segunda-feira, 31 de maio de 2021

Bolsonaro diz ser imorrível, imbroxável e incomível, mas é só incompetente



Bolsonaro foi infectado pelo vírus que inocula a ilusão no organismo. Em fase de delírio, o presidente sofre o pior tipo de ilusão. A ilusão de que preside. Bolsonaro acha que é uma coisa. Mas sua reputação revela que ele já se tornou outra coisa.

O presidente acaba de perder o monopólio do asfalto. A oposição lulista encheu as ruas neste sábado, deflagrando uma disputa para verificar quem favorece mais o coronavírus.

Alheio a tudo, o presidente pendurou nas redes sociais uma foto. Nela, aparece segurando uma camiseta com três palavras: "Imorrível, imbroxável e incomível." Hummmmmm... Será?

Na política, a morte é anterior a si mesma. Às vezes, o sujeito já começou a morrer e não sabe. Bolsonaro, por exemplo, é um vivo tão pouco militante que o eleitor começa a lhe enviar coroas de flores. Sua taxa de rejeição bateu em 54%, informa o Datafolha.

A virilidade, quando é real, costuma ser exercitada em silêncio. A de Bolsonaro parece existir apenas no gogó. Prometia há semanas editar decreto para revogar medidas sanitárias restritivas. O imbroxável brochou no instante em que protocolou no STF ação contra três estados: PR , PE e RN. Sabe que sofrerá uma derrota.

Incomível? Em cartaz há apenas um mês, a CPI da Covid já desnudou Bolsonaro. Uma mosca jura ter testemunhado na intimidade do Alvorada o instante em que o capitão colocou na vitrola uma música do grupo Mamonas Assassinas. Virou hit de festas infantis na década de 90. O verso mais pungente fala do drama de uma alma atormentada que se meteu numa suruba: "Já me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém."

Nem apenas imorrível, nem imbroxável, nem incomível. Bolsonaro revela-se, na verdade, um rematado incompetente.

Por Josias de Souza

PM de Pernambuco agrediu também a democracia; cena lembra ditadura militar



As cenas do batalhão de choque da PM de Pernambuco avançando contra os manifestantes, disparando bombas de efeito moral e balas de borracha, com o tradicional grito de guerra de uma tropa que avança contra inimigos são revoltantes, asquerosas, absurdas. Pergunta: a Polícia Militar deu um golpe "de" Estado "no" Estado, depôs o governador Paulo Câmara (PSB), e não ficamos sabendo?

Aquilo a que se assistiu ali foi um crime autodemonstrado. Não há uma só circunstância nem mesmo atenuante. Alguém disse: "Pau neles!", ou expressão que o valha, e os policiais atacaram de maneira vil e covarde pessoas que não estavam nem mesmo, como pode acontecer nesses casos, afrontando alguma determinação de ocasião. As imagens são bastante eloquentes: a determinação de descer o porrete se prova pela coreografia dos lados. Só um avançou, só um atacou, só um disparou para ferir e para intimidar.

O resultado da ação criminosa: Daniel Campelo, 51 anos, está cego do olho esquerdo. Jonas Correia de França, de 29 anos, está cego do olho direito. O governador mandou afastar o comandante da operação e outros policiais envolvidos na agressão com gás de pimenta à vereadora Liana Cirne (PT). Aliás, essa ação merece nova consideração. Já tratei do assunto aqui.

Também nesse caso, a agressão foi imotivada. Liana se aproximava de uma viatura para conversar com os policiais, sem qualquer postura ameaçadora. E foi atacada. Mais uma evidência de que aqueles que estavam nas ruas tinham um propósito. Quem deu as ordens?

Entrei no site da PM do Estado. Não há uma miserável nota a respeito. E ainda somos apresentados ao seguinte texto, com as vírgulas (ou não) que lá estão:
"A Polícia Militar de Pernambuco (PMPE) surgiu através do Decreto Imperial, datado de 11 de junho de 1825, firmado pelo Imperador D. Pedro I, que criou, na então Província de Pernambuco, um corpo de Polícia, este convindo para a tranquilidade e segurança pública da cidade do Recife. (Decreto exposto no Salão de Honra do Quartel do Comando Geral). O referido Corpo de Polícia surgiu em decorrência da Confederação do Equador, movimento republicano revolucionário ocorrido em Pernambuco em 1824, e sufocado pelo Brigadeiro Lima e Silva, que atingiu as Províncias da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, cujos revolucionários foram derrotados e vários executados, entre eles o pernambucano Frei Caneca. Esse Corpo de Polícia era composto de um efetivo inicial de 320 homens e constituído um Estado-Maior, uma Companhia de Cavalaria e duas de Infantaria."

Os que se colocam como uma espécie de herdeiros políticos de Frei Caneca saem por aí furando olhos de cidadãos pacíficos?

É preciso acompanhar de perto o desdobramento da apuração. Isso não pode terminar com a punição de algum soldado raso ou, o que é pior, com a impunidade — a menos que o governo do Estado tenha mesmo perdido o controle da Polícia. E, então, será preciso perguntar quem está no comando.

Câmara determinou que a Procuradoria Geral do Estado dê início ao processo para indenizar as vítimas e que a Secretaria de Direitos Humanos acompanhe o atendimento médico a ambos. Em nota, afirmou:
"Assim como estamos acompanhando a investigação que está sendo realizada pela Corregedoria, também vamos seguir de perto a assistência às pessoas que resultaram feridas".

Sim, isso tudo está certo. Mas, como se percebe, são ações de reparação a um agravo que fere também a democracia e o estado de direito. É preciso saber se a PM virou palco de proselitismo político, de sorte que forças que devem servir à população resolveram administrar politicamente o monopólio do uso da força.

O que aconteceu em Recife evidencia, mais uma vez, a necessidade de o Brasil se adequar a outras democracias do mundo. É preciso pôr fim às Polícias Militares, em particular à sua subordinação, em último caso, ao Exército. A segurança pública tem de ficar a cargo de forças de segurança civis.

A Polícia de Nova York, por exemplo, deve satisfações ao prefeito da cidade e não é força auxiliar do Exército americano. A etimologia da palavra "militar" remete ao soldado que se prepara para a guerra. E nós precisamos de uma força que reprima o crime em nome da paz. Não é mera retórica.

O que motivou o ataque aos manifestantes? O desejo de reprimir o crime? Obviamente, não. Vai ver há setores dentro da PM de Pernambuco que se consideram soldados de alguma guerra — quem sabe de natureza ideológica.

Sim, é preciso pôr fim às PMs, com a conversão de seus quadros à condição de guardas civis. Isso demora muito, eu sei. Mas tem de ser feito se queremos ser uma democracia digna do nome. É tarefa de longo prazo.

Num tempo mais curto, é preciso saber de onde partiu a ordem criminosa para bater em gente pacífica.

No vídeo abaixo, o momento em que começa o ataque criminoso.

 

 Por Reinaldo Azevedo

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Esquerda vai às ruas para mostrar que a insanidade não tem uma ideologia



O Brasil vive dias fascinantes. Com os contágios e as internações novamente em alta, o país assiste a uma divisão dos epidemiologistas em dois grupos. Uma ala acredita que a terceira onda da pandemia está prestes a chegar. Outra banda sustenta que nova onda já chegou.

Nesse ambiente infeccioso, a esquerda lulista decidiu combater as aglomerações de Bolsonaro promovendo os seus próprios ajuntamentos. Repetindo: a esquerda responderá à estupidez da direita provando que também sabe ser estúpida.

Esquerda e direita reforçam a impressão de que são movidas por uma fé que evoca a origem cristã ou socialista da maioria dos seus devotos. A pandemia apenas potencializa a impressão de que o ingrediente da dúvida está excluído dos dois credos.

Ambos são movidos pelas certezas que extraem das revelações divinas ou do determinismo histórico. Acorrentados às suas respectivas convicções, avaliam que têm uma missão especial na terra, de inspiração divina ou revolucionária.

O contrário do anti-lulismo e do anti-bolsonarismo primários é o pró-lulismo e o pró-bolsonarismo inocentes, que aceitam todas as presunções das duas tribos a seu próprio respeito. Em matéria de pandemia, isso inclui concordar com a tese segundo a qual as minorias são potências morais que só prestam contas às suas próprias noções de superioridade.

Não é a hipocrisia dos dois grupos que assusta. A hipocrisia pelo menos exige alguma reflexão. O espantoso é notar que os devotos dos dois polos não estão sendo cínicos. Acreditam mesmo que a missão especial que cumprem na Terra lhes dá o direito de firmar uma aliança com o vírus. Quem observa à distância pode imaginar que sofrem de insanidade. Engano. Desfrutam cada segundo dela.

Caso de Salles abre fenda no sistema de blindagem idealizado por Bolsonaro



Bolsonaro construiu um sistema de blindagem em três camadas. Para anestesiar investigações, colocou Anderson Torres, um amigo da família, no Ministério da Justiça, de cujo organograma pende a Polícia Federal. Para inibir a procura, entregou a poltrona de procurador-geral a Augusto Aras. Para manter uma centena de pedidos de impeachment na gaveta, apostou cargos e verbas na eleição do réu Arthur Lira à presidência da Câmara. De repente, o enrosco criminal que enreda o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) num caso de corrupção e lavagem de dinheiro transformou uma suposta blindagem invulnerável numa casamata de vidro.

Alheio aos acertos de Bolsonaro com o seu ministro da Justiça, o delegado federal Franco Perazzoni dirigiu-se diretamente ao Supremo para informar sobre os malfeitos na pasta do Meio Ambiente. Ignorando Aras, que mandara arquivar investigação contra Salles, o ministro Alexandre de Moraes concedeu ao delegado o aval para realizar batidas de busca e apreensão em endereços do investigado e seu grupo. O magistrado ordenou ao delegado que mantivesse o procurador-geral de estimação de Bolsonaro no escuro até a conclusão das buscas. Temia o vazamento de informações.

Podendo afastar o ministro sob suspeição, mesmo que temporariamente, Bolsonaro preferiu transformar o derretimento de Salles num processo de corrosão da sua Presidência. No momento, o melhor ponto de observação para acompanhar os movimentos do presidente é o telhado de vidro. É dali que o brasileiro tem uma visão panorâmica de um fenômeno curioso: o descaso ético do presidente vai criando no governo um drama estético.

Antes mesmo da conversão de Salles em bomba radioativa, já estava entendido que o compromisso de restauração da moralidade assumido por Bolsonaro com seus eleitores em 2018 não passava de estelionato eleitoral. O problema é que o drama do governo migrou da área ética para o campo da estética. Afora o ministro o ministro Salles e sua turma, há um ministro palaciano, Onyx Lorenzoni, que teve de fazer acordo com o Ministério Público para administrar uma confissão de caixa dois; há os líderes do governo na Câmara e no Senado, senador Fernando Bezerra e deputado Ricardo Barros, às voltas com inquéritos por corrupção; há o réu Arthur Lira, convertido em zagueiro da grande área da Câmara.

Tudo isso e mais uma organização familiar com fins lucrativos. Bolsonaro perde o nexo quando chama adversários de ladrões e vagabundos sem levantar o tapete que esconde coisas assim: as debilidades do zero à esquerda número um, Flávio Bolsonaro, os depósitos mal explicados do operador de rachadinhas Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro e, agora, a contemporização com as suspeitas de crime atribuídas a Ricardo Salles. Além de antiético, o governo vai se tornando esteticamente horroroso.


Por Josias de Souza

Covid-19 dispara. Fale-nos, presidente imbrochável, incomível e imprestável



E se a gente cobrasse uma resposta de Jair Bolsonaro, este que tem fama de presidente da República? O que lhes parece? Já digo por que escrevo isso.

Dezessete Estados e o Distrito Federal têm ocupação de 80% ou mais em seus leitos de UTI para Covid-19, informa o Boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz que foi divulgado nesta quarta. Nove capitais estão com 90% ou mais: Rio, Curitiba, Recife, São Luís, Natal, Maceió, Aracaju, Campo Grande e Palmas.

No DF, chega a mais de 95%. A taxa de contaminação voltou a ficar acima de 1 depois de 57 dias. Está em 1,12. Isso quer dizer que cada grupo de 100 pessoas infectadas contamina 112. Vale dizer: a curva é ascendente. Não obstante, aquele que dizem ser presidente já anunciou que vai recorrer de novo ao Supremo para impedir que governadores e prefeitos possam impor medidas restritivas. Ele estava pensando num decreto, mas, compreensivo que é, recuou.

Espalham-se os sinais de uma terceira onda sem que a segunda tenha dado algum descanso. De fato, é só a que já temos voltando a empinar. Os mortos vão se empilhando. E novas cepas vão sendo detectadas. Os vacinados com duas doses são pouco mais de 20 milhões. Marcelo Queiroga, aquele outro suspeito de ser ministro da Saúde, baixou para 43,8 milhões a expectativa de vacinas para julho — 8 milhões a menos do que havia sido divulgado.

COVARDIA
Bolsonaro prefere, nessas horas, a covardia. Por que não dá uma entrevista coletiva em vez de ficar jogando perdigotos de indignidade às portas dos Alvorada, como um arruaceiro qualquer? Ainda que seja. Não custa lembrar que, bem ou mal, tem as vestes presidenciais. As simbólicas ao menos. Eis a hora em que cabe indagar ao presidente: qual a sugestão?

Levar uma vida normal e ignorar o repique da contaminação, de consequências ainda incertas? o"Modelo Bolsonaro-Pazuello" de enfrentar a Covid-19 teve um laboratório: Manaus. Foi lá que a frenética circulação do vírus deu à luz a variante P1, que devastou o país. Não é culpa dos manauaras, claro!, mas de uma política porca empreendida pelo Ministério da Saúde.

É claro que, mesmo com um governo decente, haveria muitos milhares de óbitos. Mas é certo que não teríamos chegado a essa catástrofe. Afinal, está demonstrado, o distanciamento funciona.

SÃO PAULO
Na cidade de São Paulo, a taxa de ocupação das UTIs saltou de 76% na sexta para 82% na segunda. A Prefeitura deve abrir 250 novos leitos para tratamento intensivo. Já há hospitais lotados em Campinas. Ribeirão Preto tem um número recorde de internados. Em Franca, nesta teça, a ocupação de leitos das redes pública e privada chegava a 97,9%.

VOLTO AO PONTO
Saia desse conforto covarde, Bolsonaro! Forme a rede de rádio e televisão e diga aos brasileiros:
"Em julho, haverá oito milhões a menos de doses de vacina do que o meu Ministério da Saúde prometeu, e as contaminações e as mortes voltaram a aumentar. Por isso mesmo, peço a vocês que levem uma vida normal, que não tenham medo, que aglomerem, que façam festas, que partam para o abraço. Afinal, todo mundo morre um dia. Esse é o meu remédio para a superlotação dos hospitais. Quando não houver mais vagas de UTI ou de leitos normais, as pessoas param de reclamar e morrem quietas, em casa, sem perturbar".

Mas o presidente, bom retórico que é, tem de ir mais longe:
"Como eu sempre digo, a liberdade é mais importante do que a vida, e é preciso que vocês digam para esses comunistinhas que vocês optaram pela liberdade de morrer".

E cumpre ao presidente ser realista. Muitos gostam de sua sinceridade:

"Eu não morri. Mas é porque sou imorrível, imbrochável, incomível e, como teria dito Vicente Matheus certa feita, lendário presidente do Corinthians, sou também imprestável".

E pronto.

Por Reinaldo Azevedo

Nem Bolsonaro nem os governadores podem ser convocados pela CPI. É ilegal!



Não sei se o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que tem se comportado com muita correção na CPI da Covid, propôs a convocação de Jair Bolsonaro como uma espécie de "fogo de encontro" — isto é, para fazer frente, então, à de nove governadores. Uma coisa eu sei: embora não esteja escrito em lugar nenhum que é proibido convocar presidentes, a interdição se dá pela ausência. Vou explicar. Mas é preciso dizer de cara: também a dos governadores é ilegal.

Comecemos pelo Artigo 146 do Regimento Interno do Senado:
"Art. 146. Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes:
I - à Câmara dos Deputados;
II - às atribuições do Poder Judiciário;
III - aos Estados."

Ainda que se possa afirmar que se quer saber a destinação de recursos federais destinados a Estados, é evidente que a comissão estaria investigando aquilo que o Regimento Interno diz que não pode ser investigado. Não naquela instância.

Tanto pior quando ficamos sabendo que o critério que orientou a seleção dos nove governadores foi a existência de operações da Polícia Federal em seus respectivos Estados. Bem, então se poderia dizer que os senhores chefes dos Executivos estaduais chegariam à comissão na condição de investigados? Perda de tempo e de foco. Se chamados na condição de testemunhas, não poderiam se ausentar, é isso? E se o fizessem? A CPI expediria um mandado de condução coercitiva? Ora...

Parece-me evidente que, se recorrerem ao STF, os governadores terão uma liminar para não comparecer. Cumpre que a comissão não vá além de suas sandálias, mormente quando o viés que determinou a escolha é, obviamente, o investigativo.

Ademais, como se sabe, tentar conquistar o coração de bolsonaristas é tarefa inútil. Não será por isso que eles vão reconhecer a isenção técnica da apuração.

Lembro as palavras de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, por ocasião da criação da CPI:
"Corroborando essa tese, com base também em parecer da Advocacia-Geral do Senado, esclareço que são investigáveis todos os fatos que possam ser objeto de legislação, de deliberação, de controle ou de fiscalização por parte do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional, o que, a contrário senso, implica que estão excluídos do âmbito de investigação das comissões parlamentares de inquérito do Poder Legislativo federal as competências legislativas e administrativas asseguradas aos demais entes Federados -- disse Pacheco, antes de determinar que os líderes já podem indicar os membros para a CPI da Covid."

A fiscalização da aplicação de recursos por governadores, pouco importa a origem, não é de competência do Congresso. Ponto final. Faz sentido que o governador do Amazonas, por exemplo, seja chamado a depor? Faz. Mas não para investigar gastos. Seria útil ter seu testemunho sobre a crise de oxigênio no Estado.

Em novembro de 2021, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar a mandado de segurança impetrado pelo então governador de Goiás, Marconi Perillo, que havia sido convocado para a chamada "CPI do Cachoeira. Escreveu o ministro com acerto:
"Em um primeiro exame, a interpretação sistemática do Texto Maior conduz a afastar-se a possibilidade de comissão parlamentar de inquérito, atuando com os poderes inerentes aos órgãos do Judiciário, vir a convocar, quer como testemunha, quer como investigado, Governador. Os estados, formando a união indissolúvel referida no artigo 1º da Constituição Federal, gozam de autonomia, e esta apenas é flexibilizada mediante preceito da própria Carta de 1988".

E JAIR BOLSONARO?
Randolfe apresentou um requerimento para o depoimento de Jair Bolsonaro. É claro que parte considerável do que se apura na CPI constitui atos do seu governo. Mas entendo que estaria caracterizado, aí sim, a interferência de um Poder -- no caso, o Legislativo -- em outro: o Executivo.

Prevê o Artigo 50 da Constituição:
"A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas Comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada."

Como se nota, nada há sobre a convocação do presidente. E, nesse caso, não havendo, então não pode. O poder público — de que a CPI é expressão — faz o que lei prevê e não o que ela não proíbe.

Se o chefe do Executivo Federal não pode depor numa CPI, também não podem os governadores e prefeitos, como lembrou Marco Aurélio, com base no Artigo 1º da Constituição:
"A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos (...)":

Somos uma "união indissolúvel" em uma "República Federativa". Há unidade, mas também a independência dos entes federados. E isso significa que a investigação, do âmbito legislativo, dos atos de governadores e prefeitos deve se dar, respectivamente, nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores.

ENCERRO
"Ah, se é para chamar os governadores, então vamos chamar Bolsonaro também". Estar-se-ia, é verdade, em busca de um critério de proporcionalidade, mas que nada tem a ver com a ordem legal. Todas as convocações são ilegais.

Não há como aprovar a convocação de Bolsonaro. E a dos governadores tem de ser cancelada. Em nome das regras do jogo, cada um deles deveria entrar com um mandado de segurança para que se cumpra o preceito e para que a CPI não se perca em descaminhos, como querem os governistas que lá estão.

Embora não tenha sido convocado, eu até gostaria de assistir a um embate entre João Doria e o quarteto governista da CPI: Eduardo Girão (Podemos-CE), Jorginho Mello (PL-SC), Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Marcos Rogério (DEM-RO).

A primeira e eloquente questão seria levar a público quantas doses de vacinas foram aplicadas em seus respectivos Estado e qual a origem do imunizante.

Não é preciso muito esforço para desmoralizar esses valentes.

Por Reinaldo Azevedo

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Chegou a hora de meter em cana quem mente de forma deliberada à CPI



A CPI está diante de um impasse. E também o Poder Judiciário — no caso, o STF. Precisamos decidir qual é o alcance e o que quer dizer a concessão de uma liminar que garante ao depoente em uma CPI, quando fala na condição de testemunha, o direito de ficar calado — vale dizer: de não produzir provas contra si mesmo; de não ser levado à autoincriminação.

E deixo claro: eu concordo com a concessão dessas liminares. Mas elas garantem o direito ao silêncio, não o suposto direito de mentir.

O bolsonarismo é tosco, burro, obscurantista, primitivo, cretino. Enfileirem aí quantas desqualificações vocês julgarem pertinentes, abusando do abecedário. E, muito provavelmente, estarão certos. Mas, a exemplo de todos os sacripantas — palavra substituível por "velhacos", "patifes", "indignos" —, alguns que falam à comissão sabem se safar.

E os safados são treinados na arte do escape. Conseguem se esgueirar — uma condição que lhes é natural, intrínseca — entre as dificuldades que lhes são criadas pelas pessoas decentes, que têm apreço pela verdade.

"Não estou entendendo, Reinaldo. Aonde você quer chegar?"

Vocês repararam que tanto Eduardo Pazuello como Mayra Pinheiro, que chegaram à CPI escoltados por uma liminar que lhes garantia o direito ao silêncio nas questões que podem levar à autoincriminação, optaram por falar? Não se ouviu nem do ex-ministro nem da "secretária-sei-lá-do-quê" a fala: "Eu prefiro não responder". Nada disso! Como pessoas destemidas, resolveram enfrentar os questionamentos.

Mas aí abusaram da mentira. Então estamos diante de um problema: se alguém recorre ao Supremo para não ser levado à autocriminação, estamos, sim, no terreno das garantias democráticas. O Estado — e a CPI é expressão de um dos Poderes do Estado: o Legislativo — não pode impor que a pessoa produza provas contra si mesma.

Quando se escolhe, diante de uma comissão de inquérito, o caminho do silêncio, vê-se uma manifestação de respeito à instância que tem delegação popular para a investigação. Se, no entanto, com a garantia debaixo do braço, o depoente, na condição de testemunha, decide mentir, então se assiste a uma afronta.

Pazuello e Mayra fizeram pouco caso da comissão e da investigação. Se isso persiste, resta à CPI apenas a desmoralização.

TRATECOV
As mentiras de Pazuello já foram esmiuçadas. Mayra seguiu a trilha. Com a cara mais limpa do mundo, afirmou, por exemplo, que o tal aplicativo TrateCov, uma picaretagem criminosa, não foi ao ar. Mentiu. Sim, o troço foi colocado à disposição da população.

Como lembrou o próprio senador Omar Aziz, presidente da CPI, no depoimento de Pazuello, houve uma reportagem da TV Brasil a respeito, com o testemunho de um médico do Amazonas. Aliás, esse senhor tem de ser encontrado. Ele tem CRM? É conhecido por alguém no Estado? É mentira que o acesso das pessoas ao tal aplicativo tenha se devido a uma cópia feita por um jornalista.

Eis aí: essa é uma das questões sobre a qual a tal Mayra poderia ter se calado. E teria sido uma atitude de respeito à comissão. Mas ela escolheu mentir para os senadores na certeza de que nada vai lhe acontecer. O bolsonarismo desmoraliza o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, as Forças Armadas, as instituições como um todo... Por que não buscaria desmoralizar uma comissão de inquérito?

OMS
Mayra também mentiu ao afirmar que a OMS mudou de ideia sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no combate à covid-19. Essa orientação nunca existiu. Ao contrário. No começo da pandemia, o máximo que se disse e que poderia ser, de algum modo, do agrado dos cloroquinistas é que não havia estudos que indicassem a eficácia dessas drogas. Depois, multiplicaram-se os estudos evidenciando a sua ineficácia e, pior, os graves efeitos colaterais advindos do uso impróprio. Em março deste ano, veio a recomendação explícita: contra o uso da cloroquina.

Acontece que Mayra não tinha um compromisso com os fatos. Estava na CPI, com um documento que lhe garantia o direito de silenciar, para proteger Jair Bolsonaro e, parece, fazer pouco caso dos senadores.

Otto Alencar (PSD-BA) a esmagou como se esmagaria um verme anticientífico. Depois de deixar claro que a cloroquina e hidroxicloroquina não são antivirais, indagou à doutora se existem remédios preventivos contra sarampo, paralisia infantil ou varíola que não sejam as vacinas. São doenças virais. E ela teve de concordar: não existem! Então por que as tais drogas combateriam o coronavírus? Ela escondeu o seu silêncio atrás da máscara.

LOCKDOWN
Mayra repetiu a mentira contada por Pazuello. Afirmou que a OMS, que chegou a recomendar o lockdown, hoje admite que ele pode ser responsável pela miséria. É uma estupidez. Isso não aconteceu. Como é sabido, a organização reconhece a eficácia da medida, mas adverte para a necessidade de atender aos vulneráveis.

Mayra não é nenhuma tola. É pediatra, com especialização em medicina do trabalho. Já foi sindicalista. Presidiu o Sindicato dos Médicos do Ceará. Opôs-se ferrenhamente à presença dos médicos cubanos no Brasil porque, dizia, não se podia atestar a qualidade de sua formação profissional. Chegou a se candidatar a senadora pelo Ceará. Ficou em quarto lugar. Uma das críticas da doutora ao "Mais Médicos" era esta: " [O programa] também trouxe a abertura indiscriminada de escolas de medicina no Brasil, de que não precisamos e que são de péssima qualidade."

Eis a qualidade da "Capitã Cloroquina".

CONCLUO
A CPI tem de tomar uma decisão. E aqui convoco a opinião de juristas. Se uma testemunha, especialmente quando escoltada por uma liminar que lhe garante o direito de ficar em silêncio, opta por enganar os senadores, bem, aí não vejo alternativa que não seja mesmo a voz de prisão.

Assim deve ser com Pazuello, com Mayra ou com qualquer outro que resolva escolher o caminho da trapaça.

Por Reinaldo Azevedo

terça-feira, 25 de maio de 2021

Em vez de presidir, Bolsonaro 'despreside' o país



No meio científico, a terceira onda da pandemia ainda divide opiniões. Parte dos especialistas acha que ela já começou, outro grupo avalia que ela está por vir. Na política, não há nenhuma dúvida: Bolsonaro surfa há tempos a terceira onda de sua irresponsabilidade sanitária. Depois de receitar cloroquina e travar a aquisição de vacinas, o presidente dedica-se a favorecer a proliferação do vírus. Desde o início de abril, realizou 14 viagens. Seus deslocamentos se transformam em atos mal disfarçados de campanha eleitoral e atentados escancarados às normas sanitárias.

Há um quê de sadismo no comportamento de Bolsonaro. No comando de um país atormentado pela doença, em vez exercer a honrosa função de presidente da República, o capitão como que "despreside" o Brasil. Leva às fronteiras do paroxismo o prefixo 'des', que dá às palavras um sentido contrário. Bolsonaro desqualifica a ciência, desdiz as normas do Ministério da Saúde, ameaça editar um decreto para desfazer o que os Estados fazem.

Um presidente de verdade, unificaria o país, pacificando-o. Visitaria não os palanques, mas os hospitais. Renderia homenagens a médicos e enfermeiros. Confortaria as famílias dos mortos. Pregaria a vacinação. O "despresidente" Bolsonaro faz tudo ao contrário. Muitos imaginam que o inquilino do Planalto sofre de insanidade. Engano. Ele aproveita cada segundo dela.

No domingo, a insanidade de Bolsonaro foi compartilhada por Eduardo Pazuello. Depois de se notabilizar por ter feito o pior no Ministério da Saúde o melhor que pôde, o general produz constrangimentos em série. Ao participar do comício fora de época ao lado de Bolsonaro, Pazuello avacalhou o Exército, escarneceu da CPI da Covid e espremeu os próprios calos.

Para se livrar da avacalhação, o comando do Exército precisa punir Pazuello. Do contrário, transformará em peças sem nexo o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar do próprio Exército, que proíbem a participação de militares da ativa em manifestações políticas.

Em resposta ao escárnio do general, a CPI terá de reconvocar Pazuello. Não há outra coisa a fazer senão confrontar o general com as mentiras às quais ele se acorrentou para blindar Bolsonaro. Punido pelo Exército e enquadrado pela CPI, Pazuello talvez perceba que quem tem tantos calos como ele não deveria se meter em apertos.

Sociedade Brasileira de Infectologia rebate crítica de Mayra na CPI



A SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) rebateu crítica de Mayra Pinheiro, servidora do Ministério da Saúde, conhecida como "Capitã da Cloroquina" por sua defesa no uso do remédio sem comprovação científica contra a covid-19.

Durante depoimento à CPI da Covid, que investiga ações e omissões do governo federal em meio à crise sanitária, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) elencou entidades —dentre elas, a SBI— que publicaram notas técnicas contra o uso do medicamento no tratamento contra a covid-19 e questionou à secretária se ela não considerava as instituições idôneas.

"Senadora, eu não vou discutir aqui a idoneidade dessas representações, mas o Ministério da Saúde não precisa se nortear... A senhora citou aí a Sociedade Brasileira de Infectologia. Boa parte dos trabalhos que a Sociedade Brasileira de Infectologia utilizou para fazer uma nota desorientando ou desaconselhando o uso dessas medicações tem trabalhos com graves conflitos metodológicos... que nós não podemos usar como referência", afirmou ela.

Em nota divulgada logo depois da declaração da servidora, a SBI rebateu dizendo que se pauta por publicações com nível de evidência reconhecidos pela comunidade científica.

"[As publicações] balizaram as recomendações das principais associações médicas e Instituições mundiais sobre o uso de medicamentos, como a
cloroquina e ivermectina, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS), Sociedade Norte-Americana de Doenças Infecciosas (IDSA), Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) e Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID). Tais medicamentos têm sua ineficácia comprovada para o tratamento da covid-19", diz trecho do comunicado.

"O Ministério da Saúde tem a prerrogativa de seguir ou não as orientações da SBI, que são realizadas baseadas nessas evidências científicas e direcionadas para a comunidade médica e não médica", conclui, em seguida.

No UOL

segunda-feira, 24 de maio de 2021

General Santos Cruz critica Bolsonaro e Pazuello após ato no Rio: 'irresponsável e perigoso'



O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro do governo de Jair Bolsonaro, criticou o presidente e o general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, após os dois terem participado de uma “motociata” no Rio de Janeiro, no último domingo, que causou aglomerações pela cidade. Santos Cruz escreveu no Twitter que “o presidente e um militar da ativa mergulharem o Exército na política é irresponsável e perigoso”.

O general, que foi ministro da Secretaria de Governo de Bolsonaro, afirmou ainda que os dois desrespeitam o Exército e são “um mau exemplo, que não pode ser seguido”.

“DE SOLDADO A GENERAL TEM QUE SER AS MESMAS NORMAS E VALORES. O presidente e um militar da ativa mergulharem o Exército na política é irresponsável e perigoso. Desrespeitam a instituição. Um mau exemplo, que não pode ser seguido. PÉSSIMO PARA O BRASIL”, escreveu Santos Cruz.

Pazuello, como general da ativa da instituição, é proibido pelo regulamento disciplinar do Exército de se manifestar politicamente. No entanto, ele chegou a falar durante a manifestação em cima do carro de som em que também estava Bolsonaro. Ambos estavam sem máscara, assim como demais presentes no ato.

Segundo Lauro Jardim noticiou em sua coluna, o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann considerou "gravíssimo" "o ato do general Pazuello de subir no palanque com o Presidente da República". Atual chefe da pasta, Braga Netto, e o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, também já tiveram ao menos um conversa telefônica ainda no domingo para tratar da crise aberta com a presença do general na manifestação.

Em O Globo

Bolsonaro impõe dilema ao Exército: punir Pazuello ou se desmoralizar



Ao converter Eduardo Pazuello em adereço do comício antissanitário que realizou no Rio de Janeiro, Bolsonaro deixou o comando do Exército numa farda justa. General da ativa, Pazuello está submetido ao Estatuto dos Militares e ao Regulamento Disciplinar do Exército, que vedam o envolvimento de fardados da ativa com questões político-partidárias e a participação em manifestações políticas.

Recém-acomodado no posto de comandante do Exército, o general Paulo Sérgio Nogueira está diante de um dilema: ou pune Pazuello, arriscando-se a ser desautorizado por Bolsonaro, ou desmoraliza a instituição que jurou defender. Não há uma terceira opção.

"Esse é o gordo do bem, é o gordo paraquedista", declarou Bolsonaro, do alto de um caminhão de som, com Pazuello a tiracolo. Alguma coisa subiu à cabeça do ex-ministro da Saúde quando se deixou levar pelo ex-chefe. Pazuello ainda não se deu conta de que o cérebro é mais ou menos como um paraquedas. Funciona melhor quando está aberto para a realidade.

A realidade de Pazuello é inóspita. Protagonista de inquérito no Ministério Público e de auditoria no Tribunal de Contas da União, o ex-ministro está prestes a ser convocado novamente pela CPI da Covid. O comandante Paulo Sérgio molha a farda para impedir que os infortúnios de Pazuello infeccionem a imagem do Exército.

Parte da cúpula militar avalia que o maior excesso que se poderia cometer diante dos pendores políticos de Pazuello seria o excesso de moderação. Afora os riscos disciplinares, há o receio de permitir que o passivo sanitário acumulado por Bolsonaro seja jogado na porta dos quarteis.

Antecessor de Paulo Sérgio no comando do Exército, o general Edson Leal Pujol declarou no ano passado: "Não queremos fazer parte da política, muito menos deixar ela entrar nos quartéis."

O que Pujol quis dizer, com outras palavras, foi o seguinte: Os generais que ocupam postos civis no governo Bolsonaro comandam escrivaninhas, não tropas. Deveria ser uma obviedade. Mas o capitão tornou a reiteração de obviedades uma necessidade.

Pujol foi escanteado por Bolsonaro, mas o raciocínio que expressou em público, por dogmático, continua de pé. Ironicamente, Paulo Sérgio, o sucessor de Pujol, discute a hipótese de punir Pazuello com o general Braga Netto, um ministro da Defesa que ornamentou uma aglomeração política com Bolsonaro uma semana antes de Pazuello.

Alega-se que Braga Netto já passou para a reserva. A desculpa é real, mas esfarrapada. O titular da pasta da Defesa deveria oferecer aos subordinados o exemplo de uma conduta irretocável. No caso de Pazuello, há um incômodo adicional: o personagem resistiu a todos os apelos para que pendurasse a farda. Ele será instado novamente a migrar para a reserva. A providência viria bem, mas chegaria tarde. O estrago está feito. Será maior se Pazuello não for punido. O leque de alternativas vai de mera advertência à prisão disciplinar.

Por Josias de Souza

sábado, 22 de maio de 2021

Articulação para 2022 inicia no território da farsa



A campanha presidencial de 2022 começa de um jeito esquisito. Dias atrás, numa entrevista, Ciro Gomes escolheu Lula, de quem foi ministro, como adversário preferencial. "Eu vou pra cima dele", declarou Ciro, referindo-se a Lula como "o maior corruptor da história brasileira."

No cenário traçado por Ciro, agora orientado pelo ex-marqueteiro do PT João Santana, a candidatura de Bolsonaro vai derreter em meio à pandemia, abrindo espaço para que ele se apresente como principal adversário do ex-aliado Lula.

Num instante em que o governador tucano João Doria tenta se apresentar como uma opção de terceira via, Fernando Henrique Cardoso, presidente de honra do PSDB, almoça com Lula, um personagem de quem ele chegou a dizer que não compraria um carro usado.

Criticado pelo PSDB por prestigiar o líder petista, FHC foi às redes sociais para se explicar. Disse que, se não houver um tucano no segundo turno, votará em qualquer um que se apresente como adversário de Bolsonaro, inclusive Lula.

De passagem pelo Nordeste, Bolsonaro ironizou Lula, afirmando que a chapa do adversário será formada por um "ladrão candidato a presidente e um vagabundo como vice". Deu asas à especulação de que o relator da CPI da Covid, Renan Calheiros, a quem ele e o filho Flávio Bolsonaro chamaram de "vagabundo", pode ser o número dois da chapa de Lula.

Ainda sem partido, Bolsonaro declarou que pode retornar ao PP, uma das oito legendas que ele já integrou. Contou a novidade ao lado do presidente do PP, Ciro Nogueira, um antigo aliado de Lula que, no momento, contesta pedido da Polícia Federal ao Supremo para interrogá-lo num caso em que é acusado de receber propina de R$ 5 milhões da JBS como pagamento do apoio dado pelo PP à reeleição de Dilma Rousseff em 2014.

"Ele está me namorando", disse Bolsonaro, com a imagem já bem rachadinha, ao lado do investigado Ciro Nogueira. Quem observa esses movimentos fica com a sensação de que a política é mesmo o território da farsa.

Por Josias de Souza

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Centrão está prestes a ter o presidente do Brasil



Não é que o presidente tem o centrão do seu lado. O centrão é que está prestes a ter o presidente. É sempre melhor a pessoa se arrepender do que experimentou do que não experimentou. Exceto, é claro, queda de avião e filiação ao PP. Mas Bolsonaro já passou por tantos partidos —oito em três décadas— que cogita repetir uma velha experiência. Ensaia um retorno aos quadros do PP. Rebatizada de Progressistas, a legenda é uma espécie de locomotiva do centrão.

De passagem pelo Piauí, Estado do presidente do PP, Bolsonaro flertou com o passado. "Agradeço ao Ciro Nogueira, meu velho colega de Parlamento. Fui do partido Progressistas dele por muito tempo. Ele não está apaixonado por mim não, pessoal, mas ele tá me namorando. Ele quer que eu retorne ao partido. Quem sabe? Se ele for bom de papo, quem sabe a gente volte para lá. Não estou me fazendo de difícil não, é um grande partido."

Por mal dos pecados, Bolsonaro troca afagos com Ciro Nogueira num instante em que a Polícia Federal pede ao Supremo Tribunal Federal autorização para interrogar o dirigente partidário num inquérito sobre corrupção. Ciro é acusado de receber propina de R$ 5 milhões da empresa JBS para levar o seu PP a apoiar a reeleição de Dilma Rousseff ao Planalto em 2014. O senador nega a acusação.

O namoro de Bolsonaro com o centrão obrigou o general Augusto Heleno, ministro palaciano do Gabinete de Segurança Institucional, a executar piruetas retóricas. Na campanha de 2018, Heleno cantava em encontro partidário que, "se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão". Agora, o general diz que já não tem a mesma opinião. "Não reconheço hoje a existência desse centrão", ele declara.

Quer dizer: em política, nada se cria, nada se transforma, tudo se corrompe.

Por Josias de Souza

Bolsonaro faz a mais intelectual e politicamente delinquente das "lives"



Alguém meio distraído pode achar que o presidente Jair Bolsonaro diz os disparates mais asquerosos porque está com tudo, por cima da carne seca, com a popularidade em ascensão, à frente de um governo competente e valoroso. Mas é precisamente o contrário.

Porque acuado e desmoralizado, inclusive pela CPI, tem pouco a perder. E então pode dizer qualquer coisa. Toda cidade pequena tem o doido que sai pela rua a gritar as suas verdades, incompreensíveis para a maioria. À diferença de Bolsonaro, costumam ser mansos.

Nesta quinta, o presidente fez a mais intelectual e politicamente delinquente de todas as lives. Estava acompanhado do milico reformado Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura, que costuma servir de escada, com ar afetando seriedade, para os desatinos do chefe.

Constate-se: vai fazer 46 anos. Ainda é jovem. Na posição em que está, candidata-se a seguir adiante, se quiser, na iniciativa privada em posições de comando — especialmente depois de fazer a sua rede de contatos. Certamente vê como vantajosa a relação custo-benefício. Restam, claro!, as questões moral e ética. Mas não são assuntos que se devam levar ao debate nesse governo. Com ninguém. Sem exceção.

CLOROQUINA
Ao lado de Tarcísio, ambos, claro, sem máscara, Bolsonaro afirmou que teria sentido, por esses dias, mal-estar que seria típico de Covid. E explicou o procedimento que adotou:
"Tomei aquele negócio para combater a malária e, no dia seguinte, estava bom. E vou dizer mais: há poucos dias, estava sentindo mal e, antes mesmo de procurar o médico, -- olha só que exemplo que eu estou dando --, eu tomei depois aquele remédio, que estava com sintoma. Tomei, fiz exame, não estava [infectado]. Mas, por precaução, tomei. Qual o problema? Eu vou esperar sentir falta de ar para procurar um hospital?".

Ele não cita os nomes "cloroquina" ou "hidroxicloroquina" para evitar que as redes sociais derrubem o vídeo por espalhar "fake news". A seu lado, nada menos do que um homem formado pelo Instituto Militar de Engenharia — área das chamadas ciências exatas. Ah, Exército Brasileiro...

O presidente do Brasil estava promovendo um remédio ineficaz no combate Covid-19 — as duas drogas nem mesmo são antivirais —, incentivando a automedicação com substância de alta toxidade sem o devido controle médico e, claro, contando uma mentira factual: ainda que tenha mesmo ingerido o remédio e melhorado em seguida, o que veio depois não é consequência do que veio antes, qualquer que fosse o seu mal.

Por que a insistência? Claro, há um cálculo político. O país ainda vive a tragédia da pandemia e pode estar às portas de uma terceira onda. Bolsonaro aposta na recuperação da economia para tentar a reeleição e defende que o país volte ao normal, ainda que essa normalidade implique milhares de mortes. Mas não é só isso.

Já está demonstrado não ser um homem de convicções. À parte a maçaroca de reacionarismos que dispara, nem sabe direito o que pensa. Não tendo um pensamento, tem, no entanto, obsessões, coisa típica de seu perfil clínico. Admitir um erro seria coisa de fracos. Então leva a farsa adiante. É claro que a Procuradoria-Geral da República deveria tomar providências. Mas nada vai acontecer. Augusto Aras está ocupado processando articulista de jornal.

ATAQUES A FHC E LULA
Senso de limite? Nunca teve! Atacou também dois antecessores: Lula e FHC. Se a eleição fosse hoje, perderia a disputa para o petista no segundo turno por 55% a 32%, aponta o Datafolha.

No dia em que circula a notícia de que Lula admitiu a candidatura em entrevista a uma revista francesa, Bolsonaro se referiu a um de seus potenciais adversários em 2022 como "ladrão de nove dedos". O ex-presidente perdeu o mindinho da mão esquerda num acidente de trabalho. Sendo quem é, Bolsonaro acha de bom tom tratar uma mutilação como se fosse um defeito de caráter — o que, obviamente, expõe o seu... caráter.

FHC também apanhou. O tucano afirmou numa entrevista de TV -- e repetiu em uma live nesta quinta -- que, num eventual segundo turno entre Bolsonaro e Lula, votaria no candidato do PT. Foi brindado pelo ogro com estas palavras gentis:
"Até teve uma passagem bastante notória naquele momento, que invadiram a fazenda do Fernando Henrique Cardoso. Esse FHC que está dizendo agora que vai votar no Lula. Olha a cara de pau. Esse cara de pau FHC dizendo que agora vai votar no Lula. Dá uma vontade de soltar um dinheirinho para o MST da região da fazenda do FHC para o pessoal invadir de novo lá, quem sabe ele aprenda".

O MST certamente não aceitaria um "dinheirinho" de Bolsonaro para organizar uma invasão. Mas fica a curiosidade: o atual presidente já recorreu aos serviços de algum grupo ou milícia na base de "soltar um dinheirinho"?

GOVERNADORES E SENADORES
Vulgaridade pouca é bobagem. Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão, virou "aquele comunista gordo". Também apanharam os senadores Renan Calheiros (MDB-AL), Humberto Costa (PT-PE) e Omar Azis (PSD-AM), membros da CPI. Formam, segundo Bolsonaro, "uma súcia".

Mas não pense que não houve elogios. Referindo-se ainda à CPI, afirmou:
"Pelo que fiquei sabendo agora, o Pazuello foi muito bem. Mas a CPI continua sendo um vexame nacional. Não querem investigar o desvio de recurso. Querem falar sobre -- não vou falar o nome aqui para não cair a live -- aquele negócio que o pessoal usa para combater a malária, e eu usei lá atrás".

Como se nota, há uma pessoa ao menos que avalia que o general teve um desempenho exemplar na comissão: Jair Bolsonaro.

CONCLUO
Para aqueles que o admiram, eis o governante corajoso, a quem nada abala. Com isso, mantém unida a, para ficar na palavra de sua predileção, "súcia" de fanáticos. Mas quem, com algum juízo, enxerga neste senhor o equilíbrio mínimo necessário para governar o país?

Havendo, há de ser alguém da mesma espécie. E merece igual confiança.

Sim, eu sei. Nunca teve, e isso já estava claro em 2018. Mas, em 2022, ele já terá um mandato de quatro anos. E vamos ver quantos milhares de mortos nas costas.

E, por óbvio, a experiência informa que não vai melhorar. Até hoje, ele só piorou.

Ah, quase esqueço. Ele encontrou tempo de elogiar um outro homem honrado:
"O ministro Ricardo Salles, um excepcional ministro, mas as dificuldades que ele tem junto a setores aparelhados do Ministério Público, os xiitas ambientais, as dificuldades são enormes".

Para lembrar:
1: o Ministério Público nada teve a ver com a ação desfechada no Meio Ambiente;
2: a investigação começou nos EUA;
3: quem conduziu a operação no Brasil foi a Polícia Federal;
4: foi a PF a pedir os mandados de busca e apreensão e as quebras de sigilo;
5: quem autorizou as medidas foi o STF, inclusive o afastamento de toda a cúpula da pasta comandada por Salles.

Por Reinaldo Azevedo

quinta-feira, 20 de maio de 2021

General vira recruta na CPI



A CPI em curso poderia ter acabado ontem, quarta-feira (19), mas já teria cumprido algum papel. Uma exceção. Primeiro porque CPIs em geral não dão em nada. Ninguém apostas as fichas que suas conclusões, por si só, levem à derrubada de Jair Bolsonaro, “eleito” com o apoio da maioria das bancadas do Congresso e lideranças de bastidores que hoje posam de arrependidas. Vide FHC e João Doria, para não citar outras tantas.

Depois, porque a enxurrada de declarações mentirosas e contraditórias dispensam até a habitual complacência da grande mídia diante do espetáculo. Aos olhos e ouvidos de todos, aparecem a conivência do governo com uma tragédia mundial que no Brasil foi tratada desde o início como uma “gripezinha”.

Os depoimentos de Fabio Wajngarten e Ernesto Araújo deixaram corada até a bancada miliciana do Planalto. A cada afirmação de ambos, surgiam declarações gravadas, televisadas, escritas ou posts desmentindo o que haviam acabado de falar. Silêncio ensurdecedor.

O grande momento, que ainda não acabou, foi o do general Pazuello, ex-ministro da Saúde. Apresentou-se como uma pessoa humilde, que venceu na vida pelo próprio esforço. Começou com uma mentira. Para quem se interessar por jornalismo, basta acessar este link. Os parlamentares da CPI, na sua maioria despreparados como de hábito, desconheciam ou não se incomodaram com o assunto.

Ignorância à parte, nem precisaram acionar tal curiosidade. A fala de Pazuello seguia o ritmo acelerado de uma corda apertando o próprio pescoço. O general-recruta misturava datas, transferia responsabilidades, misturava CGU, TCU e AGU, omitia trechos de documentos, escondia sua negligência diante da compra de vacinas, do morticínio em Manaus etc. Sua única preocupação era blindar o chefete Bolsonaro.

Aconteceu o que se esperava. Pazuello “pediu tempo”, a sessão foi suspensa e pouparam o ex-ministro de seguir no interrogatório até esta quinta. Ainda assim, ele preferiu a tergiversação. Disse que estava bem apesar de médicos atestarem que ele estava descompensado. Quem mentiu...

Fatos são fatos. Tudo mostra que o governo Bolsonaro depende atualmente de um bando de milicianos familiares, militares subservientes, motoqueiros fanáticos, capital financeiro estufado, mídia obediente e parlamentares sedentos do dinheiro público em geral. Não manda nem na Polícia Federal, que se dá ao luxo de humilhar um de seus ministros mais queridos –o motosserra Ricardo Salles.

Só resta a Bolsonaro o apoio do que há de pior. Cabe ao povo e à oposição verdadeira decidir que a única saída é salvar o país deste alucinado; ou deixar o Brasil sangrar até dezembro de 2022.

Por Ricardo Melo

Na urucubaca do meio ambiente, Tinhoso estabeleceu moradia nos detalhes



O Tinhoso fixou moradia nos detalhes da urucubaca que levou os rapazes da Polícia Federal aos endereços do ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Apura-se na operação a prática dos crimes de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação do contrabando de madeira abatida ilegalmente para os Estados Unidos. São quatro os detalhes em que o rabo e os chifres de Asmodeu estão presentes.

1) Gaveta furada: Em condições normais, o pedido da Polícia Federal para varejar escritórios e residências de Ricardo Salles passaria pelo crivo do procurador-geral da República Augusto Aras. Entretanto, o doutor arquivara uma primeira representação sobre o caso em outubro de 2020.

Acionado pela PF, o ministro Alexandre de Moraes, relator da encrenca no Supremo, determinou que Aras fosse avisado apenas depois da realização das batidas policiais. Temia-se por um segundo arquivamento prematuro. Pior: receava-se que a operação pudesse vazar. Aras é tão pouco militante na arte de procurar que começa a ser desligado da tomada por quem ainda procura.

2) Porteira fechada: O despacho de Alexandre Moraes tem 63 folhas. A certa altura, o magistrado reproduziu a declaração de Ricardo Salles na fatídica reunião ministerial de abril de 2020, aquela em que o titular do Meio Ambiente sugeriu que o governo aproveitasse o coronavírus para "passar a boiada" (reveja a declaração no vídeo abaixo). Moraes enxergou traços do espírito boiadeiro do ministro nos negócios trançados com madeireiros às margens da lei. Decidiu fechar a porteira.



3) Made in USA: A operação que fisgou Salles e mais dez servidores do seu ministério teve origem nos Estados Unidos. Em janeiro de 2020, um carregamento de madeira procedente do Pará foi retido no porto de Savannah, na Georgia. Faltava autorização do Ibama para a exportação da madeira. Ao farejar o cheiro de queimado, autoridades americanas alertaram o Brasil.

A invasão do curral de Salles deixa sem nexo as palavras jogadas ao vento por Bolsonaro há um mês na Cúpula do Clima, organizada pelo presidente americano Joe Biden. Nesse encontro, o capitão assumira o compromisso retórico de combater o desmatamento. Passou o pires: o Brasil espera contar com "todo apoio possível". Resta agora saber quem se animará a investir no meio ambiente de um país em que o ministro do setor estraga o ambiente inteiro.

4) Cânticos de alegria: Ricardo Salles descobre da pior maneira que não convém aos que possuem calos entrar em apertos. No mês passado, o ministro erguera o seu tacape contra o delegado federal Alexandre Saraiva. Chefe da PF no Amazonas, o doutor Saraiva perdeu o cargo depois de acusar Salles de se mancomunar com madeireiros pilhados na maior apreensão de madeira ilegal de todos os tempos.

A ficha de Salles demorou a cair. Mas a essa altura o personagem já deve ter notado que se meteu numa enrascada ao passar a rasteira no delegado. Corporações policiais não costumam deixar barato esse tipo de afronta. O delegado Saraiva, a propósito, pendurou no Twitter um Salmo (96:12): "Regozijem-se os campos e tudo o que neles há! Cantem de alegria todas as árvores da floresta."

Por Josias de Souza

A CPI pode tudo, exceto deixar-se surpreender



Numa CPI, mais maleável do que um inquérito convencional, quase tudo é permitido aos investigadores, exceto deixar-se surpreender. Na Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, os depoentes que se dispõem a blindar Bolsonaro operam num mundo com duas verdades: a que convém ao governo e a verdadeira. Foi assim com o ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten, com o ex-chanceler Ernesto Araújo e também com o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Não é concebível que os integrantes da CPI, sobretudo os da cúpula da comissão, não consigam se equipar para desmontar as lorotas.

É preciso desmascarar os mentirosos instantaneamente. Por razões óbvias. Quando a inverdade é apanhada na hora, vira uma mentira deslavada. Um dia depois, submetida à fricção das redes sociais, talvez seja considerada apenas uma outra faceta da verdade. Uma semana mais tarde, já ninguém mais distinguirá a olho nu a falsidade da realidade.

O presidente da CPI pode dar voz de prisão a um mentiroso. Mas esse tipo de arroubo costuma piorar o espetáculo sem produzir nada de útil para o relatório final da comissão. O relator Renan Calheiros quis prender Fábio Wajngarten. Em boa hora, o presidente da comissão, Omar Aziz, disse que não cogita fazer o papel de "carcereiro".

Optou-se por enviar uma representação ao Ministério Público. Pode-se fazer o mesmo com Pazuello. Sob o procurador-geral Augusto Aras, tende a dar em nada. Porém, serve para informar aos depoentes que a CPI não se dispõe a engolir insultos à inteligência alheia.

Irritado com a fabulação de Pazuello, Renan agora fala em contratar uma agência de checagem de fatos para assessorar a CPI. Pode ser útil. Mas o Senado economizaria o dinheiro do contribuinte se recorresse ao seu próprio quadro funcional, sortido e qualificado. De resto, a comissão pode requisitar mão de obra de órgãos como o Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal.

Esta CPI é marcada por uma peculiaridade. Os senadores seguem um rastro de provas que Bolsonaro produziu contra si mesmo durante a crise sanitária. O capitão cometeu erros em série. Agiu como se cultivasse o desejo secreto de ser apanhado. Contra esse pano de fundo, permitir que os mentirosos prevaleçam num depoimento é um flerte com a desmoralização.

Por Josias de Souza

Meio Ambiente - Investigação começou nos EUA; "Ibama" de lá deu aula ao de cá



A investigação contra Ricardo Salles e a cúpula do Meio Ambiente nasceu com a apreensão, no Porto de Savannah, na Georgia, nos EUA, de três cargas de produtos florestais oriundos do Brasil sem a devida documentação. Quem interceptou o material ilegal foi o Ibama de lá: o Serviço de Pesca e Vida Selvagem. Os dados foram enviados ao adido do órgão na embaixada dos EUA no Brasil, Bryan Landry.

Este, por sua vez, encontrou-se com o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, para tratar da apreensão dos carregamentos. Transcrevo, abaixo, relato da Polícia Federal:
Em 21/02/2020 (...), Bryan Landry e outros funcionários da Embaixada Americana em Brasília/DF realizaram reunião com Eduardo Fortunato Bim (Presidente do IBAMA), Raquel Taitson Queiroz Bevilaqua (Chefe da Divisão de Assuntos Internacionais) e João Pessoa Riograndense Moreira Junior (à época Coordenador-geral).

Na ocasião, o Bryan Landry explicou como funcionaria o Lacey Act, que estabelece uma série de condicionantes para a entrada de madeira estrangeira nos Estados Unidos e proíbe todo e qualquer comércio de plantas e produtos vegetais, inclusive móveis, papel e madeira, de fontes ilegais provenientes de qualquer estado dos Estados Unidos (a legislação estabeleceria, ainda, várias penalidades para violações da lei, inclusive o confisco de produtos e navios, multas e penas privativas de liberdade), e de que forma a referida lei poderia desempenhar um papel fundamental à proteção da Amazônia, justamente por proibir a entrada e a comercialização de qualquer produto que não esteja em pleno acordo com as leis brasileiras.

Destacou, ainda, que os documentos recebidos do Ibama teriam criado uma situação confusa para as autoridades dos Estados Unidos, pois teriam constatado possíveis irregularidades em relação às exportações apreendidas no porto de "Savannah"

A Tradelink é uma das empresas investigadas. Há outras. Entenderam o ponto? A embaixada americana estava dizendo ao órgão oficial de controle ambiental que este não estava seguindo as próprias regras. E agora vem a questão realmente sensacional. O Ibama resolveu informar à embaixada os truques a que tinha recorrido para tornar legal o ilegal. Segue outro trecho de relato da PF:

Em 25/02/2020, a Embaixada dos Estado Unidos, por meio do adido Bryan Landry, recebeu uma cópia do Despacho n. 7036900/2020-GABIN, denominado de "despacho interpretativo", firmado pelo Presidente do IBAMA (Eduardo Fortunato Bim).
(...)
A autoridade policial destacou, em síntese, que o Presidente do IBAMA, por meio do referido documento, teria fixado uma orientação geral no sentido de dispensar a necessidade de autorização específica para exportação dos produtos e subprodutos florestais de origem nativa em geral, em descompasso com o estabelecido na Instrução Normativa n. 15/2011, do IBAMA (Anexo VII). Ainda segundo ele, a legalidade da exportação seria atestada apenas pelo Documento de Origem Florestal (DOF), extraído de sistemas do Ibama, ou pela Guia Florestal (GF), expedida pelos órgãos ambientais estaduais.

Por fim, a autoridade policial asseverou que a referida empresa "TRADELINK MADEIRAS LTDA" seria uma infratora contumaz, possuindo inúmeras autuações que, somadas, totalizariam R$ 7.866.609,04 (sete milhões, oitocentos e sessenta e seis mil, seiscentos e nove reais e quatro centavos), além de ter noticiado a existência de cinco comunicações de operações suspeitas objeto do RIF n. 60204.2.2536.4046, de 20/04/2021 (Anexo VI), elaborado mediante solicitação da autoridade policial (SEI-C 80048, período compreendido entre 01/01/2016 a 19/04/2021).

O TRUQUE
Vale dizer: o presidente do Ibama resolveu eliminar a autorização para a exportação de maneira, bastando, então, o documento que autoriza o transporte. Na decisão desta quarta, o ministro Alexandre de Moraes tornou sem efeito o "despacho interpretativo" e restabeleceu a Instrução Normativa que obriga a emissão da autorização.

Ao todo, Moraes determinou 35 mandados de busca de apreensão. O eixo da investigação é a facilitação de contrabando de madeira, no curso do qual nada menos de nove crimes teriam sido cometidos, inclusive o de formação de organização criminosa.

Toda a cúpula do Meio Ambiente está sob investigação, a saber:
1: Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente;

2: Walter Mendes Magalhães Júnior: foi nomeado por Salles Superintendente Regional do Ibama no Pará em 08/10/2019, cargo em que permaneceu até 29/04/2020, quando foi promovido pelo ministro a Coordenador-geral de Fiscalização;

3: Olivandi Alves Azevedo Borges: No IBAMA, foi nomeado por Salles Diretor de Proteção Ambiental entre 10 de janeiro de 2019 e 13 de abril de 2020, quando foi promovido a secretário adjunto de Biodiversidade;

4: João Pessoa Riograndense Moreira Júnior: diretor Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas;

5: Rafael Freire de Macedo: é analista ambiental do Ibama. Na condição de substituto de João Pessoa Riograndense Moreira Júnior, foi o responsável por elaborar e assinar o "Ofício n. 7/2020/DBFLO" de 09/01/2020, que atestou a regularidade da carga da empresa "EBATA PRODUTOS FLORESTAIS LTDA" associada à "AIMEX", apreendida pelas autoridades americanas.

6: Eduardo Fortunato Bim, é o atual Presidente do Ibama, afastado do cargo por Moraes;

7: Olímpio Ferreira Magalhães: foi nomeado por Salles Superintendente do Ibama no Amazonas e posteriormente promovido para a diretor de Proteção Ambiental (DIPRO);

8: Leslie Nelson Jardim Tavares: é servidor de carreira do Ibama e foi nomeado por Salles Coordenador de Operações de Fiscalização (COFIS), em substituição a Hugo Ferreira Netto Loss, que foi exonerado após coordenar operação contra garimpo ilegal em terras indígenas no Pará;

9: André Heleno Azevedo Silveira: é oriundo da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e foi nomeado por Salles Coordenador de Inteligência de Fiscalização desde 20/08/2020;

10: Artur Vallinoto Bastos: é analista ambiental do Ibama em Belém/PA e foi o responsável pela emissão da "Autorização para Exportação n. 85/2020-NUFIS-PA/DITEC-PA/SUPES-PA", relativa à exportação de carga de madeira da empresa "WIZI INDÚSTRIA COMÉRCIO E EXPORTAÇÃO DE MADEIRAS LTDA", em 23/01/2020;

11: Leopoldo Penteado Butkiewicz: é o atual assessor especial do ministro do Meio Ambiente;

12: Wagner Tadeu Matiota: foi nomeado por Salles Superintendente de Apuração de Infrações Ambientais em 09/12/2020.

Também são investigadas as seguintes pessoas jurídicas:
13: Confloresta - Associação Brasileira das Empresas Concessionárias Florestais;

14: Aimex - Associação das Indústrias Exportadoras De Madeira no Pará;

15: Ebata Produtos Florestais Ltda";

16: Wizi Indústria Comércio e Exportação de Madeiras Ltda;

17: Tradelink Madeiras Ltda.

Foram ainda alvos de mandados de busca de apreensão, além das pessoas e empresas relacionadas acima:
18: Leônidas Dahás Jorge de Souza;

19: Leonidas Ernesto de Souza;

20: Esdras Heli de Souza;

21: David Pereira Serfaty;

22: Leon Robert Weich;

23: Jadir Antonio Zilio

SIGILOS QUEBRADOS E SUSPENSÃO DA FUNÇÃO PÚBLICA
Todas as pessoas físicas e jurídicas -- incluindo, claro!, o ministro Ricardo Salles e o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, tiveram os sigilos fiscal e bancário quebrados correspondentes ao período entre 01/01/2018 a 12/05/2021.

Sobre Salles, escreve Moraes:
"A esse respeito, a representação ainda aponta a possível existência de indícios de participação do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo de Aquino Salles, em razão de comunicações ao COAF por operações suspeitas realizadas, também nos últimos anos, por intermédio do escritório de advocacia do qual o referido Ministro de Estado é sócio",

Todos os membros da cúpula do Ibama, incluindo o seu presidente, e do Ministério do Meio Ambiente, exceção feita a Salles, estão afastados do cargo, conforme prevê o Inciso VI do Artigo 319 do Código de Processo Penal:
"VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais."

Salles, o machão, foi à sede à Superintendência da Polícia Federal em Brasília, acompanhado de uma segurança armado, para obter informações. Foi inútil. A investigação está sob sigilo.

A integra da decisão de Moraes está aqui.

Por Reinaldo Azevedo