Tão grande é o mal que a Lava Jato e Sérgio Moro fizeram ao devido processo legal, ao direito penal e à objetividade das provas que mesmo a nossa valente e esforçada imprensa acaba, no imbróglio sobre a reunião macabra do dia 22 de abril, deixando-se pautar mais pelo ex-ministro do que pelos fatos. Dedica tempo e energia ao que, provavelmente, não resultará em nada —porque difícil de provar — e dá pouco relevo a um crime estupendo, que já vem à luz com uma penca de atos de ofício.
Atenção! A reunião pode reiterar a nossa certeza de que Jair Bolsonaro queria, sim, interferir na Polícia Federal. Afinal, já está claro, ele faz o que quer nas Forças Armadas: exonera general de departamento do Exército, embora não tenha poderes par isso, e promove e nomeia quem bem entende na Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Alexandre Ramagem, o chefe da Agência, diga-se, é homem de sua confiança. General Augusto Heleno, do GSI, afirme o que quiser: a escolha não foi sua, e ele sabe disso.
Assim, o presidente não tinha mesmo era o controle da PF. E queria ter. As mensagens passadas a Sergio Moro cobrando a cabeça de Maurício Valeixo, então diretor-geral do órgão, deixam isso claro.
No sábado, reportagem do Estadão revela outra mensagem do presidente a Moro: "Valeixo sai esta semana. Está decidido. Você pode dizer apenas a forma. A pedido ou ex oficio (sic)". O ultimato foi expedido às 6h26 de 22 de abril, o dia da reunião dos palavrões.
É inequívoco, pois: Bolsonaro queria o controle da Polícia Federal.
Ocorre que é preciso ter em mente o que está sendo investigado. E o que se investiga é se as alterações pretendidas, e agora feitas, pelo presidente tinham o objetivo de atender a seus interesses pessoais ou de outros. Nesse sentido, a reunião dos impropérios ou mesmo essa mensagem de Moro não acrescentam nada ao que já se sabia.
Insistir nesse caso, tudo indica, será como enxugar gelo. É evidente que, só com essas mensagens ou com o conteúdo da reunião, não se vai evidenciar nada forte o bastante para que Augusto Aras, procurador-geral da República, ofereça uma denúncia contra o presidente. O fato é que a Lei 13.047 acrescentou o Artigo 2C à Lei 9.266 e definiu que o cargo de diretor-geral da PF é privativo da Presidência.
CONFISSÃO
Ora, o que é que já veio ao mundo com uma penca de atos de ofício? A confissão feito pelo presidente, segundo a qual pretende, sim, armar a população com vistas a uma guerra civil. Ele diz explicitamente que um indivíduo armado pode reagir à decisão de um prefeito se não gostar dela. Para que não digam que forço a barra, vai entre aspas: "Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua."
Enfatiza que, obviamente, não o armamentismo não se presta apenas a reagir à quarentena. A ambição é muito maior: "Por que eu tou armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado".
A admissão está aí. Como afirmo em artigo na Folha desta segunda, "Bolsonaro maratonou os crimes de responsabilidade previstos na lei 1.079. E arregaçou a 7.170, de segurança nacional. Poderia pegar até 19 anos de cadeia."
ATOS DE OFÍCIO
E ele mesmo exibe as decisões que tomou, os atos de ofício, em favor do propósito criminoso. Na Reunião, dá uma ordem a Moro e ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva:
"Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta!".
No dia seguinte, saiu a portaria, que elevou a munição que pode ser comprada por um civil de 200 unidades por ano para 550 por mês. Atenção: isso multiplica por 33 a compra de munição legal. E sem rastreamento nenhum.
Ele já havia baixado, no dia 18 de abril, a portaria 62/20 pondo fim ao rastreamento de armas e munições. Escreveu no Twitter: "Determinei a revogação das Portarias Colog nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que tratam do rastreamento, identificação e marcação de armas, munições e demais produtos controlados por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos".
As três tinham sido assinadas pelo general de brigada Eugênio Pacelli, do Comando de Logística do Exército. O homem foi exonerado da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados. E não! O presidente não tinha poderes para isso.
No dia 24 de março, Pacelli passou para a reserva. Ao se despedir, pediu desculpas, que li como ironia, a empresários do ramo de armas: "Nosso maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança social". O de Bolsonaro é outro. O PSOL entrou com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no STF contra a portaria 62. O relator é Alexandre de Moraes.
SISTEMA DE INFORMAÇÃO
Não menos grave é a outra confissão: "Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm oficialmente, desinforma." Que sistema é esse? Do que ele está falando?
Nesse caso, não há ato de ofício que se saiba. Ou será que as alterações da PF buscam subordinar órgãos de controle e investigação do Estado a seu dito "sistema particular"? Na CPMI das Fake News, a deputada Joice Hassellmann (PSL-SP), ex-aliada da turma, disse que Carlos Bolsonaro, o amigão de Ramagem, queria criar a "Abin paralela".
CONCLUO
É preciso que se abra um inquérito para apurar um possível crime e um crime confesso. Notem: no caso da PF, por mais que tudo pareça muito claro, o fato é que Bolsonaro exercia uma prerrogativa. E não há ato de ofício.
No caso da guerra civil, a confissão já vem com as portarias. E com uma ordem clara dada na reunião.
Nesse caso, sim, Augusto Aras está obrigado a dar uma resposta. Não se trata de suposições ou inferências, ainda que elas sejam muito críveis. O esforço parar armar a população é um fato e está em curso. Os atos de ofício já foram praticados.
E há uma admissão, que vale por uma confissão.
Por Reinaldo Azevedo
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