Quando o coronavírus começou a assombrar o Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tinha o seu diagnóstico e o seu prognóstico: gripezinha. Quando os governadores adotaram, prudente e felizmente, medidas de isolamento social, ele se lançou em guerra: queriam destruir a economia, disse ele. E pronunciou algumas frases que vão entrar para história. Basta reproduzir agora uma delas que todas estarão representadas: "Todo mundo morre um dia". E, como de hábito, culpou a imprensa.
Sim, a imprensa séria e que se respeita tem um papel fundamental nestes dias: salvou milhares de vidas. Não fosse por ela, a ameaça que o patógeno representa não teria ficado suficientemente clara. Tem sido parceira fundamental dos governadores na tarefa de tentar impedir o caos no sistema de saúde. Em que consiste essa parceria? Em fazer o contrário do que faz Bolsonaro: a gente informa.
Pois é. Nesta sexta, no balanço dos 500 dias de governo Bolsonaro, o general Luiz Eduardo Ramos, secretário de governo e coordenador político do Planalto, resolveu dar um pito na imprensa. O chefe dele sai por aí a provocar aglomerações; vira garoto-propaganda de uma droga útil para outras doenças, mas inócua para a Covid-19 — e perigosa em qualquer caso se mal administrada; rompe com seu próprio ministro da Saúde (perdeu o segundo em menos de um mês), com os governadores e com lideranças importantes do Congresso; provoca uma crise política com o Ministério da Justiça em razão de interferência indevida na Polícia Federal... Em suma: o líder não lidera, mas é liderado pelo caos que ele mesmo provoca.
E o general Ramos, que é da ativa, faz o quê? Ora, resolve criticar a imprensa e dar aula de bom jornalismo. Falaríamos, os jornais, em excesso de mortos, caixões, más notícias. Daríamos pouco destaque aos que se curam. Em primeiro lugar, é mentira. Em segundo, note-se: quem se cura não precisa de leitos de enfermaria, de leitos de UTI, de respiradores, de anestésicos, de equipamentos de proteção individual...
Negando que queira minimizar a crise, o general volta a fazer aquela conta absurda, injustificada, sobre o número de pessoas que morrem em acidentes. O raciocínio é tão lunático que nem errado consegue ser. Ainda que fossem coisas comparáveis, e não são, há uma circunstância de logística — e o general é ele, não eu — que eleva o absurdo à condição do indizível. Acidentes de automóveis e todas as outras causas de morte não provocam o colapso no sistema de saúde. A menos que se incentivasse a contaminação em massa e, "manu militari" — e espero que não haja ninguém com saudade de dar porrada em pobre —, as pessoas fossem impedidas de buscar socorro.
Não há controvérsia sobre a forma como o vírus se espalha. Sua força está na aglomeração e no convívio social. Com um distanciamento ainda que malfeito, temos mais de 200 mil contaminados. Dá para imaginar o que estaria em curso não fosse isso a que ele considera alarmismo.
Na verdade, senhor, falta ainda que a imprensa faça uma outra coisa certa. E o senhor, militar com boa formação, há de entender. E eu lhe direi qual é a conta certa. Todos os Estados deveriam cotejar o número de óbitos havidos em março, abril e maio com o do ano passado. Aplique-se, a título, se me permitem a expressão, de crescimento vegetativo das mortes uma elevação de uns 5% e pronto! O que exceder esse dado majorado, senhor general, deve ser atribuído ao coronavírus. Deixo aqui a sugestão de pauta aos coleguinhas. E então saberemos o total real de mortos. E olhe que ainda poderá estar ligeiramente subestimado porque deve ter caído drasticamente o número de vítimas do trânsito e das estradas.
Há, sim, general, certa dose de desinformação no que a imprensa divulga: o número de contaminados e de mortos é brutalmente maior. É que falta um critério seguro para chegar ao real. Este que proponho, para vítimas, é seguro. Afinal, na média, as mesmas causas de antes continuam a matar agora. Isso não mudou. O dado novo é o coronavírus.
OBEDIÊNCIA E INSUBORDINAÇÃO DEVIDAS
Não acho, general, e o senhor sabe disto, que a política seja terreno em que devam se meter os militares. Sou conservador. Defendo o que defende Samuel Huntington em "O Soldado e o Estado". Ele também é um conservador, um cara de direita. Acha que militar deve ser objetivamente controlado pelo poder civil, mantendo-se longe da política e servindo ao Estado.
Mas o senhor está aí. E tem de se conformar com a vida civil. Não existe regime de obediência devida fora dos quarteis ou do campo de batalha. Convive-se com a divergência porque é ela o apanágio essencial da democracia. Aliás, convém lembrar que o Código Penal Militar pune as formas de desobediência nos Artigos 163, 193 e 301, mas abre a brecha para desobediência da ordem manifestamente ilegal: parágrafo 2º do Artigo 38. Não fosse assim, como assinala Coimbra Neves, "teríamos um 'jogo dos absurdos' em que o militar, que por essência está compelido a ser legalista, deveria cumprir uma ordem ilegal sob pena de incursão em recusa de obediência."
Nem nos quarteis vigora a teoria das baionetas cegas, não é mesmo? O senhor não espera contar com isso na sociedade. Aliás, obediência cega faz mal até no Palácio do Planalto.
De resto, o ataque de Ramos à imprensa é despropositado porque não se faz por aqui nada além do que se faz na imprensa no mundo democrático. Da mesma sorte, medidas de isolamento social foram adotadas em todo o Planeta. E não para derrubar governos, mas para salvar vidas.
Por Reinaldo Azevedo
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