sexta-feira, 30 de abril de 2021

Assembleia aprova plano de Doria para criar Bolsa do Povo com repasses de até R$ 500



A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou nesta quinta-feira (29) o programa de auxílio social Bolsa do Povo, proposto pelo governador João Doria (PSDB) em meio aos embates com o presidente Jair Bolsonaro diante das crises sanitária e econômica na pandemia da Covid-19.

O projeto prevê repasses de até R$ 500 por pessoa por meio da ampliação e unificação de outros programas já existentes e desenvolvidos pelo Executivo paulista. A aprovação do projeto contou com os votos de 65 deputados —outros 6 foram contrários.

Segundo a gestão Doria, os programas Ação Jovem (para estudantes de 15 a 24 anos) e Renda Cidadã (para pessoas de baixa renda) terão valor aumentado de R$ 80 para R$ 100.

Além disso, serão contratados 20 mil pais e mães de alunos de escolas estaduais para colaborar no retorno às aulas. O pagamento será de R$ 500 por quatro horas diárias.

Segundo o governo tucano, o programa poderá beneficiar cerca de 500 mil pessoas direta ou indiretamente. O público alvo são beneficiários dos programas atuais, além de pais e mães de estudantes.

Embora o projeto, que tem foco em pessoas em situação de vulnerabilidade social, não esteja previsto para funcionar somente durante a pandemia, o texto prevê que ao longo dos "exercícios de 2021 e 2022 poderão ser estabelecidos requisitos, condições, critérios de elegibilidade, valores de benefícios e condicionalidades especiais em decorrência dos efeitos da pandemia da Covid-19".

Após apoiar a eleição de Bolsonaro no segundo turno das eleições em 2018, com a dobradinha BolsoDoria, o tucano rompeu com o presidente ao longo do mandato, e os dois são apontados como rivais para a disputa ao Planalto em 2022.

O projeto de Doria de auxílio social foi lançado no mesmo momento em que Bolsonaro voltou a pagar um novo auxílio emergencial decorrente da crise econômica na pandemia da Covid.

Suspenso desde dezembro, esse benefício federal voltou a ser concedido desde 6 de abril para pessoas com dificuldades de conseguir uma renda em meio à crise sanitária. O valor, que em 2020 era de cerca de R$ 600, foi desidratado e caiu neste ano.

Além de fazer a contraposição a Bolsonaro por meio da vacina Coronavac, com o novo plano Doria também marca posição no combate aos efeitos econômicos da pandemia.

O investimento no programa será de R$ 1 bilhão apenas em 2021, de acordo com a administração tucana. Desse total, R$ 400 milhões virão da abertura de crédito especial remanejados de pastas como Desenvolvimento Econômico e Educação, e do Centro Paula Souza.

Com a aprovação do projeto, o governo poderá, por meio de decretos de regulamentação, ajustar valores, definir os critérios de escolha dos beneficiários e a participação das prefeituras, assim como de organizações não governamentais, associações de pais e mestres e do Legislativo, que poderão complementar com recursos próprios o valor da bolsa e o número de favorecidos.

O texto diz ainda que o pagamento do benefício deverá ser feito, preferencialmente, à mulher. A votação final do projeto será feita em uma nova sessão extraordinária a ser convocada, sem data definida. A Assembleia paulista ainda irá analisar oito emendas que tiveram a votação adiada, só depois da aprovação final o programa poderá entrar em vigor.

Segundo o governo tucano, serão reunidos os seguintes programas, em sete eixos diferentes: Bolsa Trabalho (emprego), Bolsa Renda Cidadã (assistência social), Bolsa Aluguel Social (habitação), Bolsa Talento Esportivo (incentivo), Bolsa Auxílio Via Rápida (qualificação profissional), Ação Jovem e contratação de mães e pais nas escolas (educação), além da contratação de agentes de apoio na saúde.

A gestão Doria diz que o Bolsa do Povo será gerido pela Secretaria de Governo. A administração ainda estuda a ampliação de outros valores e criação de novas ações.

Na Folha

Diferença entre a necropolítica no palanque e a necropolítica como palanque



Na quarta, véspera de o país atingir a marca de 400 mil mortos por Covid-19, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) assegurou a empresários e banqueiros, informa Mônica Bergamo na Folha, que a CPI não vai dar em nada para Jair Bolsonaro. Não se sabe exatamente o que o senador entenderia por "dar em alguma coisa".

Ele também teria dito que não cabe superestimar o papel do relator, Renan Calheiros (MDB-AL). E deu o que parece ser o roteiro da impunidade: caso o relatório de Renan não seja do agrado do governo, a bancada oficialista faria um outro, alternativo, e pronto! Estabelecer-se-ia uma guerra de versões. Garantiu, adicionalmente, que não existe risco de impeachment porque Arthur Lira (PP-AL) arquivará no lixo todas as denúncias que entulham a Presidência da Câmara.

Assim, parece, Nogueira, alçado à condição de condestável da República, tranquilizou a audiência. Nada a temer. Não será por causa de quatrocentos mil mortos — por enquanto... — que se vai criar estresse, não é mesmo? E é possível que, naquela noite, muitos tenham dormido em paz. Bolsonaro continuaria, então, firme e forte. Dizer o quê? Eis aí um dos emblemas destes tempos. Então vamos ver.

Com efeito, se o Ministério Público não se mexer, pouca coisa acontece para efeitos penais. No que diz respeito ao presidente e a outros com foro especial, a tarefa de dar consequência aos achados da CPI é da Procuradoria Geral da República. Também a Polícia Federal, diante da evidência de crimes, pode abrir investigação. Mas Nogueira parece ter a certeza de que está tudo dominado. Com essa plêiade de Varões de Plutarco que chegou ao topo à esteira da razia provocada pela Lava Jato — Nogueira atravessa governos, sempre no poder —, a impunidade não se conta só em reais, mas também em corpos.

O que dizer? É, de fato, uma tolice esperar que a comissão derrube o governo. Se cair — e não estou dizendo que esteja na iminência de —, não será por isso. Com o Ministério Público Federal que aí está, há indignidade suficiente para a morte de outros 400 mil. O ponto não é esse.

A importância política — e não politiqueira — da CPI está em fazer falar quem tem de falar. Pessoas às quais cabiam ações de combate à pandemia, no comando de aparelhos de Estado voltados para essa tarefa, têm de explicar como se fabricou esse resultado. Sim, é verdade: o coronavírus teve um efeito devastador no mundo inteiro. Mas foram poucos os países em que as políticas públicas postas em prática se aliaram ao patógeno e à doença, não à população e aos doentes. E, no que respeita ao presidente da República — que não pode ser chamado a depor nem pode ser pessoalmente investigado pela comissão —, as escolhas seguem as mesmas.

Ciro Nogueira pode vender a seus ouvintes a paz dos cemitérios; pode até ajudar a bancada governista a fazer as perguntas erradas, mas não tem como impedir que seus pares da oposição e os chamados independentes façam as perguntas certas. Também não dispõem de instrumentos para condicionar as respostas dos que forem convocados. E é bom que fique claro que os chamados na condição de testemunhas têm a obrigação de falar a verdade.

PALANQUE
Não deixa de ser curiosa a acusação de que a CPI serve de palanque para a oposição. Flávio Bolsonaro, o senador da mansão de R$ 6 milhões, acusa os adversários de subir "nos caixões de 400 mil mortos" para fazer política.

Ainda que assim fosse, e não é, haveria uma diferença importante entre discursar sobre caixões para evitar novas mortes e fazê-lo para produzir ainda mais cadáveres, a exemplo da atuação do seu pai, que continua a desprezar as regras elementares da vida civilizada — e até da morte — também em tempos de pandemia.

Aqui e ali vejo especulações sobre ser a CPI um instrumento de luta política e, mesmo necessária, consideram alguns, seria esse seu aspecto negativo ou um risco a ser evitado. Uma pena de aluguel da Lava Jato chegou até a especular que Renan estaria na comissão como uma espécie de operador de Lula.

Não sei se essa gente é mais burra do que asquerosa ou mais asquerosa do que burra. Como notam, está posto que as duas qualidades concorrem pela primazia.

A comissão de inquérito instalada só recebe o adjetivo "parlamentar" porque é necessariamente política. Se tem ou não efeitos eleitorais, isso deriva, em grande parte, dos fatos que trouxer à luz. Digam-me cá: o que seria, então, "ético" e "desejável"? Que as ações nefastas e as omissões do governo fossem ignoradas para evitar o tal "risco" eleitoral? Os eventuais adversários de Bolsonaro em 2022 deveriam se abster de tratar do assunto para não criar constrangimentos ao presidente-candidato negacionista?

Quanto aos alinhamentos desse ou daquele senadores na comissão, pergunta-se: ainda que fosse verdadeira a inclinação de Renan, os demais membros da comissão se identificam com quem ou com quê? Pensam apenas nos destinos da humanidade? A propósito: as garantias oferecidas por Nogueira a seus convivas derivam de sua independência, é isso? Ora...

E que se note: não estou aqui a decretar um empate entre as partes: há uma diferença moral entre identificar os responsáveis pelo descalabro e lutar para, como é mesmo?, que tudo "dê em nada". Ou ainda: há uma diferença entre fazer da denúncia do morticínio um palanque e usar o morticínio como palanque. Dito de um terceiro modo: há uma diferença entre denunciar no palanque a necropolítica e fazer da necropolítica um palanque.

Por Reinaldo Azevedo

quinta-feira, 29 de abril de 2021

País se torna monarquia, reina a esculhambação



Tornou-se comum no Brasil ouvir reclamações sobre a judicialização da política. Observa-se no momento o inverso: a politização da Justiça. Para o bem e para o mal, o Supremo Tribunal Federal se mete com incômoda frequência nos rumos da conjuntura política e no cotidiano do governo federal. A política brasileira opera sob os reflexos do 'Fator STF'. Submetido a ordens cada vez mais frequentes de ministros da Suprema Corte, o Poder Executivo faz por pressão o que se absteve de realizar por opção.

Há dois anos, a Lava Jato pulsava, Bolsonaro se preparava para tomar posse como um autoproclamado paladino da moralidade e Lula era um presidiário sem perspectivas. Isso tudo mudou. Graças ao Supremo, a força-tarefa de Curitiba é um fenômeno moribundo, Sergio Moro carrega na biografia uma tarja de "juiz suspeito", Lula está de volta aos palanques e Bolsonaro promove a indicação de todas amigas para blindar a si mesmo e à família.

Num fenômeno potencializado pela pandemia, o Supremo passou a impor ao governo federal providências comezinhas. Provocados por governos estaduais, partidos políticos ou pela defensoria pública, os magistrados interferem na rotina do governo.

Marco Aurélio Mello ordena a realização do censo do IBGE, que havia sido cancelado. Rosa Weber manda a União pagar leitos de UTI, ordena o fornecimento de sedativos para intubação. O plenário do Supremo determina o pagamento de uma "renda básica de cidadania" a pessoas extremamente pobres. Ricardo Lewandowski interfere até na ordem da fila de vacinação. Luís Roberto Barroso avaliza um plano de assistência sanitária a povos indígenas.

Houve um tempo em que o sistema governamental brasileiro se dividia em três poderes: Exército, Marinha e Aeronáutica. Numa fase mais moderna, a democracia passou a ser constituída por quatro poderes: o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o dinheiro, poder que pairava sobre todos os outros.

Agora, restabelecida a imoralidade pré-mensalão e instituída a ineficiência negacionista da pandemia, o Brasil tornou-se uma espécie de monarquia sem monarca. Nela, reina a esculhambação.

Por Josias de Souza

Sob Bolsonaro, Executivo vai virando um puxadinho do prédio do Supremo



Obcecado pelo plano de obter um segundo mandato em 2022, Bolsonaro esquece de exercer em sua plenitude o mandato que obteve em 2018. Em consequência, o país assiste ao surgimento de um fenômeno inédito: a judicialização do Executivo. Acionados, ministros do Supremo se metem nos assuntos mais comezinhos da administração pública, obrigando o governo a fazer por pressão o que se absteve de realizar por opção.

Nas decisões mais recentes, o ministro Marco Aurélio Mello ordenou a realização do censo demográfico do IBGE, que havia sido cancelado; e a ministra Rosa Weber deu prazo de dez dias para que o governo apresente um plano para assegurar o suprimento de sedativos indispensáveis à intubação de pacientes em UTIs. No caso do censo, a liminar foi expedida a pedido do governo do Maranhão. A decisão sobre os anestésicos foi requerida pelo governo da Bahia.

Na última segunda-feira, o plenário da Suprema Corte decidira, por 7 votos a 4, obrigar o governo federal a fixar o valor de uma "renda básica de cidadania" a ser paga a pessoas extremamente pobres a partir de 2022. Prevista numa lei aprovada em 2004, a renda básica não foi regulamentada até hoje. Coube à Defensoria Pública da União acionar o STF. O relator do caso foi Gilmar Mendes.

No final de fevereiro, Rosa Weber determinara ao Ministério da Saúde que liberasse verbas para reativar leitos de UTI para pacientes de covid na Bahia, no Maranhão e em São Paulo. No início de março, estendeu a providência ao Piauí. "Não há nada mais urgente do que o desejo de viver", anotou a magistrada em seu despacho.

Também em fevereiro, Ricardo Lewandowski mandara o governo definir uma ordem de preferência, entre os grupos prioritários, para orientar a vacinação contra a covid. O ministro realçou o óbvio: a sequência de vacinação teria de seguir "critérios técnico-científicos". Deu cinco dias de prazo para a execução da ordem.

O plano nacional de vacinação, divulgado em janeiro também por pressão de Lewandowski, incluía 77,1 milhões de pessoas nos grupos prioritários —de profissionais de saúde a idosos, passando por portadores de doenças crônicas. Mas não havia clareza quanto à posição de cada grupo na fila da vacinação.

Graças à pregação de Bolsonaro contra a obrigatoriedade da vacina, o Supremo interveio para decidir, em julgamento realizado no plenário, que o Estado pode, sim, nas suas diferentes esferas, adotar providências para tornar compulsória a vacinação. Coisas como, por exemplo, proibir a matrícula de não vacinados em escolas públicas.

Há pouco mais de um mês, o ministro Luís Roberto Barroso homologou parcialmente o Plano Geral de Enfrentamento à Covid para Povos Indígenas apresentado pelo governo por determinação do Supremo. Autor da ordem que levou à elaboração do plano, Barroso disse que suas determinações não foram integralmente cumpridas. Identificou um quadro de "profunda desarticulação" nos órgãos que deveriam zelar pela integridade dos povos indígenas.

No total, foram apresentadas ao Supremo quatro versões do plano. Envolve questões básicas, tais como acesso à água potável e saneamento, com o objetivo de atenuar os efeitos da pandemia. Coube a Barroso determinar ainda a vacinação prioritária dos povos indígenas de terras não homologadas e urbanos sem acesso ao SUS, em condições de igualdade com os demais povos indígenas.

O surto de intromissão do Judiciário no Executivo é absolutamente inusual. Decorre mais da ineficácia negacionista do governo do que do ativismo do Supremo. É como se Bolsonaro ignorasse os mais triviais princípios da política. Quem só ambiciona o poder futuro erra o alvo. Quem não ambiciona o exercício do poder presente em sua plenitude vira o alvo. Aos pouquinhos, Bolsonaro vai transformando o Executivo numa espécie de puxadinho do prédio do Supremo.

Por Josias de Souza

quarta-feira, 28 de abril de 2021

A CPI do óbvio



O histórico das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) mostra que o sucesso das investigações costuma depender do surgimento de alguma testemunha bombástica. No caso da recém-instalada CPI da Pandemia isso não será necessário: os fatos essenciais são abundantes e estão claros para todos, restando à comissão o duro trabalho de organizá-los, para que o País entenda quais foram os terríveis erros que resultaram em tantas mortes evitáveis e quem deve responder por isso.

Do ponto de vista estritamente institucional, a CPI terá cumprido seu papel se dela resultarem medidas legislativas destinadas a impedir que esses erros se repitam e, também, se encaminhar às autoridades competentes os elementos necessários para a responsabilização civil e criminal dos infratores.

Mas a CPI é também um foro político, em que a oposição exerce seu direito constitucional de fiscalizar o governo. Por isso, é inevitável que, ao longo dos trabalhos da comissão, os depoimentos e provas trazidos ao escrutínio público sirvam para constranger o presidente Jair Bolsonaro – cuja patente irresponsabilidade inspirou, quando não determinou, o comportamento omisso e inconsequente das autoridades sanitárias federais no combate à pandemia.

Ciente dos estragos que a CPI causará a seu projeto de reeleição, Bolsonaro tratou de mobilizar boa parte de seus ministros para organizar sua defesa. Se o presidente tivesse usado no combate à pandemia a mesma energia que está gastando para se safar da CPI, o País não teria quase 400 mil mortos e um sistema de saúde em frangalhos.

Mas a incompetência, produto da mediocridade que é a segunda pele do governo Bolsonaro, mais uma vez se impôs. A título de se antecipar aos questionamentos da CPI, os ministros produziram uma lista de acusações mais completa e detalhada do que a formulada por integrantes da comissão.

Além disso, no afã de tentar impedir que o senador Renan Calheiros, desafeto de Bolsonaro, fosse nomeado relator da CPI, bolsonaristas recorreram à Justiça e obtiveram uma liminar absurda que interferia em decisão exclusiva do Congresso. Enquanto a liminar vigorou, os governistas a usaram para tumultuar a CPI.

Mas a desarticulação da base governista, já célebre, mais uma vez cobrou a conta. O senador independente Omar Aziz (PSD-AM), apoiado pela oposição, elegeu-se presidente da CPI inclusive com o voto de um governista, o senador Ciro Nogueira (Progressistas-PI). Ato contínuo, o senador Aziz escolheu Renan Calheiros como relator.

Profundo conhecedor dos desvãos do Congresso e expert em chicanas para esquivar-se da Justiça, Renan é o nome ideal para a relatoria. Sua notória competência servirá para inibir manobras governistas destinadas a tirar o foco da CPI, isto é, a administração delinquente do Ministério da Saúde sob as ordens de Bolsonaro.

O fato é que a perspectiva de uma CPI dominada pela oposição e com relatoria de Renan Calheiros preocupa muito o governo. E isso fica claro diante do nervosismo de Bolsonaro, que voltou a fazer ameaças citando as Forças Armadas e a ofender governadores. Essas declarações reafirmam o autoritarismo de Bolsonaro, mas, sobretudo, expõem a tática manjada de desviar a atenção do que realmente importa: a desídia e a inépcia do governo diante do vírus.

“Por que tanto medo?”, perguntou o senador Renan Calheiros nas redes sociais ante a inquietação bolsonarista. A pergunta, claro, é retórica. Quando os muitos ministros da Saúde de Bolsonaro forem questionados na CPI, o País afinal saberá como foram tomadas as decisões cruciais que resultaram no atraso da vacinação, na falta de campanha nacional para a adoção de medidas preventivas, na sabotagem do distanciamento social e no desabastecimento de equipamentos e drogas para o atendimento de doentes.

A rigor, nem seria necessária uma CPI. Quando Bolsonaro escarnece da inteligência alheia, dizendo que o intendente Eduardo Pazuello “fez o dever de casa” ao não comprar vacinas em 2020, ou quando o próprio ex-ministro da Saúde faz chacota dos brasileiros ao aparecer sem máscara e todo pimpão, num shopping de Manaus, a responsabilidade pela tragédia nacional fica óbvia.

Editorial do Estadão

"Na universidade pública, há maconha e sexo para crianças"



O ministro Paulo Guedes, da Economia, estava inspirado nesta terça. Ele resolveu atacar a China, diminuir os investimentos no SUS, mandando o pobre para o Einstein com um voucher, e, para demonstrar que tem horizontes largos, refletir também sobre a educação pública.

Sobre esse último setor, afirmou:
"Hoje 77% dos jovens em universidades brasileiras estão no setor privado. O setor público não tinha capacidade de acompanhar o ritmo".

E como o doutor enxerga as universidades públicas?

Serviriam apenas para ensinar Paulo Freire e "sexo para crianças de cinco anos". Apontou ainda a circulação livre de drogas nessas instituições.

Qualquer semelhança com o discurso da extrema direita bolsonarista não é mera coincidência. E, como se sabe, o ministro tentou acabar também com as verbas constitucionalmente definidas para a Educação.

Não tenho, obviamente, nada contra a existência de um sistema privado de ensino superior. Desde que preste. Aliás, o ProUni é, à sua maneira, uma espécie de voucher para a educação, certo? A questão é saber que tipo de ensino prosperou nesse tempo. Mas isso fica para outro artigo. O ponto aqui é outro.

Essa fixação em Paulo Freire é fruto apenas da mais arrematada ignorância. Duvido que Guedes saiba sobre o quê e sobre quem está falando.

A propósito: que instituição promove sexo para crianças de cinco anos? O ministro está obrigado a dizer para que se tomem as devidas providências. Recomendo que se mantenham livros de Freud longe de Guedes, ou ele manda chamar a polícia. Numa leitura muito "guediana", é possível sustentar que "aquele cara" trata do sexo dos bebês...

DESEMPENHO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E PRIVADAS
Saibam: 90% da produção científica das universidades vêm das instituições públicas -- 15 delas respondem por 60% do total, e a USP sozinha, por 20%. Um outro ranking de pesquisa científica, este elaborado pela Folha, aponta que há apenas 4 universidades privadas entre as cinquenta que mais produzem pesquisa científica. Caso se levem em conta as 100 primeiras, há apenas 26 que não são públicas -- entre estas, a maioria é ligada à Igreja Católica.

Entre 2013 e 2018, apesar de tudo, o Brasil ficou em 13º lugar entre os países que mais publicaram trabalhos científicos. Os dados são da empresa Clarivate Analytics.

Um ministro que estivesse interessado em construir alternativas — não em destruir o que se tem, a exemplo de seu chefe — estaria pensando maneiras de aproximar ainda mais as universidades e as empresas para aumentar as fontes de financiamento do ensino público.

A afirmação é uma generalização estúpida e irresponsável, própria de quem, não sabendo para onde vai nem o que fazer, prefere a depredação.

Ademais, se Guedes estivesse certo e dadas as informações sobre pesquisa, seria o caso de sugerir o aumento do consumo de maconha nas instituições universitárias privadas?

Por Reinaldo Azevedo

"Você está doente, pobre? Pegue o voucher é vá ao Einstein"



A reunião do Conselho de Saúde Suplementar esteve mais para uma espécie de "freak show" do que para uma conversa de pessoas de Estado interessadas em implementar políticas públicas em favor dos brasileiros.

Desde o começo do governo — a rigor, antes —, o glorioso ministro da Economia, Paulo Guedes, está de olho nas verbas da Saúde e da Educação. Ele já queria acabar com os desembolsos obrigatórios bem antes de o coronavírus aparecer por aqui. E manteve a determinação mesmo em meio a milhares de mortos. A realidade, para um especulador vulgar ou um sectário, não faz a menor diferença.

O doutor resolveu fazer considerações sobre as dificuldades para financiar o sistema de saúde no país. Se você está entre aqueles que acham que o SUS evitou milhares de mortes, muitos milhares, não pense que o nosso guia genial da economia tem planos para fortalecer o sistema. Nada disso! Ele tem ideias prontas para enfraquecê-lo.

BRASILEIRO QUER VIVER DEMAIS?

O doutor expressou, em tom meio inconformado, uma mania que os brasileiros andaram desenvolvendo: não querer morrer. E isso gera despesas, né? O pobre morrendo num tempo, digamos, oportuno concorre para desonerar o SUS e a Previdência. Que coisa, né, ministro? Poucos veem essa formidável janela de oportunidade. Sabe como é, excelência: humanos tendem a ser sentimentais com esse negócio de vida.

O doutor considerou que não foi a pandemia a evidenciar a dificuldades de financiamento da Saúde. Ele elencou outros fatores: o "avanço a medicina" e o "direito à vida"... Meu Deus! Precisamos rever logo isso, ou as contas não fecham.

Afirmou:
"Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130 ". E concluiu que "não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar".

Huuummm...

A SOLUÇÃO DE GUEDES
Mas ele não é homem só da problemática. Também é o da solucionática. Como trocar o SUS ou parar de investir nele? Ora, O sábio tem a resposta: voucher!!! E aí ele imaginou um suposto diálogo seu com um pobre:
"Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einstein se você quiser".

Imaginem qual seria o valor do "voucher"... É isto: pobre, hoje, só não se trata do Einstein, no Sírio, no Oswaldo Cruz ou no Samaritano porque há o SUS, entenderam? O sonho de Guedes, pelo visto, é pôr fim ao sistema e garantir Einstein para todos. Que coisa!

Sei lá onde o ministro anda com a cabeça nestes tempos de pandemia. Ele não deve ter lido que o colapso nas UTIs chegou antes aos hospitais privados do que aos públicos. Também não deve ter tomado conhecimento que mesmo os hospitais de ponta, nestes tempos de pandemia, passam por uma crise de financiamento porque procedimentos eletivos e rentáveis, em tempos normais, ajudavam a financiar outros, obrigatórios e bem mais caros.

Imaginar que se possa enfraquecer a estrutura do SUS — e há menos de dois meses Guedes tentava avançar sobre o mínimo constitucional reservado à Saúde — e substituí-la por um sistema de "voucher" a ser usado no setor privado é delírio de liberaloide à moda antiga, do tipo que ainda demoniza o Estado. Não está interessado na eficiência do serviço, mas no seu desmonte.

FALÁCIAS
Como se viu, tanto o sistema privado como o sistema público colapsaram. Temos, sim, a enormidade de 400 mil mortos. Sei lá a quantos chegaríamos sem o demonizado SUS. É verdade: o envelhecimento da população pressiona o sistema de Saúde no Brasil e no mundo. Mas que Guedes não venha com a conversa mole do "Tome aqui o seu voucher e vá ao Einstein se quiser". Ele sabe muito bem que os pobres não iriam para os serviços de ponta. Nota: planos de saúde da classe média baixa costumam oferecer um serviço inferior ao do SUS.

Esse é o homem que admirava o sistema de aposentadoria do Chile. Aliás, foi mais ou menos essa ilusão que se vendeu lá pela época da reforma: "Faça a sua capitalização, escolha o seu caminho e vá ser rico". Está lá o Chile tendo de se reinventar, com uma das maiores desigualdades sociais do planeta. Mas ainda é o modelo de Guedes.

Fazer agora esse debate e com essa ligeireza dá conta do seu descolamento da realidade.

Dizer o quê? Esse é o ministro que chegou a ter uma grande ideia para enfrentar a pandemia: três parcelas de R$ 200 para os informais e suspensão dos contratos de trabalhos para os formais, sem pagamento. Não fosse a trinca Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara), José Roberto Afonso (economista) e Gilmar Mendes (ministro do Supremo), o governo teria se lascado. Eles desenharam o modelo do auxílio emergencial e do Orçamento de guerra. Alguém tinha de sair da catatonia.

Finda a primeira fase do desastre, Guedes alimentou a ideia de que era preciso suspender o auxílio emergencial porque já estaria em curso a recuperação em V. Como se vê...

AS EMPREGADAS NA DISNEY
Essa história dos brasileiros que "querem viver 100, 120, 130 anos" e do "tome o voucher e vá ao Einstein se quiser" é irmã-gêmea daquela outra, lembram-se?, das empregadas domésticas que haviam adquirido o hábito de ir para a Disney, o que ele chamou de "uma festa".

Fez aquela afirmação estúpida no dia 12 de fevereiro de 2020, tentando mostrar por que um dólar nos cornos da lua era sinal da nossa vitalidade e das qualidades superiores deste governo. Duas semanas depois, no dia 26 daquele mês, identificava-se o primeiro caso de coronavírus no país.

O resto é uma história impressionante de incompetências e negligências, que já fizeram 400 mil mortos. Pela primeira vez desde 1940, a expectativa de vida dos brasileiros caiu. Afinal, é preciso pôr fim a essa mania de querer viver até os 130 anos...

Por Reinaldo Azevedo

O ataque burro à China de um velho reacionário


Paulo Guedes: a megalomania só não é maior do que a arrogância, a incompetência e a ligeireza em
 oferecer respostas simples e erradas para problemas difíceis Imagem: Sérgio Lima/Poder 360

Paulo Guedes é truculento, vulgar e, dados os resultados, é preciso constatar: incompetente. É um especulador do mercadismo — que distingo do mercado — alçado à condição de formulador de política econômica, o que ele, obviamente, não sabe fazer. É um engano pensar que seja intelectualmente mais sofisticado do que Jair Bolsonaro. Só é rico há mais tempo, mais viajado, mais mundano. Isso lhe confere um certo ar mais cosmopolita. Mas as tentações reacionárias estão todas lá, intocadas. E ele as expressa.

As suas falas na reunião do Conselho de Saúde Suplementar, que vieram a público, renderiam demissão sumária em todos os governos que antecederam o de Jair Bolsonaro. Neste, claro!, não vai acontecer nada porque ele e seu chefe coincidem no diagnóstico: ligeiro, grosseiro, arrogante, inoportuno e sectário.

Sem saber que a reunião era transmitida pelo Facebook, Guedes deitou falação contra a China e contra os serviços de saúde e de educação estatais do Brasil. E não! O contexto deixa claro que não falava alguém que tem um plano organizado de intervenção para que sejam, então, mais eficientes.

A crítica à China é estúpida e infundada. As afirmações sobre a saúde e educação públicas revelam o ânimo da depredação. Ficou evidente que o ministro vê, vamos dizer assim, com olhos não muito simpáticos o aumento da expectativa de vida dos brasileiros, que era contínuo desde 1940 e só foi interrompido agora. Justamente pelo coronavírus. Comecemos pela China.

Sob o pretexto de exaltar a eficiência maior do setor privado -- e até fica parecendo que a China hoje é uma economia estatal à moda maoísta, fez a seguinte afirmação:
"O chinês inventou o vírus, e a vacina dele é menos efetiva que a do americano. O americano tem cem anos de investimento em pesquisa. Então os caras falam: 'qual o vírus? É esse? tá bom'. Decodifica, tá aqui a vacina da Pfizer. É melhor do que as outras".

Está tudo errado. O vírus não foi inventado por ninguém. A China informou a sua existência, mas nem mesmo se tem a certeza absoluta de que surgiu por lá. Deixemos, no entanto, essa questão de lado agora. Aquele país produz o Ingrediente Farmacêutico Ativo das duas vacinas aplicadas por aqui: da Coronavac, do Instituto Butantan/Sinovac, e da AstraZeneca/Oxford.

Ao fim da reunião, buscou remendar o estrago em entrevista:
"Eu usei uma imagem infeliz. Eu falei 'inventado'. Não é inventado. Nós sabemos que teve uma região de onde o vírus veio. Um vírus que veio de fora e atinge uma economia de mercado forte, como são os Estados Unidos, mesmo que eles desconheçam o vírus... Eu quis dar a importância do setor privado, de como ele consegue produzir respostas. Foi só essa imagem que eu quis usar. Nos somos muito gratos à China por ter nos enviado a vacina. Eu tomei a Coronavac".

A tentativa de consertar traz outros erros. Em primeiro lugar, é de se questionar por que a defesa do setor privado precisaria ter passado pelo ataque à China, que responde, em dólares, por mais de um terço de tudo o que o Brasil exporta. Mais: aquele país não nos "enviou" a vacina. A Coronovac foi produzida numa parceria com o Instituto Butantan, o que demandou recursos do Tesouro de São Paulo e planejamento — tudo aquilo que o governo federal não fez.

Tão logo a fala de Guedes se tornou pública, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, foi ao Twitter e escreveu:
"Até o momento, a China é o principal fornecedor das vacinas e os insumos ao Brasil, que respondem por 95% do total recebido pelo Brasil e são suficientes para cobrir 60% dos grupos prioritários na fase emergencial. A Coronavac representa 84% das vacinas aplicadas no Brasil."

Pois é. Ele fala em 95%, reitero, porque o país fornece o Ingrediente Farmacêutico Ativo também do imunizante da AstraZeneca /Oxford. Mas Guedes está incomodado com os chineses e exalta os EUA — que, convenham, não fizeram a menor menção de socorrer o Brasil. Até porque também passam por uma experiência que a China na vivenciou: o morticínio em massa.

Como se nota, o espírito anti-China do governo, por mais estúpido e injustificado que isso seja, não se limita a Ernesto Araújo — quando estava lá — e a Jair Bolsonaro. Guedes é capaz de repetir as mesmas tolices. De resto, indague-se: a que vem esse palavrório numa reunião do Conselho de Saúde Suplementar? Presta para quê?

Resposta: para nada!

É que Guedes queria fazer a sua profissão de fé contra o Estado, como um liberal da década de 50 que estivesse reformando o Brasil da década de 80. Ele não é só incompetente. É atrasado também. E as considerações que fez sobre o sistema de saúde e as universidades públicas o evidenciam, como vamos ver.

Por Reinaldo Azevedo

General teve a coragem de se vacinar escondido, como se fosse um covarde


Luiz Eduardo Ramos: ele tentou tomar a vacina escondido e diz fazer hoje esforço para Bolsonaro se 
vacinar Imagem: Fto: Ed Alves/CB/D.A Press)

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Casa Civil, contou na tal reunião do Conselho Suplementar de Saúde que tentou tomar a vacina escondido. Nas suas palavras:

"Tomei [a vacina] escondido, né? Porque a orientação era para não criar caso. Mas vazou. Não tenho vergonha, não. Eu tomei e vou ser sincero: como qualquer ser humano, eu quero viver, pô! E, se a ciência e a medicina está (sic) dizendo que é a vacina, quem sou para me contrapor? Estou envolvido pessoalmente, tentando convencer nosso presidente, independente de todos os posicionamentos, que nós não podemos perder o presidente para um vírus desse. A vida dele, no momento, corre risco, ele tem 65 anos"

Bolsonaro já tem 66. A fala é uma soma de despropósitos. Notem que "não criar caso" era ter de tomar a vacina sem que o chefe soubesse. Segundo a assessoria do ministro, ele recebeu uma dose da AstraZeneca. Bem, esse é o imunizante que tem no Brasil a parceria com a Fiocruz. O problema de Bolsonaro era com a CoronaVac — a "vacina do Doria". Deve-se, entender, então, que o supremo mandatário se opunha a qualquer imunizante mesmo para os "seus" generais? Eis mais um candidato à CPI.

É espantoso que Ramos diga estar empenhando no esforço de fazer Bolsonaro tomar a vacina, reconhecendo que o chefe corre risco de vida. Deve-se depreender daí que o general tem ciência de que, a cada vez que promove aglomerações, sem máscara, e que incentiva outros a fazê-lo, o presidente está expondo a risco a vida de terceiros. Fosse apenas a sua, seria só uma questão de escolha pessoal.

A Casa Civil tentou, depois, dar um sentido, digamos, novo à palavra "escondido". O ministro estaria querendo dizer que se comportara como uma pessoa qualquer. Obviamente, não é o que o contexto sugere.

Voltem à fala. Ramos se vê obrigado a afirmar que "não tem vergonha" de dizer que tomou a vacina, como se estivesse a confessar uma transgressão. Depois, é obrigado a evocar a sua fragilidade humana para admitir que quer... viver. Não deve, então, ser coisa só de maricas.

A propósito: o que quer dizer "tentando convencer nosso presidente, independente de todos os posicionamentos"?

O conjunto evidencia um tempo de trevas. Um general, oriundo do Exército brasileiro — que já foi partidário de uma corrente de pensamento em que a ciência era quase uma religião — se vê na contingência de dizer que tentou tomar a vacina escondido e que não se envergonha de ter recebido o imunizante.

Ah, sim, general: amanhã, o país ultrapassa a marca de 400 mil mortos. Nem tiveram a chance de tomar a vacina que seu chefe, por ora, recusa.

Por Reinaldo Azevedo

terça-feira, 27 de abril de 2021

Achado da Anvisa em Sputnik V - vírus replicante - tem relevância mundial


Lote da Sputnik V, a vacina russa: imunizante com vírus replicantes não pode mesmo ser
 liberado. Infelizmente! Imagem: Reprodução/Divulgação

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) negou, nesta segunda, por unanimidade, autorização para a importação da Sputnik V, a vacina russa, um pedido originalmente feito por 10 Estados: Bahia, Acre, Rio Grande do Norte, Maranhão, Mato Grosso, Piauí, Ceará, Sergipe, Pernambuco e Rondônia. Cumpre destacar que o próprio governo federal encomendou um lote do imunizante. É uma pena, mas as restrições apontadas pela agência são graves e, até onde consegui pesquisar, inéditas no mundo. Ou se está diante de um erro brutal ou de um achado de relevância planetária.


Cumpre lembrar que a Anvisa pode conceder autorização para uso emergencial de uma vacina desde que aprovada por ao menos um de um grupo de agências internacionais de saúde, segundo dispõe o Artigo 16 da Lei 14.124. Entre esses estão o Ministério da Saúde da Rússia e a Anmat (Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica), da Argentina. Os dois países aplicam a Sputnik V.

Todos querem vacina, especialmente se ela vem com as bênçãos de uma revista científica como a "Lancet" e se já é aplicada em um país vizinho, sem que se tenha notícia, ao menos por enquanto, de ocorrências danosas. O mesmo se dá no México, na Sérvia e na Hungria. A Áustria fez um contrato para a compra do imunizante. Israel e Filipinas também fizeram encomendas.

Todos querem vacina, reitero, mas não a qualquer preço. As restrições apontadas pela Anvisa, a menos que sejam suficientemente contestadas, são graves.

A mais importante foi vocalizada por Gustavo Mendes, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da agência. Disse ele:
"Verificamos a presença de adenovírus replicante em todos os lotes. Isso é uma não-conformidade grave e está em desacordo com o desenvolvimento de qualquer vacina de vetor viral. A presença de um adenovírus pode ter impacto na nossa segurança quando utilizamos a vacina".

A Sputnik V recorre a dois adenovírus — o da primeira dose é distinto do da segunda —, que carregam a proteína S do Sars-CoV-2, que causa a Covid-19. O sistema imunológico reconhece a dita-cuja e reage, provocando, então, a imunização. Mas há uma condição para as vacinas que recorrem ao vírus ativo, que é também o caso da produzida por Oxford/AstraZeneca. O patógeno — que, em seu estado natural, pode causar uma gama variada de doenças respiratórias e gastrointestinais — tem de ser geneticamente modificado para não se replicar.

Esse risco está descartado no caso da Coronavac, que usa como vetor o próprio Sars-Cov-2, mas inativado — "morto", por assim dizer. A palavra vai entre aspas porque há um debate intenso sobre se o vírus é mesmo um ser vivo. Os adenovírus da Sputnik V não estão inativados, mas o pressuposto é que não se repliquem. Se, no entanto, foram encontrados patógenos replicantes, aí, cheio de tristeza e melancolia, digo: então a vacina não pode ser mesmo importada e aplicada.

Passei um bom tempo nesta madrugada tentando encontrar notícia semelhante mundo afora sobre esse achado feito pela Anvisa. E nada vi a respeito. Insisto: ou se trata de um erro monumental ou de um alerta global.

E por que o artigo de uma revista respeitada, como a "Lancet", não trata do assunto? É uma questão. O material produzido em escala industrial pode não ter a mesma qualidade da droga que sai do laboratório para o exame de especialistas. E, nesse particular, a agência também aponta falhas: não foi possível atestar as condições de produção do imunizante. Outra falta grave é a ausência de dados sobre a toxidade reprodutiva.

Ainda que a Sputnik V seja eficaz no combate à Covid-19, seria temerário uma agência de vigilância sanitária autorizar o uso de um imunizante que carrega patógenos capazes de se replicar. Uma coisa é um órgão dessa natureza liberar uma droga esgotando todas as possibilidades de efeitos adversos conhecidos, restando o desconhecido como risco — para isso, não há medida preventiva. Outra, distinta, é certificar um imunizante em que se sabe, de saída, haver vírus replicantes.

Por Reinaldo Azevedo

CPI: liminar de juiz contra Renan é ilegal; Senado deve recorrer e ignorar



A liminar concedida pelo juiz Charles Renaud Frazão de Moraes contra a possível posse do senador Renan Calheiros (MDB-AL) como relator da CPI da Covid, que se instala nesta terça, é uma aberração. Trata-se de uma ilegalidade escandalosa, não importa quantos objetivos supostamente nobres tenham movido a postulante — no caso, a deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP). Como se nota, não se cuida aqui de falar de nobreza, não é?

Zambelli entrou com uma ação popular que carrega duas alegações:
a: Renan é pai de Renan Filho, governador de Alagoas, e isso o tornaria suspeito;
b: o senador responde a processos na Justiça.

Ainda que um juiz federal pudesse interferir na distribuição de funções numa CPI — e o relator é definido por vontade exclusiva de quem vai presidi-la; nem eleição há para o cargo —, a argumentação é risível.

O governo de Alagoas não está, em princípio, entre os investigados. A comissão pode apurar a aplicação de recursos federais destinados aos Estados desde que surja algum fato que justifique a apuração. Fosse isto motivo de impedimento — vale dizer: vínculo entre senadores e Estados —, não haveria CPI possível.

Como? Renan é investigado? Bem, na atividade política, é raro quem não ostente essa condição — e, às vezes, a investigação até se dá por maus motivos. Vale dizer: há quem esteja na mira de adversários justamente porque fez a coisa certa. E a Justiça acaba servido de mau instrumento da luta política. A Lava Jato evidenciou essa desgraceira à farta.

A propósito: o presidente da República que temos é réu em duas ações penais, ora congeladas no Supremo, por apologia do estupro. A coisa está lá parada porque, segundo a Constituição, presidentes não podem responder no curso do mandato por atos anteriores ao dito-cujo. Se Zambelli acha que ser investigado deve impedir que um senador seja relator da CPI, então teria de, por coerência, sair por aí a pregar a deposição do seu chefe. Nota: estou brincando, claro! Jamais cobraria coerência de Zambelli.

Com a devida vênia, a liminar é um troço ridículo.

NÃO CONFUNDIR
Sim, o Supremo agiu certo ao mandar instalar a CPI da Covid. Afinal, ela é regulada pela Constituição. Há apenas três exigências para que exista: ao menos um terço das assinaturas da Casa; haver fato determinado; ter definido o tempo de existência. E os respectivos Regimentos Internos de Câmara e Senado impedem que CPIs investiguem outro Poder da República, os Estados e a outra Casa (isto é, nem Senado faz comissão de inquérito contra a Câmara nem o contrário).

A Justiça federal se imiscuir na definição de cargos de uma comissão é uma agressão inaceitável do Poder Judiciário, na figura de um juiz federal, no Poder Legislativo. Consta que o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) afirmou que a decisão não será cumprida. E entendo que está certo. Se cada juiz federal do Brasil — em torno de 2 mil — decidir interferir, à vontade, em atos da rotina interna do Parlamento, o Poder chegaria à virtual paralisia.

RENAN EM 2016
Não custa lembrar: no dia 5 de dezembro de 2016, numa decisão monocrática e esdrúxula, o ministro Marco Aurélio, do Supremo, determinou que o mesmo Renan fosse afastado da Presidência do Senado. A decisão não tinha amparo constitucional. Deve ter sido a bola mais estratosférica que o ministro terá chutado em seu tempo na corte.

Bem, Renan negou-se a cumprir a decisão. Dois dias depois, em 7 de dezembro daquele ano, o próprio STF cassou a decisão de Marco Aurélio por seis votos a três.

Frazão é um juiz, vamos dizer, conhecido do Conselho Nacional de Justiça. Já teve a conduta investigada duas vezes pelo CNJ em razão de decisões, como posso definir?, polêmicas. Parece-me que, desta vez, ele foi longe demais, o que talvez esteja a merecer um terceiro exame pelo referido conselho.

É certo que Renan vai recorrer da decisão absurda, que será necessariamente cassada. Se o Senado, antes de qualquer desdobramento, declarar Renan o relator da CPI, estará apenas cumprindo a Constituição e o Regimento Interno.

A liminar de Frazão não tem nenhum amparo legal. E, por óbvio, é preciso desestimular decisões dessa natureza.

Por Reinaldo Azevedo

segunda-feira, 26 de abril de 2021

'Atuação dos governadores impediu morticínio no País'



O veredito da ciência

Uma questão crucial a ser elucidada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para apurar as responsabilidades do governo na crise pandêmica é: por que o País que tem um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, com histórico de sucesso no combate a outras doenças e um aparato de vigilância sanitária avançado, apresentou resultados tão catastróficos? Se a resposta, com todas as suas consequências, não vier à luz, não será por falta de subsídios da comunidade científica.

Como mostra um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Michigan e da FGV, no início da pandemia o Global Health Security Index classificava o País como o mais preparado da América Latina para lidar com emergências de saúde pública. Daí a resposta bem-sucedida a epidemias como as de HIV/aids, hepatite C e H1N1.

O estudo sobre o Brasil integrou o livro The Comparative Politics and Policy of Covid-19, que reuniu mais de 60 pesquisadores para analisar governos de todo o mundo. Os resultados mostram que os países com melhor desempenho seguiram as orientações da Organização Mundial da Saúde e aliaram medidas de saúde a políticas sociais. Ou seja, ponto por ponto o contrário do que fez Jair Bolsonaro. “O presidente e seus apoiadores (governadores de quatro Estados, parte das Forças Armadas, alguns membros do governo, como o ministro das Relações Exteriores, e certos grupos de extrema direita) advogaram políticas públicas que refletiram uma pseudociência na melhor das hipóteses, e o negacionismo na pior.”

A pesquisa detalha como Bolsonaro empregou seus poderes constitucionais para minimizar a pandemia e boicotar os Estados. Um caso de prejuízo diretamente causado pela negligência do Planalto foi a demora no fechamento das fronteiras no início do surto. Outro, causado por sua ação direta, foram as medidas provisórias empregadas para obstruir os esforços de restrição da circulação por parte dos Estados, como a que indexou dezenas de serviços como “essenciais”. “Bolsonaro interferiu no Ministério da Saúde como nunca antes visto no período democrático”, lembrou uma das pesquisadoras. “Ele interveio em protocolos de tratamento e até no modo de divulgação dos dados da pandemia.”

Outro estudo, da revista médica The Lancet, identificou diversos problemas na gestão federal, entre eles as deficiências dos quadros levados ao Ministério da Saúde pelo ex-ministro Eduardo Pazuello, para substituir vários técnicos por militares sem competência, tal como ele, em saúde. Também questiona a subutilização dos fundos de emergência de R$ 44,2 bilhões aprovados em fevereiro. Até outubro de 2020 – período crítico para a contenção do surto – o Ministério havia empregado apenas 23% de seus recursos.

Além desses problemas, um levantamento da revista Science destaca a baixa capacidade de testagem. Até o final de 2020, o País havia testado apenas 13,6% da população, o que o coloca entre os que menos testaram no mundo, conforme o Our World Data, da Universidade de Oxford. O estudo também aponta a forte correlação no início da pandemia entre o número de mortes e as vulnerabilidades socioeconômicas. É outro ônus para o governo federal. Em emergências de saúde em um país tão grande e diverso como o Brasil, o Ministério da Saúde tem um papel fundamental na compensação das desigualdades regionais. Quando falta a articulação federal, as consequências podem ser catastróficas, como se viu na crise de abastecimento de oxigênio em Manaus.

Certa vez, Pazuello confessou que antes de assumir a pasta não sabia o que era o SUS. Talvez aprenda nos inquéritos a que será submetido no Congresso que a calamidade em sua gestão só não foi maior pela resiliência do sistema. Bolsonaro, por sua vez, tentou mobilizar congressistas para avançar a proposta de incluir os Estados na CPI. Não conseguiu, porque isso seria inconstitucional. Se fossem incluídos, seria outro tiro no pé do governo. Os levantamentos científicos são unânimes em apontar que o morticínio no Brasil só não foi pior por causa da atuação responsável da maior parte dos governadores.

Editorial do Estadão

Um país na escuridão



O governo alegou falta de verbas e cancelou o Censo de 2021. A pesquisa estava programada para 2020, mas foi adiada por causa da pandemia. Agora arrisca não acontecer nem em 2022, devido a cortes sucessivos no orçamento do IBGE.

A decisão condena o Brasil a um apagão estatístico. Não chega a ser uma surpresa. Os burocratas do bolsonarismo sempre desprezaram fatos e dados confiáveis. Preferem acreditar nas suas próprias versões.

No segundo mês de governo, o ministro Paulo Guedes reclamou que o questionário do Censo seria muito longo. “Se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”, declarou. A frase espantou técnicos que o ouviam pela primeira vez. Era só um sinal do que estava por vir.

A pretexto de economizar, Guedes ordenou a redução do levantamento previsto para o ano seguinte. Ao justificar o corte, disse que o Censo fazia 360 perguntas. Na verdade, a última pesquisa básica fez 49. O ministro insistiu na tese. “Custa muito caro e tem muita coisa que não é tão importante”, decretou.

A ordem para mutilar o questionário abriu uma crise no IBGE. Técnicos avisaram que a medida comprometeria a qualidade do Censo. A presidente Susana Cordeiro Guerra não quis saber. Acatou a ordem do chefe e demitiu dois diretores que contestavam o corte.

No mês passado, foi a vez de Susana pedir o boné. Estava contrariada com a aprovação do Orçamento sem as verbas necessárias para organizar o Censo. Ela sabia que a pesquisa seria cancelada, mas não quis reconhecer o fiasco. Preferiu atribuir a saída a “motivos pessoais”.

Os ataques ao IBGE começaram logo após a eleição de Jair Bolsonaro. Em novembro de 2018, o capitão afirmou que os dados sobre o desemprego eram “uma farsa”. Cinco meses depois, disse que o índice só servia para “enganar a população”.

O negacionismo também atingiu outros órgãos federais. Quando o desmatamento da Amazônia começou a disparar, o presidente acusou o Inpe de divulgar “números mentirosos”. Seu diretor, o cientista Ricardo Galvão, foi demitido e chamado de “mau brasileiro”.

Na pandemia, o Ministério da Saúde comandou uma operação para maquiar os dados de mortos pela Covid. Os veículos de comunicação tiveram que montar um consórcio para apurar a real dimensão da tragédia.

Como alertaram oito ex-presidentes do IBGE, o cancelamento do Censo põe o Brasil num pequeno clube de países há mais de 11 anos sem uma pesquisa nacional. Nos casos de Líbia, Afeganistão e Haiti, o problema é consequência de guerras e terremotos. No Brasil, a causa é o desgoverno.

O apagão estatístico vai comprometer a formulação e a execução de políticas públicas. Causará prejuízos à saúde, à educação, ao transporte e à moradia. Deixará o país sem informações essenciais para planejar sua reconstrução pós-pandemia.

Para Bolsonaro, o cancelamento da pesquisa pode ter uma utilidade. Os dados jogariam luz sobre o tamanho da destruição promovida nos últimos anos. Sem conhecê-los, o eleitor terá que ir às urnas na escuridão.

As voltas que a vida dá



Bolsonaro investiu contra a vida liderando a maior política de destruição ambiental do Brasil moderno. E investiu de novo contra a vida negando a pandemia do coronavírus.

A vida começa agora a cobrar de forma combinada os crimes de Bolsonaro. Numa só semana, convergiram a Cúpula de Líderes sobre o Clima e a CPI da Covid, eventos que lembram a Bolsonaro que sua própria vida ficará para sempre marcada por seu desprezo à vida das florestas e dos bichos e pelo sacrifício humano envolto na tese da imunização de rebanho.

Por mais que psicólogos mergulhem no labirinto da mente de Bolsonaro, nenhuma explicação atenua o dado objetivo de tantas árvores derrubadas, tantos animais carbonizados, tantas pessoas mortas pelo coronavírus.

A economia explica apenas parcialmente. Bolsonaro acha que é preciso tirar todos os recursos da natureza, independentemente do rastro de destruição. Da mesma forma, ele acha que a economia precisa funcionar, independentemente das pessoas que o vírus consome.

A verdade é que Bolsonaro não se importa tanto com a economia, não estuda o tema e, ao se eleger, designou um ministro para responder a todas as perguntas, a quem chamou de Posto Ipiranga. O que move o presidente não chega a ser, portanto, nem uma teoria econômica, por mais grosseira e obsoleta que possa parecer.

Tanto na destruição das florestas como na tragédia humana diante do vírus, o que move Bolsonaro é sua vontade de permanecer no poder.

A floresta interessa na medida em que garanta os votos dos seus predadores; as pessoas podem morrer para que uma suposta normalidade econômica garanta a reeleição.

É muito conhecida a literatura sobre essa obsessão com o poder, a necessidade de respeito e até admiração que os poderosos obtêm quando se revestem dessa condição que lhes parece mágica.

Mas o caso de Bolsonaro é singular. Existe uma coerência em todas as suas escolhas. A morte é a grande aliada desde a opção destrutiva no ambiente e na pandemia, passando pela difusão das armas, chegando até a detalhes como suprimir multas de quem se descuida da cadeirinha do bebê no carro.

Essa aliança com a morte pode ser também o resultado de uma grande frustração com a própria vida. Mas, de novo, deixo isso aos psicólogos ou àqueles que preferem combater Bolsonaro no plano da sanidade mental.

Por meio de grandes episódios como a Cúpula do Clima e a CPI da Covid, entretanto, é possível compreender o antagonismo de Bolsonaro com todos todos os tipos de vida no planeta.

E refletir sobre isso. Não importa a Bolsonaro se o país se tornar um deserto, muito menos se os que ele considera mais fracos forem tombando pelo caminho.

Nunca na história moderna do país a indiferença diante da realidade política poderá ter consequências tão devastadoras para nosso futuro.

A Cúpula do Clima serve para mostrar a importância da luta da Humanidade para a sobrevivência das novas gerações e a contradição de Bolsonaro com essa gigantesca reação vital.

Ali, ele apenas mentiu, supondo que possa enganar o mundo. Seu objetivo sempre foi desmontar a fiscalização, acabar com a “indústria da multa”, liberar o garimpo e enfraquecer os povos indígenas.

A CPI da Covid servirá para revelar aquilo que muitos de nós já sabemos. Mas pode fazê-lo de uma forma séria e pedagógica para que todos compreendam a responsabilidade de Bolsonaro.

Essas duas vertentes, a ambiental e a sanitária, sempre estiveram aí enquanto, de uma certa maneira, Bolsonaro gritava “Viva la muerte”, como o oficial do Exército de Franco.

É estranho que esse grito tenha dominado um país mundialmente conhecido pela vitalidade. Imperdoável, no entanto, que ele possa ecoar em 22, o prazo final para o encerramento dessa fúnebre passagem da História do Brasil.

Por Fernando Gabeira

General lista as 23 aberrações do governo. E o MPF? Dando milho aos pombos!



Jair Bolsonaro está em pânico com a CPI. A verdade é que não contava com ela. Sim, caros: CPIs, por si, não punem ninguém. Encaminham suas conclusões ao Ministério Público. Este que temos é o que é: Augusto Aras, procurador-geral da República, decidiu ser um escudo protetor do presidente. Seu braço direito na PGR, a subprocuradora-geral Lindora Araújo, próxima da família Bolsonaro, prefere voltar suas baterias contra os governadores. E a parte do MPF que não orbita em torno da dupla está empenhada em defender os próceres da extinta Lava Jato das ilegalidades que cometeram. É impressionante o que está em curso! O governo teme mais as consequências políticas da exposição de seus desatinos na comissão do que propriamente as consequências jurídicas— no curto prazo ao menos.

Afinal, o MPF, com notáveis exceções, parece ter esquecido o seu papel de defensor de direitos fundamentais. Ficou viciado no trabalho de polícia — aquele cantado em prosa e quase verso por Roberto Barroso no Supremo. Se não for para "caçar corruptos", segundo interesses políticos determinados, não sabe o que fazer. E notem que esse papel de Polícia não está garantido pela Constituição. Decorre também dessa inércia a rotina aterradora a que estamos expostos: os absurdos de um dia são sempre superados pelos do dia seguinte. E vem a constatação: nada acontece. Nota: não! Isso nada tem a ver com o fato de que Bolsonaro escolheu o procurador-geral fora da lista tríplice; lista que não tem previsão constitucional, diga-se — a exemplo do papel de polícia exercido pelo MP, que é outra invenção. A instituição já havia perdido o rumo muito antes, quando decidiu fazer política. E pelas mãos de um procurador-geral que havia, sim, saído da tal lista inconstitucional. Mas volto ao eixo.

A CPI se transformou no único elemento de perturbação na paz dos cemitérios que marca o governo Bolsonaro. Não! O presidente não dará 400 mil mortos de presente às mães no dia que as homenageia, como eu havia antevisto. Essa fronteira do morticínio em massa será ultrapassada antes. A quantidade de aberrações cometidas pelo governo federal e seus valentes escandaliza qualquer pessoa com um senso de decência ainda que mínimo. E podem esperar: o presidente da República e seus Leporellos não passarão um só dia sem acrescentar alguma indignidade nova às anteriores.

Reportagem de Rubens Valente, no UOL, evidencia o buraco em que se meteu o país. O próprio governo, por iniciativa da Casa Civil, elaborou um roteiro com 23 questões/temas que considera que serão abordados pelos senadores na CPI. Distribuiu os itens entre 13 ministérios, cobrando que elaborem respostas. Não deixa de ser impressionante.

Ao fazer tal lista, o ministro Luiz Eduardo Ramos estabelece uma espécie de roteiro das incompetências e iniquidades do governo. O troço, em princípio, parece servir mais à oposição do que ao Planalto. Se a CPI ainda não tinha elaborado seu plano de trabalho, não precisa mais se dedicar a tal esforço. O trabalho de Ramos é menos uma estratégia de defesa do que uma confissão.

Aliás, fico imaginando a vergonha que não devem ter sentido -- em havendo ainda capacidade de corar por lá -- os procuradores da República ao tomar conhecimento da lista "Lista de Ramos". Deveriam olhar-se no espelho, lembrar-se das atribuições do Ministério Público e constatar:
"E isso tudo acontecendo bem debaixo do nosso nariz. Estamos tão ocupados em defender aqueles dos nossos que cometeram ilegalidades flagrantes; estamos com a cabeça tão enfiada no corporativismo atrasado; estamos nos dedicando com tal afinco em garantir o lugar de poder que conquistamos ao arrepio da própria Constituição, que acabamos deixando os brasileiros entregues à própria sorte. Vejam esta lista de Ramos. Ele está querendo o impossível: que se elaborem respostas para o irrespondível. E onde estivemos nestes dois anos e quatro meses?"

Pois é... Onde?

Transcrevo abaixo, leitores, a lista, conforme reportagem de Valente. Nem vou me dedicar a lembrar fatos que transformam em evidências aquilo que o general certamente considera acusações injustas. E, no entanto, uma das mais caras estruturas que compõem o Estado brasileiro -- o Ministério Público Federal -- está absolutamente ausente e inerme. O que se fez do caput do Artigo 127 da Constituição? A saber:
"O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

Vamos às culpas, que Ramos confessa, ainda que não tenha sido essa a intenção, em nome do governo:

1- O Governo foi negligente com processo de aquisição e desacreditou a eficácia da Coronavac (que atualmente se encontra no PNI [Programa Nacional de Imunização];

2- O Governo minimizou a gravidade da pandemia (negacionismo);

3- O Governo não incentivou a adoção de medidas restritivas;

4- O Governo promoveu tratamento precoce sem evidências científicas comprovadas;

5- O Governo retardou e negligenciou o enfrentamento à crise no Amazonas;

6- O Governo não promoveu campanhas de prevenção à Covid;

7- O Governo não coordenou o enfrentamento à pandemia em âmbito nacional;

8- O Governo entregou a gestão do Ministério da Saúde, durante a crise, a gestores não especializados (militarização do MS);

9- O Governo demorou a pagar o auxílio emergencial;

10- Ineficácia do PRONAMPE [programa de crédito];

11- O Governo politizou a pandemia;

12- O Governo falhou na implementação da testagem (deixou vencer os testes);

13- Falta de insumos diversos (kit intubação);

14- Atraso no repasse de recursos para os Estados destinados à habilitação de leitos de UTI;

15- Genocídio de indígenas;

16- O Governo atrasou na instalação do Comitê de Combate à Covid;

17- O Governo não foi transparente e nem elaborou um Plano de Comunicação de enfrentamento à Covid;

18- O Governo não cumpriu as auditorias do TCU durante a pandemia;

19- Brasil se tornou o epicentro da pandemia e 'covidário' de novas cepas pela inação do Governo;

20- Gen Pazuello, Gen Braga Netto e diversos militares não apresentaram diretrizes estratégicas para o combate à Covid;

21- O Presidente Bolsonaro pressionou Mandetta e Teich para obrigá-los a defender o uso da Hidroxicloroquina;

22- O Governo Federal recusou 70 milhões de doses da vacina da Pfizer;

23 - O Governo Federal fabricou e disseminou fake news sobre a pandemia por intermédio do seu gabinete do ódio.

Caramba!

Está tudo aí.

Basta fazer a lista de convocados.

E tudo isso aconteceu enquanto boa parte dos membros do Ministério Público ou estavam ocupados em defender a corporação ou se encontravam sentados na praça, dando milho aos pombos, como naquela música. E alguns, claro!, puxando o saco do bolsonarismo.

Por Reinaldo Azevedo

domingo, 25 de abril de 2021

A república da mentira



A 18 meses da eleição presidencial, a escolha entre o péssimo e o menos ruim volta a assombrar. Mais do que o dilema entre um representante de direita e outro de esquerda – o que poderia ser saudável -, até então a escolha opõe dois candidatos que se acham acima de tudo e todos, têm a mentira como método e comprovada habilidade de cegar seus fiéis. A semana passada foi mais uma prova disso: o presidente Jair Bolsonaro virou guardião da floresta e o ex Lula o homem mais honesto da face da Terra.

Ao falar na Cúpula do Clima, Bolsonaro defendeu tudo aquilo que ele não faz e manda quem faz desfazer: combate incansável ao desmatamento ilegal e investimento em dobro em fiscalização. Não fosse pelo tatibitati da leitura, sem as inflexões exigidas para dar consistência à narrativa, poderia se dizer que o texto fora lavrado por gente do porte de Marina Silva.

Menos de 24 horas depois, o orçamento de 2021 arreganhou o corte de R$ 240 milhões no Ministério do Meio Ambiente, parte significativa na área de fiscalização, nos já desmontados Ibama e ICMbio. Em investimentos, dobrou-se o zero.

O orçamento, que inviabilizou a realização do Censo neste ano e praticamente extinguiu o programa de habitação popular, escancarou mais mentiras, algumas de envergonhar Pinóquio. Bolsonaro, que na sua nova persona em favor de vacinas disse que não falta dinheiro para comprá-las, vetou R$ 200 milhões para o imunizante 100% nacional desenvolvido pela USP de Ribeirão Preto, recursos prometidos por seu ministro de Ciência e Tecnologia, o astronauta Marcos Pontes. Cortou R$ 2,2 bilhões na Saúde e autorizou que o repasse de recursos seja feito a conta-gotas mesmo para questões emergenciais como compra de kits para intubação.

Não há dedos que cheguem para contar as mentiras de Bolsonaro, nem mesmo se limitarmos o tempo em uma única semana. Com Lula não é diferente.

Aliviado com as decisões camaradas do STF, que, passados dois anos e meio, entendeu que tudo que havia entendido até agora estava errado, Lula propagou a todos os cantos que a Justiça foi feita com o reconhecimento de sua inocência. Mentira deslavada. Mas que pega, por má-fé de quem a prega. Calúnia fácil diante da barafunda jurídica do país, boa parte dela patrocinada pela Corte Suprema.
Continua após publicidade

Lula continua réu nas quatro ações que estavam em Curitiba. De concreto, obteve vitórias moral e política que o permitem, como fênix, ressuscitar das cinzas.

Ainda que liberado por hora do processo do triplex do Guarujá, que voltou à estaca zero, Lula não terá como se livrar da reforma do apartamento que ele diz que não era dele, mas que Léo Pinheiro, da OAS, jura que comprou para ele. Do elevador interno e da cozinha kitchen replicada no sítio de Atibaia, que Lula também diz que não era dele, embora jamais tenha sido frequentado pelo pseudo-dono, o amigo Fernando Bittar. Também não foi para Lula que a enrolada Oi – a mesma que fez mimos milionários para o Lulinha – instalou uma ERB nas proximidades do sítio, conhecida pela vizinhança como “antena do Lula”.

Nem Lula nem o PT lucraram com os milhões pagos a mais para empreiteiras líderes, regiamente devolvidos para financiar campanhas, correligionários, amigos e luxos, detalhados tintim por tintim por Marcelo Odebrecht. No Distrito Federal, o ex é réu em outros três processos, um deles cabeludíssimo, derivado da Operação Zelotes, no qual Lula responde ao lado do filho Luis Claudio. Envolve desvios e benefícios na compra de aviões-caças e na edição de uma Medida Provisória que prorrogou regalias para montadoras.

O rol de mentiras do ex é extensíssimo. Fala e faz o que agrada o cliente da vez para satisfazer a sua necessidade imediata. Agora, Lula tenta se reinventar como político de centro, despido do discurso radical que, no momento, ele considera impróprio. A ordem é não demonizar as elites, os empresários, a mídia, em especial a TV Globo, emissora que foi alvo do ódio dos petistas e agora encarna o diabo para os bolsonaristas.

Nas redes sociais, ambiente que explicita com mais clareza o baixo calão da disputa, a polarização Bolsonaro versus Lula se intensifica. Nada de ideias, propostas, nenhuma preocupação com o país, nem um milímetro de inteligência. É uma guerra entre quem mente mais e melhor.

Um digladio barato que empobrece a política e reduz as chances de soluções para a tríplice crise – sanitária, econômica e social. Passa da hora de o país se livrar dessa amaldiçoada equação binária e dar musculatura a uma terceira força. Do contrário, a república da mentira continuará a prosperar.

Por Mary Zaidan