quinta-feira, 21 de maio de 2020

Ainda há juízes em Brasília: membro do STJ vê "necropolítica" de Bolsonaro


Ministro Rogério Schietti, do STJ: é preciso saber a hora em que certos comportamentos ultrapassam a linha do pacto civilizatório. E ele soube! - Foto: Divulgação/STJ
Ministro Rogério Schietti, do STJ: é preciso saber a hora
 em que certos comportamentos ultrapassam a linha do pacto
 civilizatório. E ele soube!

A deputada estadual de Pernambuco Clarissa Tércio (PSC-PE) teve uma ideia: impetrar um habeas corpus coletivo no STJ para impedir o governo de Pernambuco de decretar lockdown para conter a escalada de contaminação pelo coronavírus, tentando impedir iminente colapso do sistema de Saúde.

A deputada compõe a frente dos tresloucados que, sob o pretexto de defender a economia, atuam, queiram ou não, para transformar o país num cemitério de dimensões continentais. Não obteve o seu intento felizmente. E ainda permitiu que o relator da matéria, ministro Rogério Schietti, produzisse uma peça maiúscula do direito em tempos de coronavírus e de cólera dos idiotas. 

Schietti rejeita o pedido expondo a óbvia impropriedade técnica — e nem vou me ater a essas minudências. Clique aqui para ler a íntegra.

Espetacular foi a carraspana que passou o ministro na própria deputada — e ela bem que mereceu! — e no desgoverno Bolsonaro na área de Saúde. O ministro vê em curso, e tem razão, o exercício do que classificou de "necropolítica", lastimando o desprezo pela ciência 

Destaco abaixo o trecho do seu voto que trata do assunto. Schietti chega a pedir escusas por expressar seu ponto de vista ao rejeitar um habeas corpus coletivo. Não precisava. No momento em que parcelas consideráveis das elites brasileiras — incluindo a elite política — viram as costas para o sofrimento da população, em especial para os mais vulneráveis, é preciso, sim, lembrar que o direito tem um valor fundante: a justiça.

De resto, trata-se de defender a Constituição. 

Ainda existem juízes em Brasília.

(...)
Não bastasse a inviabilidade jurídica da pretensão ora refutada, a iniciativa da impetrante parece ignorar o que acontece, atualmente, em nosso país, que, até ontem, segundo dados oficiais, já registrava 271.628 casos de Covid-19 - o que nos situa como o terceiro país, no mundo, em número de enfermos, perdendo apenas para os EUA e a Rússia - e com o total de 17.971 óbitos confirmados. Na unidade federativa em que a impetrante contesta a medida adotada pelo governo local, já se contabilizam 1.741 óbitos, quantidade que situa Pernambuco em segundo lugar entre os estados do Nordeste afetados.

Por decisão política - seguindo o que já fizeram outros três estados (Ceará, Maranhão e Pará) e alguns municípios brasileiros - medidas mais drásticas de restrição à circulação de pessoas e veículos são adotadas, com vistas a conter a disseminação do Sars-Cov-2, vírus causador e transmissor da Covid-19. A medida, saliente-se, foi adotada em diversos países, diante do agravamento do cenário de calamidade pública, de que já resultaram mais de 4 milhões e 700 mil casos de covid-19 no mundo todo.

A grande e principal diferença em relação a esses países e o nosso é que em nenhum deles - à exceção, talvez, dos EUA, cujo Presidente é tão reverenciado por seu homólogo brasileiro - existe uma clara dissensão entre as políticas nacional e regionais.

Talvez em nenhum, além desses dois países, o líder nacional se coloque, ostensiva e irresponsavelmente, em linha de oposição às orientações científicas de seus próprios órgãos sanitários e da Organização Mundial de Saúde. Em nenhum país, pelo que se sabe, ministros responsáveis pela pasta da saúde são demitidos por não se ajustarem à opinião pessoal do governante máximo da nação e por não aceitarem, portanto, ser dirigidos por crenças e palpites que confrontam o que a generalidade dos demais países vem fazendo na tentativa de conter o avanço dessa avassaladora pandemia.

Cenas dantescas, que nos remetem a períodos pré-civilizatórios da humanidade, têm sido vistas Brasil afora. Uma dessas cenas é a agressão a profissionais de saúde - justamente os que deveriam merecer nosso maior respeito, proteção e reverência, pelo trabalho sobre-humano, heroico dedicado ao cuidado alheio, o que lhes tem custado muitas de suas próprias vidas (o Ministério da Saúde contabiliza 31.790 profissionais de saúde infectados, com 106 mortes de enfermeiros e auxiliares).

Mas não é só: simulações de sepultamentos, com gracejos sobre as trágicas perdas de centenas de famílias, bloqueios de passagem de ambulâncias, protestos em frente a hospitais etc, somam-se à absoluta falta de empatia e um mínimo de solidariedade a quem teve filhos, pais, avós, esposos levados, em muitos casos de maneira dolorosa e sem direito a despedida ou luto, pelo novo coronavirus.

A situação vem-se agravando e, provavelmente, dias piores ainda virão em alguns centros urbanos, cujas redes hospitalares não são capazes de atender à demanda crescente por novos leitos e unidades de tratamento intensivo. E boa parte dessa realidade se pode creditar ao comportamento de quem, em um momento como este, deveria deixar de lado suas opiniões pessoais, seus antagonismos políticos, suas questões familiares e suas desavenças ideológicas, em prol da construção de uma unidade nacional.

O recado transmitido é, todavia, de confronto, de desprezo à ciência e às instituições e pessoas que se dedicam à pesquisa, de silêncio ou até de pilhéria diante de tragédias diárias. É a reprodução de uma espécie de necropolítica, de uma violência sistêmica, que se associa à já vergonhosa violência física, direta (que nos situa em patamares ignominiosos no cenário mundial) e à violência ideológica, mais silenciosa, porém igualmente perversa, e que se expressa nas manifestações de racismo, de misoginia, de discriminação sexual e intolerâncias a grupos minoritários.

Tudo isso, somado, gera um sentimento de insegurança, de desesperança, de medo, ingredientes suficientes para criar uma ambiência caótica, propícia a propostas não apenas populistas, mas de retrocesso institucional, como tem sido a tônica nos últimos tempos.

Nesse ínterim, continua o país (des)governado na área de saúde - já se vão 6 dias sem um titular da pasta - mercê das iniciativas nem sempre coordenadas dos governos regionais e municipais, carentes de uma voz nacional que exerça o papel que se espera de um líder democraticamente eleito e, portanto, responsável pelo bem-estar e saúde de toda a população, inclusive da que não o apoiou ou apoia.

Falta-nos uma leitura, uma vivência e um respeito ao que nos propusemos a fazer como povo, que, na dicção do preâmbulo e dos primeiros artigos de nossa Constituição de 1988, se propõe a formar uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, apoiada sobre princípios como o da dignidade da pessoa humana, da cidadania, do pluralismo político, com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Peço escusas ao jurisdicionado por dizer certas coisas que escapam da moldura estritamente jurídica da questão posta neste habeas corpus, mas que formam, a meu sincero aviso, o pano de fundo que justifica pretensões como a que ora se rejeita.

E, ante um aparente recesso da razão, não cabe o silêncio obsequioso.

Nenhum comentário: