizrahy se referiu a um "QG da propina" dentro da Riotur e apontou Rafael Alves, homem de confiança do prefeito, como operador do suposto esquema.

O doleiro afirmou na delação que Rafael Alves se tornou um dos homens de confiança de Crivella ao articular doações para sua campanha eleitoral de 2016. Ele ainda contou que Alves emplacou o irmão na presidência da Riotur e viabilizou "a contratação de empresas para a prefeitura e o recebimento de faturas antigas em aberto, deixadas na gestão do antigo prefeito Eduardo Paes, tudo em troca de pagamentos de propina".
(...)

RETOMO
Ao chegar à Polícia, numa rápida entrevista, Crivella afirmou que tudo não passa de perseguição política. O principal aliado do presidente Jair Bolsonaro no Rio, no entanto, não disse quem o persegue e por quê.

Como de hábito, não me comporto como juiz em momentos assim. Quem conhece o riscado no Rio sustenta que a coisa por ali é feia e que o tal Alves virou uma eminência parda da gestão de Crivella.

A prisão é um desfecho estrepitoso para aquela que é, sem dúvida, a pior administração que teve o Rio de Janeiro na história. Crivella não está sendo preso por isso, é certo. Mas, se fez ao menos parcela do que lhe atribuem, é claro que os malfeitos contribuíram para o desastre.

Não é por acaso que seu sucessor eleito simulou, como afirmei aqui, uma espécie de Frente Ampla no Rio. Até a página "Eu Odeio Eduardo Paes" declarou voto em... Eduardo Paes.

Incompetência não leva à cadeia. Levasse, Crivella mereceria passar o resto dos seus dias em cana. Mas essa é uma questão que o eleitor resolve com o voto. Se escolhe mal, colhe desastres. É o caso.

As acusações, no entanto, são bem mais graves. E atingem em cheio um medalhão do que a política brasileira pode produzir de pior: incompetência assombrosa, reacionarismo delirante e populismo vulgar. Essa soma de atrasos vem temperada, de resto, pela politização da fé, transformada numa máquina de caçar votos.

A receita desandou.

Crivella era o que Bolsonaro tinha nos planos para a população da cidade do Rio.

Que a coisa toda tenha, ao menos, do ponto de vista político, um efeito didático.

Por Reinaldo Azevedo

Alexandre de Moraes pede que Fux explique a suspensão do juiz de garantias


Luiz Fux e Alexandre de Moraes. A diferença entre eles não está apenas no que a natureza faz ou não faz com a cobertura capilar. O que vai dentro da cabeça é a coisa mais relevante. O atual presidente do Supremo mantém há 11 meses, completados hoje, uma liminar que viola a lei. E Moraes agora o obriga a se explicar Imagem: Roberto Jayme/ Ascom /TSE; Pedro Ladeira/Folhapress

Luiz Fux terá de explicar a Alexandre de Moraes, relator do habeas corpus coletivo impetrado pelo Instituto de Garantias Penais, as razões que o fizeram suspender parte das disposições do pacote anticrime aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 24 de dezembro do ano passado.

Atenção: há duas mentiras sendo reproduzidas em parte da imprensa profissional com a determinação com que os estafetas do bolsonarismo atuam nas redes:

MENTIRA UM: estaria consolidado no Supremo que não se acata habeas corpus contra liminar concedida monocraticamente -- o que impediria, se verdade fosse, Moraes de atender à petição do IGP;

MENTIRA DOIS: caso Moraes venha a conceder o habeas corpus e casse a liminar de Fux, uma quantidade não sabida de presos seria solta.

VERDADE UM CONTRA A MENTIRA UM
O Supremo não tem uma posição consolidada a respeito. Ao solicitar as explicações de Fux, o ministro Alexandre de Moraes, pois, reconhece que ora houve a aceitação, ora não. Caso venha a negar o HC, negado está. Se conceder, certamente levará a questão a plenário. E este terá, então, a chance de debater tanto o mérito -- a suspensão de parte do pacote anticrime -- como o cabimento ou não do HC.

Meu entendimento: se o instrumento trata de agressão a direito fundamental, é descabido que se crie a limitação para examinar seu mérito. Até porque os magistrados sempre podem dizer "não". Não faz sentido criar um procedimento que proíba, por princípio, o habeas corpus.

VERDADE DOIS CONTRA A MENTIRA DOIS
O lavajatismo de parte da imprensa espalha fake news com a sem-cerimônia dos bolsomínions mais descarados. Caso Moraes conceda o habeas corpus, cassando a decisão de Fux, não haverá uma só pessoa a deixar a cadeia em razão dessa decisão. Até porque, reitere-se, ela será ad referendum do pleno. E o tribunal terá a chance de julgar aquilo que Fux não permite que julgue.

ORIGEM DA CONFUSÃO, ALÉM DA MÁ-FÉ
Além da pura e simples má-fé, eventualmente da burrice, o que leva à afirmação mentirosa de que a cassação da liminar implicaria soltura de presos? O IGP recorreu a uma habeas corpus coletivo e alega, de saída, que muitas pessoas estão presas ao arrepio do que decidiu o Congresso. Ora, isso é verdade! Daí a haver soltura automática há a distância que separa a verdade da mentira.

É bom lembrar que Fux não suspendeu apenas a implementação do juiz de garantias. Há outras disposições civilizatórias no pacote que o doutor também mandou para as cucuias, como o Artigo 310 do Código de Processo Penal, que estabelece um prazo de 24 horas para que o juiz, recebido o auto de prisão em flagrante, promova a audiência de custódia. Aí, então, ele decide se considera a prisão ilegal, se decreta a preventiva (Artigo 312 do CPP), se impõe cautelares diversas da prisão (319 do CPP) ou se concede liberdade provisória com ou sem fiança.

E se tem, então, o Parágrafo 4º desse mesmo Artigo 310, que estabelece -- e também isso está no correto "pacote anticrime":
"§ 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva."

Observem que, ainda que a audiência de custódia não se dê, não se tem liberação automática porque:
a: pode haver um motivo idôneo para a não-realização;
b: há a possibilidade da decretação da preventiva, desde que estejam dados os motivos.

Sim, muita gente foi presa em flagrante e na cadeia está sem a realização da audiência de custódia, o que deveria envergonhar os puxa-sacos do lavajatismo que fazem trabalho de assessoria de imprensa para os punitivistas celerados. Mas, caso se envergonhassem por isso, não cumpririam o triste papel em que os vemos.

Não! Nem essas pessoas estarão automaticamente soltas. Se a Justiça decidisse pôr na rua todos os presos em situação irregular — e, a rigor, é o que a lei determina —, milhares deixariam a prisão. Mas isso nada tem a ver com o pacote anticrime. Sua implementação vai permitir, isto sim, que o país não continue a lotar as cadeias, fornecendo mão de obra barata para os partidos do crime, sem que ao menos se examinem os motivos. O Estado que prende deve fazê-lo dentro da lei. A menos que se defenda que um Estado criminoso se encarregue de combater o crime — como virou moda, não é mesmo?

O JUIZ DE GARANTIAS
Com todas as vênias ao ministro Luiz Fux, ou nem tantas assim, ele sabe muito bem que deu um golpe no Congresso e até em um de seus colegas de tribunal.

No dia 15 de janeiro deste ano, no plantão do recesso do Judiciário, Dias Toffoli, então presidente do STF, suspendeu por 180 dias a implementação do juiz de garantias -- que é aquele que vai atuar na fase de investigação -- para dar tempo de a Justiça se preparar para as mudanças. E estabeleceu regras de transição, especialmente estas duas:
1: no caso das ações penais já instauradas quando se implementar o juiz de garantias ou quando se esgotar o prazo de 180 dias, nada muda. Não haverá modificação do juízo competente. Mesmo que o juiz tenha atuado na fase da investigação, ele poderá julgar a causa;

2: quando houver a implementação do juiz de garantias, o juiz da investigação se torna o juiz de garantias dos processos que estiverem em curso. Havendo o recebimento da denúncia ou queixa, então tal processo segue para o que vai julgar a causa.

Toffoli teve de se afastar do plantão, e Fux, que era vice-presidente do tribunal, assumiu o seu lugar no plantão. Mandou para o lixo a decisão do colega no dia 22 de janeiro — onze meses hoje ! — e concedeu liminar a uma penca de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, suspendendo o juiz de garantias e outras disposições do correto pacote anticrime.

Ocorre que sua liminar é ilegal. Segundo a Lei 9.868, no caso das ADIs, as liminares só podem ser concedidas pela maioria absoluta do pleno, estando presentes ao menos oito ministros. Descartam-se as decisões monocráticas.

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
1: As pessoas podem ser contra ou a favor a implementação do juiz de garantias. Mas só uma postura é decente: ser a favor dos fatos e contra a mentira;
2: o Supremo não tem uma posição firmada sobre dar curso ou não a HC contra liminar monocrática. Convém que tenha. Logo, por óbvio, Moraes não estava obrigado a rejeitar o HC;
3: se a liminar de Fux for cassada, ninguém deixará a cadeia por isso;
4: rejeitadas as ADIs contra o juiz de garantias e outros aspectos do correto pacote anticrime, parece-me que outro prazo terá de ser estabelecido para a sua implementação, uma vez que Fux fez o desfavor de congelar o avanço de uma conquista democrática;
5: escolha os fatos.

Por Reinaldo Azevedo

domingo, 20 de dezembro de 2020

Prioridade de Bolsonaro é sair do Mundo da Lua



O lema do governo na pandemia poderia ser o seguinte: Divagar e sempre. Afinal, Bolsonaro está sempre divagando. Com o vírus a pino, declarou na sua penúltima divagação que a "pressa para a vacina não se justifica". Chamou de "pequeno repique" uma elevação no nível de contágio que aproxima a contabilidade dos mortos por Covid da marca de 200 mil.

É uma pena que o capitão não cultive o hábito da leitura. Poderia sair das redes sociais por um instante para degustar um conto de Ernest Hemingway. Chama-se 'As Neves do Kilimanjaro'. Começa com um esclarecimento:

"Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África", escreveu Hemingway. "O seu pico ocidental chama-se 'Ngàge Ngài', a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude."

O leopardo do conto serve de metáfora para muita coisa. Tanto pode simbolizar a busca romântica pelo inalcançável como pode representar o espírito de aventura levado à extrema inconsequência. A Presidência, como se sabe, é o cume da política. Num instante em que o mundo anseia pela vacinação, Bolsonaro deveria fazer uma pergunta aos seus botões: por que cheguei ao ponto mais alto do Poder Executivo?

O Brasil vive uma época de faltas: falta de vacinas, de empregos, de dinheiro, de diálogo, de planejamento, de serenidade, de juízo. O país vive, em contrapartida, uma época de excessos: excesso de cloroquina, excesso de ansiedade, excesso de dívidas, excesso de polarização, excesso de improvisação, excesso de insensatez.

A intensificação desses fatores —ou a incidência difusa de todos eles— deixa o brasileiro cada vez mais distante dos estímulos que empurram a vida para algum lugar parecido com a normalidade. O problema se torna mais grave quando o presidente da República não se mostra capaz de oferecer respostas à altura dos desafios que o assediam.

Bolsonaro e seus devotos escolheram atravessar a pandemia no mundo da Lua, onde não ecoam as críticas. O presidente encantou-se com o Datafolha que lhe atribuiu 37% de avaliações positivas. Sem vacinas, recorre a uma assepsia lunática: lava as mãos, borrifa álcool a 70% nas próprias vestes e risca o fósforo, ateando polêmicas na conjuntura.

"A pandemia está chegando ao fim", disse o presidente em entrevista ao filho Eduardo Bolsonaro. "Estamos com uma pequena ascensão agora, o que chama de um pequeno repique, pode acontecer. Mas pressa para a vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas. Vai inocular algo em você e seu sistema imunológico vai agir de forma imprevista."

Já se sabia que Bolsonaro brigou com a chamada Lei Covid, que ele mesmo sancionou em fevereiro, prevendo coisas como a vacinação compulsória. Mas espera-se que o presidente respeite pelo menos a lei da gravidade, reaprendendo que as encrencas sempre caem na cabeça de quem se coloca embaixo delas.

As declarações de Bolsonaro indicam que não será fácil recolocar os pés dele na Terra. Seu alheamento atingiu um grau que roça o delírio. Dedica-se à defesa do direito de infectar e à desqualificação das vacinas. A CoronaVac é comunista. A da Pfizer faz virar jacaré. Mais um pouco e o presidente anunciará a criação do MSV, o Movimento dos Sem Vacina.

Paulo Guedes declarou na sexta-feira que a vacina é "o capítulo mais importante" da crise. Confraternizando-se com o óbvio, o ministro da Economia afirmou: "O retorno seguro ao trabalho exige a vacinação em massa da população brasileira." Antes do ministro, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, já havia declarado que investir em vacina sai mais barato do que prorrogar auxílios do governo.

Guedes e Campos Neto deveriam pedir uma audiência conjunta com o chefe. Ou inoculam no cérebro do capitão o vírus da racionalidade ou, no futuro, quando os arqueólogos forem escavar esse pedaço da história nacional, encontrarão sob os escombros de um Brasil remoto, perdida em meio a esqueletos de gente que morreu por falta de vacina, a carcaça de um presidente tão inexplicável quanto o leopardo de Hemingway. E todos se perguntarão: O que fazia ele no ponto mais alto do Executivo?

Por Josias de Souza