A gravação da reunião ministerial de 22 de abril expôs ao país as entranhas do governo de Jair Bolsonaro. O que se vê é aterrador: falta de rumo, proteção à família e aos amigos, ameaças aos adversários, ataques às instituições, flertes com a ilegalidade, arroubos armamentistas e desprezo pela realidade. O conjunto da cena revela algo muito parecido com uma balbúrdia. Nela brilha quem aposta no tumulto: o próprio presidente e a banda apocalíptica do governo. Quem opera sem tambor leva pito e passa vexame.
Do lado de fora das vísceras, já ardia a crise do coronavírus. O número de mortos acabara de passar da marca de 2,9 mil. Do lado de dentro, o drama sanitário não compunha as preocupações do presidente da República. Bolsonaro não disse uma mísera palavra sobre UTIs e respiradores. Estava preocupado em cobrar, num timbre colérico, lealdade política dos ministros e informações dos órgãos de inteligência capazes de evitar sacanagens contra familiares e amigos.
Ironicamente, o ministro Celso de Mello, do Supremo, jogou a gravação no ventilador no dia em que a reunião fez aniversário de um mês. Os brasileiros infectados pelo coronavírus agora são contados em mais de 330 mil. Os mortos somam mais de 21 mil. E o Brasil, privado de uma coordenação nacional no enfrentamento do flagelo sanitário, ficou sabendo que o seu presidente xinga em privado governadores e prefeitos que tentam deter o vírus. E trama uma delirante rebelião armada da população contra o isolamento social.
Bolsonaro chamou de bosta e estrume os governadores João Doria e Wilson Witzel, de São Paulo e do Rio; o prefeito Arthur Virgílio Neto, de Manaus. Tratou o isolamento como antessala de um golpe. Cobrou de Sergio Moro e do general Fernando Azevedo e Silva a defesa enfática do armamentismo. "Como é fácil impor uma ditadura no Brasil", disse o presidente. "O povo dentro de casa. Por isso eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme. É a garantia de que não vai ter um filho da puta para impor uma ditadura aqui. Quero todo mundo armado."
Damares Alves, cavaleira do Apocalipse, falou em encarcerar gestores estaduais e municipais. "A pandemia vai passar", ela afirmou. "Mas governadores e prefeitos responderão processos. E nós vamos pedir, inclusive, a prisão de governadores e prefeitos." Ricardo Salles enxergou no vírus uma oportunidade a ser aproveitada para completar o desmonte dos regulamentos da área ambiental e de outros setores. A imprensa "só fala de covid", festejou Salles, antes de sugerir que o "momento de tranquilidade" fosse usado para "ir passando a boiada e mudando todo o regramento, simplificando normas." Regras "do Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo."
Poupado por Celso de Mello, que manteve sob sigilo seus ataques à China, o chanceler Ernesto Araújo deliciou-se com a fala do quarto cavaleiro da ala do fim do mundo da gestão Bolsonaro. "Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF", vociferou o ministro da Educação, Abraham Weintraub, deixando no ar a impressão de que prenderia na sequência os vadios do Legislativo.
Quem assiste ao espetáculo encenado dentro das entranhas do governo verifica que a divulgação da fita, combinada com os fatos que vieram na sequência, não deixa dúvidas sobre o desejo de Bolsonaro de intervir politicamente na Polícia Federal, como acusou Sergio Moro ao se demitir. "Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus", disse Bolsonaro, responsável por 29 dos 37 palavrões mencionados na reunião.
O problema é que o inquérito sobre a conversão da PF em puxadinho da família mal começou e o país se depara com outro drama de enorme gravidade: o tumulto não segura o vírus nem produz empregos. E o governo não tem nada a oferecer para os brasileiros que enterram seus familiares e amargam os primeiros efeitos da crise econômica dramática que se seguirá à pandemia histórica.
Do ponto de vista criminal, Bolsonaro escora o seu mandato na aparente indisposição do procurador-geral da República Augusto Aras para denunciar o presidente que o indicou. Na seara política, o capitão compra o escudo do centrão. Ou seja: não são negligenciáveis as chances de o Brasil continuar sendo governado pela balbúrdia.
Por Josias de Souza
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