sexta-feira, 29 de abril de 2022

Moraes diz que desinformação 'não é ingênua' e pode servir para 'tomada de poder'



O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse nesta sexta-feira que a desinformação não é ingênua, mas criminosa, servindo ou para o enriquecimento ou para a tomada do poder. Moraes é o relator de processos como os chamados inquéritos das fake news e das milícias digitais, que miraram a rede de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Também é o relator da ação penal que levou à condenação do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de prisão em razão de ameaças e incitação à violência contra ministros da Corte. Depois, Silveira recebeu o perdão de Bolsonaro.

— São duas finalidades. Uma é a tomada do poder. Tomada de poder não democrática, tomada de poder autoritária, sem controle, sem limite. Mas sempre a tomada de poder vem com a segunda finalidade, que é econômica, ganhar dinheiro. Pessoas estão enriquecendo com isso — disse Moraes em palestra para estudantes de uma universidade em São Paulo, acrescentando:

— Desinformação não é ingênua. A desinformação é criminosa, tem finalidade. Para uns é só um enriquecimento. Para outros é a tomada do poder sem controle. Então nós, que vivemos do direito, que defendemos a democracia, nós temos que combater a desinformação.

— A imprensa tradicional pode ser responsabilizada. As redes sociais continuam absurdamente classificada como empresas de tecnologia, e são responsabilizadas como empresas de tecnologia, sendo que as grandes plataformas faturaram de publicidade mais do que todas as empresas de mídia no ano passado.

Ele citou o projeto de lei das fake news, em tramitação no Congresso Nacional:

— Projeto de lei para responsabilizar as plataformas como também uma empresa de comunicação. Não é possível que se isentem totalmente, sabendo que aquelas notícias são fraudulentas, levianas, sabendo que se prolifera o discurso de ódio, e não se retirem aquelas notícias.

'Liberdade de expressão não é de agressão'

O ministro voltou a dizer nesta sexta-feira que "liberdade de expressão não é liberdade de agressão". Em junho de 2020, no plenário do STF, Moraes já tinha dito a mesma coisa. Na época, a Corte julgava a legalidade do inquérito das fake news, aberto em 2019 para apurar ataques à Corte. O resultado foi favorável à continuidade da investigação.

— Não é possível defender volta de um ato institucional número cinco, o AI-5, que garantia tortura de pessoas, morte de pessoas, o fechamento do Congresso, do poder Judiciário. Ora, nós não estamos em uma selva. Liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Democracia não é anarquia — disse Moraes nesta sexta, numa referência ao ato que endureceu a ditadura militar brasileira em 1968.

Moraes destacou um estudo feito pelo jornal "Financial Time" mostrando que 65% das democracias ocidentais estavam sob ataque nos três grandes pilares que as sustentam: liberdade de imprensa, eleições livres e periódicas, e independência do Judiciário.

Ele disse que o primeiro passo foi atacar a imprensa, com a inundação de notícias fraudulentas. Depois, são atacadas as eleições. Os ataques sem provas às urnas eletrônicas usadas no Brasil são um dos alvos preferidos do presidente Jair Bolsonaro. Moraes não citou Bolsonaro nominalmente, mas mencionou o ex-presidente do Estados Unidos Donald Trump, que levantou suspeitas de fraudes na eleição que ele perdeu, e países europeus onde houve avanço da extrema direita.

— Agora vamos atacar as eleições, atacar a legitimidade das eleições. Isso aconteceu na Hungria, na Polônia. Vamos também bombardear com notícias de fraudes eleitorais. São fraudes, você olha o vídeo, que são patéticas. Mas, isso de Goebbels, a repetição de uma mentira acaba sendo aceita como uma verdade — disse Moraes.

O ministro será o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na reta final da campanha e este ano. Na palestra, ele afirmou que candidatos que comprovadamente tiverem usado a desinformação com fins eleitorais serão cassados.

— Não é possível conviver, não podemos tolerar discurso de ódio, ataques à democracia, a corrosão da democracia. A tolerância em relação à intolerância dos outros é o maior perigo que corremos. É um discurso muito fácil a pessoa que prega racismo, homofobia, machismo, fim das instituições democráticas falar que está usando sua liberdade de expressão — acrescentou.

Por fim, há o ataque à Justiça. O STF e o TSE costumam ser alvos de ataques de Bolsonaro e seus apoiadores. No Brasil, ele disse que essa situação começou a ser sentida há três anos e pouco:

— Há três anos e pouco começou a ser sentido esse ataque à imprensa, às urnas eletrônicas, às eleições e ao Poder Judiciário, quando lá atrás, o ex-presidente do Supremo Dias Toffoli instaurou o inquérito das fake news.

Ele disse que não pretende arquivar o inquérito das fake news, porque está chegando aos financiadores das notícias falsas.

— As pessoas não entendem que a investigação tem o seu momento público, e tem seu momento sigiloso, que no mais das vezes é o mais importante, em que vai costurando as atividades ilícitas que a Polícia Federal está investigando em relação a isso — disse Moraes.

Em O Globo

Com glúteos no chão, Bolsonaro descobre que não está livre de cair sozinho



Bolsonaro considera que dispõe de uma conexão direta com o divino. Já declarou que cumpre na Presidência uma "missão divina". Exibida involuntariamente pela estatal TV Brasil, convertida em TV do Capitão, a queda de Bolsonaro com os glúteos no chão ao final do seu discurso num encontro de vereadores pode ter sido um sinal enviado da atmosfera celeste.

Aconteceu no momento em que Bolsonaro se julga mais forte. No caso Daniel Silveira, submetido à sensação típica de quem vive aquela fração de segundo em que o sinal muda de verde para amarelo, Bolsonaro decidiu atravessar o sinal vermelho ao se autoconverter em instância revisora do Supremo. Sentindo-se invulnerável, volta a jogar as Forças Armadas contra a Justiça Eleitoral.

Em 2018, Bolsonaro chegou ao poder. Decorridos três anos e cinco meses de sua posse, ainda não se deu conta de que só faltou o governo. A lição contida na queda testemunhada pelos vereadores é singela: Ninguém está livre de cair sozinho.

Por Josias de Souza

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Bolsonaro quer confusão, país precisa de um presidente que pegue no batente



A agenda de Bolsonaro não combina com o drama do país. Num dia em que a prévia oficial da inflação atingiu o maior índice para um mês de abril em 27 anos, o presidente iniciou sua agenda reunindo-se com representantes do WhatsApp.

Fechou o expediente do Planalto num comício em que celebrou o deputado arruaceiro Daniel Silveira como herói da resistência, atacou ministros do Supremo Tribunal Federal e insinuou que as eleições de 2022 só serão limpas se as Forças Armadas recontarem os votos numa apuração paralela à da Justiça Eleitoral.

Um garoto que nasceu junto com o Plano Real, em 1994, completa 27 primaveras neste ano de 2022 sem ter vivido sob sete moedas e uma superinflação. Precisa da ajuda dos mais velhos para compreender o significado de uma inflação que acumula alta de 12,03%, com a carestia da comida batendo em 15%.

Combinando-se a alta dos preços com a subida dos juros, o vaivém do câmbio, a paralisia econômica e o desemprego chega-se a uma realidade que asfixia os brasileiros mais pobres.

Bolsonaro não está preocupado com o fato de um botijão de gás de cozinha custar 10% do salário mínimo. Com a geladeira do Alvorada abastecida com todos os alimentos que o déficit público pode comprar, a alta do preço do tomato —26% em abril, 117,5% em 12 meses— não tira o sono do presidente.

O que provoca insônia no presidente, segundo ele deixou escapar ao discursar na pajelança organizada pelas bancadas da bala e da Bíblia para cultuar Daniel Silveira, é a ameaça de prisão do filho Carlos Bolsonaro, enrolado no inquérito sobre fake news.

Movido a crises, Bolsonaro precisa inflar seus desastres porque, na batalha eleitoral, suas confusões abafam a rotina e confundem o eleitorado. O Brasil necessita de algo mais simples: um presidente que tenha disposição para pegar no batente de oito da manhã às seis da tarde.

Por mal dos pecados, a principal novidade na oposição é que Lula defende a piada com nordestino como solução para devolver a felicidade a um mundo que ele define com o "chato pra cacete".

Por Josias de Souza

Silveira vira de malfeitor a popstar da Câmara



Em menos de uma semana, Daniel Silveira migrou da condição de ameaça à democracia para a de popstar do Legislativo. Com a pena de quase nove anos de cadeia perdoada por Bolsonaro, o deputado foi escolhido como membro de cinco comissões na Câmara. Entre elas a de Constituição e Justiça. O problema não é que os deputados qualificam um malfeitor. A questão é que o destaque concedido a Daniel Silveira desqualifica o Legislativo.

Além da vaga na CCJ, o colegiado mais importante da Câmara, Daniel Silveira foi acomodado por seu partido, o PTB de Roberto Jefferson, em outras quatro comissões: Cultura, Educação, Esporte e Segurança Pública. Nessa última, o absurdo ganhou uma dose de escárnio, pois Silveira foi eleito vice-presidente da comissão.

Tanta coisa já aconteceu com Daniel Silveira que as pessoas esquecem quem é o personagem. Trata-se de um ex-PM. Passou seis anos na corporação. Puxou 26 dias de xadrez. Colecionou 14 repreensões e duas advertências. Antes de entrar para a polícia, trabalhou como cobrador de ônibus. Valia-se de atestados médicos falsos para faltar ao serviço. Foi eleito na aba do bolsonarismo depois de destruir uma placa com o nome da vereadora assassinada Marielle Franco.

Uma democracia em que um sujeito como Daniel Silveira é prestigiado no Parlamento é um regime com a cabeça a prêmio.

Por Josias de Souza

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Porte de arma de ex-ministro cheira a fraude



O pastor e ex-ministro da Educação Milton Ribeiro obteve porte de arma cinco meses depois de chegar à Esplanada dos Ministérios. Na versão oficial, ele foi registrado como CAC, a sigla que identifica colecionador, atirador desportivo e caçador. Significa dizer que há escondido atrás do púlpito um cristão apaixonado por armas, frequentador de estandes de tiro ou adepto da caça silvestre. De duas, uma: ou Milton Ribeiro prova que é o que ninguém suspeitava ou o país está diante de uma fraude que fez de um evangélico descuidado um atirador precário, capaz de disparar uma pistola Glock 9 mm no saguão de um aeroporto.

Na gestão Bolsonaro, os CACs foram contemplados com decretos que eliminam barreiras e liberam acesso a armas e munições. Antes, atiradores desportivos eram classificados em três níveis. No patamar mais alto, podiam comprar até 16 armas e 40 mil munições ao ano. Hoje, seja qual for o nível, podem adquirir até 60 armas e 180 mil munições por ano.

Ainda que Milton Ribeiro fosse colecionador, atirador ou caçador, seria difícil explicar a porte da arma num voo de Brasília para São Paulo. Ao manusear sua arma dentro de uma pasta em área pública do aeroporto, o CAC improvisado descumpriu normas da Anac e da Polícia Federal. Deveria ter chegado ao local do embarque com a arma "descarregada". Dispunha da alternativa retirar as balas em local disponível para esse fim. Seu tiro acidental produziu estilhaços que atingiram duas pessoas, felizmente sem gravidade.

Diante da sequência de descalabros, a Polícia Federal devolveu a arma ao atirador precário. A ligeireza na concessão do porte, a má-fé na conversão do pastor num caçador descuidado e a leniência dos investigadores da PF compõem um retrato perfeito do governo de um presidente que defende que todo brasileiro deveria "comprar um fuzil", pois "o povo armado jamais será escravizado."

Silveira em comissões da Câmara é novo flerte com abismo; não vai parar


É espantoso que Daniel Silveira (PTB-RJ) seja eleito, em chapa única, vice-presidente da Comissão de Segurança da Câmara e membro da Comissão de Constituição e Justiça? Pois é. Na composição, as respectivas vagas couberam ao PTB, e o PTB de Roberto Jefferson, réu pelos mesmos crimes que levaram Silveira à condenação, decidiu que ele era o melhor nome.

Acompanhem. Se, como quer o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a graça é mesmo prerrogativa do presidente, não cabendo outro questionamento, então Silveira não terá dificuldade para exercer os dois papéis, certo, já que terá condições de frequentar regularmente a Câmara.

Se, como quer Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, a cassação é matéria que só pode ser analisada pela Casa — e, de fato, esse ainda é o entendimento vigente no Supremo, decorrente de julgamento de 2013 —, então o homem seguirá deputado porque seriam necessários ao menos 270 votos para cassá-lo. E esse número não existe.

Talvez subsista a inelegibilidade, se é que Súmula do STJ — segundo a qual indulto não faz cessar efeitos secundários da condenação — ainda presta para alguma coisa. Um desses efeitos secundários é a inelegibilidade em razão de ter havido a condenação por um colegiado, conforme dispõe a lei da Ficha Limpa.

Assim, com a cara devidamente lustrada por óleo de peroba, os bolsonaristas dirão: "Por que não Silveira? Por ora, nada há que o impeça de ocupar tais funções". E, nesse caso, o Lira que se mostra tão zeloso com as prerrogativas do Congresso nem tenta impedir que a barbaridade se consume. Porque ceder à escória da escória do Congresso também é um preço que tem de pagar para manter o cargo de vice-rei no Brasil. No concerne à gestão dos dinheiros públicos, ele é o próprio rei — e do tipo absolutista.

Há, sim, uma centrão mais moderado, mais, digamos, profissionalizado, que nem gosta muito dessa crispação porque pretende se dar bem em qualquer governo, incluindo a eventual gestão de Lula. Mas há a banda que se ligou à extrema direita barra-pesada do bolsonarismo. Seus agitadores se distribuem nas bancadas BBB: boi, bala e Bíblia. Estão com Lira hoje, mas também têm lá as suas exigências, não é?

Tudo caminha para a validação do perdão — ou que nome tenha — a Silveira, para a manutenção do seu mandato e para a sua eventual inelegibilidade. Já escrevi aqui que essa é uma linha que tem hoje a maioria do Supremo porque se considera que, assim, arranca-se o pirulito da provocação da boca de Bolsonaro, que pretende fazer do tribunal um de seus principais inimigos.

Ocorre que ele tem um saco cheio de pirulitos. Tira-se um, ele saca outro. Referendada a graça, outras agressões ao tribunal e à democracia virão. A questão é simples: por que parar se consideram que estão sendo bem-sucedidos?

E não tem centrão que controle a extrema direita, não. Notem que Bolsonaro terceirizou o governo a Lira e a Ciro Nogueira, que usam como querem o que resta de verba discricionária do Orçamento e mesmo dos fundos constitucionais — como o FNDE, feudo de Nogueira. Mas a operação política está a cargo do presidente e de seus extremistas.

A propósito: falei em Nogueira. Onde anda o homem? Até a semana retrasada, estava mais assanhado do que lambari na sanga. Havia transformado Bolsonaro num exemplo de eficiência e democracia e dizia a jornalistas servis que só temia mesmo o radicalismo de Lula. O cara sumiu. Pelo visto, desistiu de ser o "pensador" da campanha. Vai deixar isso com os Bolsonaros mesmo. O negócio dele é cuidar do cofre.

Temos um novo marco da degradação. E, creiam, nos tais "mercados", há ainda quem acredite que isso tem futuro. Quem? O especulador que ganha dinheiro com essa bagunça. Investidores mesmo, os de verdade, já perceberam que o ogro nunca deixou de existir. E isso já está, de novo, no preço do dólar.

Por Reinaldo Azevedo

Arranjo: Silveira solto, com mandato e inelegível. Bolsonaro não vai parar


Um corvo de verdade em frente ao Supremo. Não representa risco nenhum. Já os metafóricos,
que espreitam o tribunal, são um perigo para a democracia Imagem: Dida Sampaio/AE

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, já se manifestaram, respectivamente, sobre a cassação do mandato de Daniel Silveira (PL-RJ) e a graça concedida por Jair Bolsonaro ao deputado. O primeiro afirma que o assunto cabe à Câmara; o segundo entende que indulto e graça são prerrogativas do presidente da República. Lira não inova. Em 2013, maioria do próprio Supremo mudou decisão de 2012 e entendeu que, havendo condenação em ação penal, vale o que está escrito no Parágrafo 2º do Artigo 55 da Constituição, a saber:

"§ 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa."

O Inciso VI que aparece acima trata justamente da "condenação criminal em sentença transitada em julgado". É uma das confusões da Carta porque o caput do Artigo, combinado com esse Inciso VI, diz que "perderá o mandato o deputado ou senador que sofrer condenação em sentença transitada em julgado". Mas aí vem o tal Parágrafo 2º a exigir maioria absoluta do plenário para que se efetive a cassação.

Como, a rigor, esse ainda é o entendimento vigente no Supremo — já que não houve novo julgado a respeito —, basta que o tribunal referende esse entendimento, e caberá à Câmara decidir o que fazer com o mandato de Silveira, aquele que gravou um vídeo sobre a necessidade de surrar os ministros do Supremo, entre outras delicadezas.

É claro que a manutenção do mandato nesse caso é um absurdo porque o Artigo 15 da Constituição também suspende os direitos políticos do condenado pelo tempo que durar os efeitos da condenação. E se teria, imaginem!, um deputado ou senador sem direitos políticos, o que seria uma aberração. De toda sorte, reitere-se, houve tal julgado em 2013.

Se Silveira fosse realmente preso em regime fechado, a Mesa estaria obrigada a cassá-lo, segundo o Parágrafo 3º, porque ele deixaria "de comparecer à terça parte das sessões ordinárias". Tudo indica, no entanto, que ele não será preso.

PRISÃO?
O esforço de Pacheco também vem em favor dos panos quentes. E é bom que fique claro a todos que Jair Bolsonaro não vai parar. Essa é só a véspera da próxima crise. É provável que o próprio Supremo acabe absolutizando a prerrogativa presidencial de instituir o indulto e a graça e, na prática, extinga a pena do deputado que ameaça o Poder Judiciário com um novo AI-5.

A decisão do presidente, já se mostrou neste espaço mais de uma vez, é absolutamente inconstitucional e ilegal. O desvio de finalidade e escancarado, ficando patente que o ânimo que move o decreto é o confronto com o Supremo, violando a independência entre os Poderes e impedindo o livre exercício do Judiciário.

Não é menos claro, ademais, que o candidato à reeleição conta com esse confronto para tentar elevar ainda a mais a temperatura. O Poder Judiciário não é exatamente um ente popular. Bolsonaro quer se colocar como uma espécie de cavaleiro a liderar um movimento em favor da "verdadeira justiça". É um modelo que a extrema direita segue no mundo inteiro. A este interessa que as eleições de outubro se deem num ambiente convulsionado.

O ex-presidente Lula, que lidera as pesquisas de opinião, criticou o decreto da graça, mas, com prudência, decidiu não liderar uma cruzada contra a decisão. Os partido de oposição reagiram recorrendo ao Supremo com Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), cuja relatora é Rosa Weber. Também esta resolveu desacelerar os fatos e pôr compressas de água fria na confusão. Não concedeu a liminar pedida pelos peticionários — o que tornaria o decreto sem efeito desde já, aguardado o julgamento em plenário — e deu até 10 dias para Bolsonaro se explicar. E abriu vista de cinco para AGU e PGR. Tenta pôr um pouco de câmera lenta na agitação bolsonariana.

Há no ar um cheiro — até como reação considerada prudente — de que se vai reconhecer "a prerrogativa presidencial da graça", apesar de todas as evidências de que Bolsonaro atua para afrontar o Supremo e para proteger um amigo, o que também agride o Artigo 37 da Constituição, segundo o qual "a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".

O decreto não é legal nem impessoal ou moral.

INELEGIBILIDADE
Como o decreto de Bolsonaro pretende anular os efeitos primários (prisão) e secundários (inelegibilidade) decorrentes da condenação, é provável que seja considerado parcialmente ilegal.

A Súmula 631 do STJ é clara:
"O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais."

Condenado por um colegiado, Silveira está inelegível pela Lei da Ficha Limpa, e o espaço para recurso é o TSE. A graça nada pode em matéria eleitoral.

Sim, os bolsonaristas já colecionam pareceres — e pareceres podem prometer até a volta do amor verdadeiro em três dias — segundo os quais, não tendo havido a condenação, então não houve efeitos secundários. Ocorre que, sem a condenação, então se teria a estranha modalidade da graça prévia.

Ainda que concedida a graça sem o trânsito em julgado, o que confere materialidade ao ato de Bolsonaro é a condenação manifesta. Logo, extinga-se, em atendimento ao decreto, a prisão — o que já é uma aberração —, mas não a inelegibilidade.

ÁGUA NA FERVURA
Parece que é assim que se vai tentar jogar água na fervura. Atento àquele Parágrafo 2º do Artigo 55, duvido que a Mesa encaminhe ao plenário a cassação de Silveira. Mas partidos políticos de oposição podem reivindicá-lo. Se acatada a petição pela direção da Casa, a coisa vai a julgamento. E seriam necessários pelo menos 257 votos para a Câmara se livrar do cara. Não creio que existam.

Quanto à extinção da prisão, parece que o Supremo caminha para "reconhecer" a prerrogativa presidencial de tomar tal decisão, mas não de violar a Súmula 631 do STJ e a Lei da Ficha Limpa. Silveira não iria para a cadeia, continuaria deputado até o fim do mandato, mas não poderia se candidatar a senador pelo Rio — uma de suas pretensões.

CONCLUINDO
Encerro lembrando que a Constituição Brasileira não reconhece ato ou competência infensos ao crivo da Justiça. Convém notar: o decreto da graça é escancaradamente abusivo e faz do presidente o juiz dos juízes. Se reeleito, já terá experimentado o gosto, o que é um perigo. Se um outro sucedê-lo, pode querer percorrer os mesmos transes da ventura, não é mesmo? E com que justificativa se diria a ele que não?

E, a exemplo de muitas outras vezes, o "Mito" não se dará por satisfeito. A sua "democracia" não contempla a independência entre os Poderes nem o triunfo dos valores da Constituição de 1988.

Por Reinaldo Azevedo

terça-feira, 26 de abril de 2022

Brasil virou República terapêutica para tratar Bolsonaro de suas loucuras



Com um único lance —o decreto de indulto do deputado Daniel Silveira—, Bolsonaro deu um nó no Supremo Tribunal Federal, despertou no Congresso o instinto de sobrevivência, calou o rival Lula e pautou a imprensa. É como se o presidente tivesse transformado o Brasil numa República terapêutica para tratar das suas loucuras.

Em 2018, Eduardo Bolsonaro causou frisson ao dizer que bastariam um cabo e um soldado para fechar o Supremo. Seu pai precisou apenas de um decreto para anular a supremacia da Corte. Se Bolsonaro é maníaco, os ministros do Supremo são depressivos. A Corte piscou. Alguns de seus ministros querem reabrir canais de diálogo com o presidente, que desautorizou a negociação de qualquer armistício.

Relatora de quatro ações contra o perdão do presidente ao aliado condenado a quase nove anos de cadeia, a ministra Rosa Weber não se animou a suspender o decreto com uma liminar. Concedeu 15 dias para explicações. Em teoria, serão dez dias para Bolsonaro e cinco para a Advocacia-Geral da República. Na prática, é um prazo que o Supremo dá a si mesmo para decidir como lidar com Bolsonaro.

Alheio às hesitações, o presidente já armou o próximo bote. Insinuou que pode descumprir futura decisão do Supremo sobre o marco temporal para terras indígenas.

Lula evita há cinco dias comentar esta penúltima manobra de Bolsonaro. Chama de estratégia um silêncio que mais se parece com covardia. No Congresso, trama-se a aprovação de projeto para dificultar a cassação de mandatos (o de Silveira e de tantos outros).

Na imprensa, o noticiário sobre a crise institucional ocupa parte do espaço antes dedicado aos assaltos no Ministério da Educação.

O país piorou. Mas pesquisas encomendadas pelo PL informam que o índice de intenção de votos do presidente melhorou. Antes, o centrão vigiava Bolsonaro. Agora, exclama: Santa demência!

Tudo enlouquece Bolsonaro, exceto a inflação, o desemprego e a anestesia econômica. Os brasileiros têm cinco meses para decidir se darão alta ao presidente ou se renovarão a internação por mais quatro anos.

Por Josias de Sousa

Bolsonaro tem 10 dias para explicar decreto. Entenda ilegalidade em detalhe



Ao despachar sobre Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), que contestam o decreto de Jair Bolsonaro que concedeu a graça ao deputado Daniel Silveira, a ministra Rosa Weber determinou a tramitação conjunta das ADPFs 964, 965, 966 e 967, impetradas, respectivamente, por Rede, PDT, Cidadania e PSOL. A ministra concedeu ainda um prazo de 10 dias, conforme praxe, para que o presidente da República preste seus esclarecimentos. Assim que a Presidência cumprir a sua parte, contam-se, sucessivamente, cinco dias para vista do advogado-geral da União e do procurador-geral da República. A tramitação conjunta é possível quando, como é o caso, as petições têm o mesmo objeto.

Embora todos tenham pedido a suspensão imediata dos efeitos do decreto, em caráter liminar, para posterior submissão ao pleno do Supremo, a ministra preferiu, como pode ser feito em matéria de controle de constitucionalidade, levar a questão diretamente a seus pares.

Li a íntegra da petição do PSOL, assinada, entre outros, pelos advogados Walfrido Warde, Pedro Serrano e Rafael Valim. Não sei que decisão tomará o tribunal. Consta que, em nome do desarmamento dos espíritos — ocorre que o único espírito armado é Jair Bolsonaro —, busca-se a construção de uma saída salomônica: o decreto da graça seria considerado hígido para livrar Silveira da cadeia, mas se conservariam os efeitos secundários da condenação, conforme Súmula (631) do STJ.

Sim! É verdade! Bolsonaro quer usar o STF como elemento de sua campanha eleitoral. Interessa tê-lo como alvo. Mas isso ele fará de qualquer modo. Notem:
1: uma deputada de sua base, Carla Zambelli (PL-SP), já prepara um projeto de lei de abolição penal para bolsonaristas;
2: um deputado, Sóstenes Cavalcante, propõe fraudar a Constituição com um projeto de resolução que dificultaria a cassação de deputados;
3: em Ribeirão Preto (SP), depois de andar num cavalo branco, como Napoleão de hospício, Bolsonaro disse que não cumprirá decisão do STF sobre marco temporal de terras indígenas se não gostar do resultado.

Vale dizer: o Supremo ainda não julgou o caso Silveira, mas Bolsonaro e seus amestrados dão a questão como liquidada e já preparam novas investidas contra a democracia e o tribunal.

LEMBRAM-SE DA CRIANCINHA?
Convém lembrar que a criancinha que levaram a Salomão para que ele decidisse a maternidade não foi dividida ao meio. Restou inteira com a mulher que defendeu a sua integridade. Um crítico do rei diz que ele estava mesmo tentando ser justo e não sagaz quando propôs o meio-a-meio, que mataria o infante. Não aconteceu. Acho que o STF não pode correr o risco de tentar ser sagaz e acabar não sendo justo. E O JUSTO É TORNAR SEM EFEITO O DECRETO INCONSTITUCIONAL E ILEGAL. Até porque, fiquem certos, depois desse embate, virão outros, não importa o resultado. Não vão parar enquanto estiverem no poder. O exemplo mais eloquente foi a crise artificial criada com a fala do ministro Roberto Barroso em videoconferência para estudantes brasileiros de uma universidade alemã. O ministro elogiou as Forças Armadas e só foi crítico com os que pretendem usá-las para seus maus propósitos. Mesmo assim, veia à luz a nota trevosa do Ministério da Defesa.

A PETIÇÃO DO PSOL
A petição do PSOL, que, segundo Rosa, tem, em essência, o mesmo conteúdo das demais é uma aula do que não deve ser feito e do que deve ser feito -- vale dizer: do que não pode fazer um governante e de como contestá-lo.

Resumem os autores da ADPF 967:
"Conforme será demostrado ao longo desta ADPF, ao editar um ato administrativo que concedeu graça ao Deputado Daniel Silveira, o Presidente da República, extrapolando e desvirtuando os limites de sua competência constitucional, visou a beneficiá-lo de forma induvidosa, circunstância que, em resumo, macula o decreto presidencial por desvio de finalidade, violação à separação dos poderes e por desrespeito à vedação da proteção deficiente, o que exige, no mérito, sua retirada do ordenamento jurídico brasileiro (...).
Além deste vício intransponível, outro merece ser destacado e será devidamente abordado nas linhas seguintes, como um reflexo dos demais: a graça foi concedida antes do trânsito em julgado da Ação Penal no 1.044, o que também macula irremediavelmente o ato ora impugnado, tal como será demostrado."

DESVIO DE FINALIDADE
1 - Nada fora do Judiciário - Resta demonstrado na petição, de maneira irrespondível, o desvio de finalidade. De fato, o Artigo 84 da Constituição lista aquelas que são as prerrogativas constitucionais do presidente da República. Mas que se note: a Constituição explicita que, "no ordenamento jurídico brasileiro, nada, absolutamente nada, está livre do controle de legalidade do Poder Judiciário", conforme se lê no Inciso XXXV do Artigo 5º da Constituição:
"XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"

Julgado do Supremo consolidou que, com efeito, o Poder Judiciário não pode definir, ele próprio, os critérios para concessão de indulto, por exemplo. Mas a ele cabe julgar — porque nada escapa, por princípio, de seu exame — a sua constitucionalidade.

2 - E Lula não foi para a Casa Civil - A petição lembra que o ministro Gilmar Mendes suspendeu a posse de Luiz Inácio Lula da Silva quando nomeado chefe da Casa Civil da então presidente Dilma. O episódio é conhecido. Vale dizer. O ministro apontou "a possibilidade de sindicar atos de atribuição privativa do Presidente da República (no caso, o art. 84, I, da CF), e portanto, com forte carga de discricionariedade, com base na ocorrência de desvio da sua teleologia constitucional."

A interpretação teleológica da Constituição é justamente aquela que trata da finalidade. Com os dados que tinha — e isto escrevo eu, não está no documento —, a decisão do ministro era plenamente sustentável porque tudo fazia crer que a nomeação do petista para a Casa Civil buscava blindá-lo de eventual decisão judicial. Reportagem da Vaza Jato evidenciou depois que se tratava de uma manipulação, uma vez que Sergio Moro fez uma divulgação seletiva da gravação, omitindo outras que a contestavam, o que já foi reconhecido pelo próprio Mendes.

Faço tal lembrança para contextualizar a questão. Mas essa é uma lateralidade. O que importa: na Constituição e na jurisprudência do Supremo, nada escapa ao crivo do Judiciário. Inexiste ato "não sindicável".

E aqui vale aplicar a Silveira as palavras, então, de Mendes, como fazem os autores: Trata-se da "adoção de uma conduta que aparenta estar em conformidade com uma certa regra que confere poder à autoridade (regra de competência), mas que, ao fim, conduz a resultados absolutamente incompatíveis com o escopo constitucional desse mandamento e, por isso, é tida como ilícita."

3 - A finalidade da graça - Lembram os autores, com correção, que a prerrogativa presidencial de conceder a graça, prevista no Artigo 84 da Constituição e 734 do Código de Processo Penal não existe para beneficiar amigos e prejudicar inimigos. Bolsonaristas apelam a um voto dado por Alexandre de Moraes, relator de uma Adin que questionava a constitucionalidade de um decreto de indulto do então presidente Temer. Ocorre que tal voto descartava o vale-tudo. Lá está escrito: "A análise da constitucionalidade do Decreto de Indulto deverá, igualmente, verificar a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão discricionária com os fatos. Se ausente a coerência, o indulto estará viciado por infringência ao ordenamento jurídico constitucional e, mais especificamente, ao princípio da proibição da arbitrariedade dos poderes públicos que impede o extravasamento dos limites razoáveis da discricionariedade, evitando que se converta em causa de decisões desprovidas de justificação fática e, consequentemente, arbitrárias".

Bolsonaro jamais escondeu a sua relação de amizade com Daniel Silveira. Mais do que isso: existe uma parceria política entre eles. O presidente afronta o Artigo 2º da Constituição — que trata da harmonia entre os Poderes — e, entendo, incide em crime de responsabilidade — Artigo 85 — ao impedir o livre exercício do Judiciário para proteger um aliado. Não há interesse público na decisão. Apenas o interesse pessoal: do próprio presidente e do deputado.

VIOLAÇÃO DA MORALIDADE
4 - Moralidade - O Artigo 37 da Constituição consagra a moralidade como um dos fundamentos da administração pública. Citando julgado do Supremo, lembram os autores: "A quebra da moralidade administrativa se caracteriza pela desarmonia entre a expressão formal (= a aparência) do ato e a sua expressão real (= a sua substância), criada e derivada de impulsos subjetivos viciados quanto aos motivos, ou à causa, ou à finalidade da atuação administrativa".

Será que Bolsonaro teria feito o que fez, indago eu, se Silveira fosse um parlamentar de extrema esquerda e tivesse praticado as barbaridades que praticou em nome, sei lá, de um ideário comunista? Por muito menos, seu governo enquadrou críticos seus na Lei de Segurança Nacional.

VIOLAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES
Como apontei aqui desde o primeiro dia, já nas considerações que justificam o decreto tresloucado, Bolsonaro se comporta como juiz dos juízes e chama para si a última "ratio" sobre o que é e o que não é crime, o que extrapola ou não os limites da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. Ocorre que essa é uma atribuição do Poder Judiciário. Entre as prerrogativas que o Artigo 84 confere ao presidente, não está a de ser juiz dos juízes ou de atuar como corte revisora do Supremo.

Escrevem os autores: "No caso concreto, será o Supremo Tribunal Federal quem dirá se as falas e ações do Deputado Federal Daniel Silveira estão em sintonia com o texto constitucional; se ele extrapolou ou não os limites do direito de liberdade de expressão. Jamais o Presidente da República, pois este não pode, em hipótese alguma, substituir uma decisão do Poder Judiciário."

Sem jamais abandonar a questão da finalidade, lembram:
"O instituto do indulto e da graça, sempre relevante destacar, devem ser utilizados (como de fato são) por motivos humanitários e para se preservar o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CF) em situações que clamam estas medidas, mas jamais para o Poder Executivo rever ou substituir uma decisão judicial - ainda mais quando não transitada em julgado e um dia após o julgamento do réu."

ATAQUE DELIBERADO AO SUPREMO
Depois de longa exposição, chega-se à óbvia conclusão de que Bolsonaro buscou ir ainda além de proteger um amigo, um aliado. O desvio de finalidade escancara, entendo eu, crime de responsabilidade. Está na petição:
"No caso sob exame, o desvio de finalidade do Decreto Presidencial é a materialização evidente do constitucionalismo abusivo. Lançando mão do subterfúgio de utilização de instrumento legal busca-se na realidade atingir a própria jurisdição constitucional. Assim, o que se escamoteia no instituto da graça, ora concedida, é um ataque deliberado à instituição do STF."

GRAÇA PRÉVIA
E há, aponto aqui e em toda parte desde sempre, a "graça prévia". Bolsonaro resolveu livrar da condenação quem condenado ainda não era, o que é um emblema do desvio de finalidade, do ato abusivo, da disposição de confrontar do Supremo, da afronta à moralidade -- e também à lei.

Apontam os autores:
"assim como o indulto, a graça é uma forma revisão externa, de competência exclusiva do Presidente da República, da sentença condenatória transitada em julgado. Sem o trânsito em julgado, não há espaço para a concessão de graça ou indulto, o que eiva o ato em questão de inconstitucionalidade formal.
O Código de Processo Penal, que regulamenta a graça, o indulto e a anistia, acertadamente alocou estes institutos no Livro IV "Da Execução". E no art. 669, que abre este livro, estabelece-se o óbvio: a sentença penal condenatória só é exequível após o trânsito em julgado. Antes do trânsito em julgado, diversos atos de execução não podem ser realizados, dentre eles a concessão de graça ou indulto. E a ratio legis é singela: até o trânsito em julgado, quando se forma a coisa julgada, é juridicamente possível a alteração da decisão condenatória."

E concluem:
"Caso se admita o contrário, sob o ponto de vista mais amplo, se relegará à proteção deficiente, violando-se a Untermassverbot, o núcleo duro constitucional do Direito Penal, promovendo, neste caso específico, uma política criminal excessivamente leniente, incapaz, por diversos vícios e desvios de origem, de proteger a probidade administrativa que se exige dos agentes políticos - e mais - a própria noção de Estado de Direito que nos é, constitucionalmente, tão cara e essencial, e que consistiu, ela própria, no principal fundamento da condenação do Deputado Federal Daniel Lúcio da Silveira."

É a melhor e mais douta contestação que li ao descalabro de Jair Bolsonaro. Estamos no bom caminho, leitores. Como sabem, essa é a trilha da coluna desde o começo desse imbróglio.

Não sei o que fará o Supremo. Uma coisa eu sei: é da natureza da nova extrema direita, aqui e no mundo, não recuar nunca. Qualquer concessão, e os valentes dobram a dose na investida seguinte.

Não cobro que o Supremo aplique um remédio preventivo. Que se atenha à lei e à jurisprudência e torne sem efeito o decreto inconstitucional e ilegal.

Por Reinaldo Azevedo

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Reação da Defesa a ministro é absurda e truculenta; é lobo contra cordeiro



A nota emitida pelo Ministério da Defesa contra fala do ministro Roberto Barroso, do Supremo, que participou de um seminário por videoconferência neste domingo, é, ela sim, irresponsável, truculenta e ameaçadora. Até porque responde ao que o ministro não disse e ignora o que disse. Barroso não atacou as Forças Armadas. Ele elogiou o seu profissionalismo. Repete-se, assim, de forma emblemática, parte ao menos da fábula do lobo e do cordeiro. Vocês conhecem: querendo cravar os dentes naquele que saciava sua sede rio abaixo, o carnívoro acusa o herbívoro de estar turvando a água que bebia. Tese desmoralizada, testa mais algumas hipóteses falsas. Sem amparo nos fatos, mata o outro mesmo assim. Os nossos lobos estão fazendo acusações infundadas. Mas não ficarão com a carne desta vez. Vamos ver.

Barroso participou à distância do "Brazil Summit Europe 2022", evento realizado pela universidade alemã Hertie School, de Berlim. A nota da Defesa responde ao seguinte trecho da fala de Barroso:
"Ataques totalmente infundados e fraudulentos ao processo eleitoral. Desde 1996, não tem nenhum episódio de fraude eleitoral no Brasil. Eleições totalmente limpas, seguras e auditáveis. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar... Gentilmente convidadas para participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo..."

O ministro fala mais sobre os militares. Já chego ao ponto. Mas esse é o trecho que motivou a nota. Observem que não há acusação nenhuma contra as Forças Armadas. O que ele aponta é uma tentativa de usá-las para ameaçar o processo eleitoral, coisa que o presidente já fez algumas vezes. Atenção! Na sequência, Barroso rasga elogios ao profissionalismo dos quarteis. Diria até que foi benevolente demais. Afinal, forças realmente profissionais não assinam ordem do dia exaltando golpe de Estado. Faz-se escarcéu com a expressão "estão sendo orientadas" como se o ministro estivesse acusando o comando. O conjunto deixa claro que isso é falso. Ele afirma rigorosamente o contrário, se verá. Leiam a reação do Ministério da Defesa:

Brasília (DF), 24/04/2022 - Acerca da fala do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, durante participação, por videoconferência, em um seminário sobre o Brasil, promovido por entidade acadêmica estrangeira, em que afirma que as Forças Armadas são orientadas a atacar e desacreditar o processo eleitoral, o Ministério da Defesa repudia qualquer ilação ou insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia.

Afirmar que as Forças Armadas foram orientadas a atacar o sistema eleitoral, ainda mais sem a apresentação de qualquer prova ou evidência de quem orientou ou como isso aconteceu, é irresponsável e constitui-se em ofensa grave a essas Instituições Nacionais Permanentes do Estado Brasileiro. Além disso, afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições.

As Forças Armadas, republicanamente, atenderam ao convite do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e apresentaram propostas colaborativas, plausíveis e exequíveis, no âmbito da Comissão de Transparência das Eleições (CTE) e calcadas em acurado estudo técnico realizado por uma equipe de especialistas, para aprimorar a segurança e a transparência do sistema eleitoral, o que ora encontra-se em apreciação naquela Comissão. As eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos.

As Forças Armadas, como instituições do Estado Brasileiro, desde o seu nascedouro, têm uma história de séculos de dedicação a bem servir à Pátria e ao Povo brasileiro, quer na defesa do País, quer na contribuição para o desenvolvimento nacional e para o bem-estar dos brasileiros. Elas se fizeram, desde sempre, instituições respeitadas pela população.

Por fim, cabe destacar que as Forças Armadas contam com a ampla confiança da sociedade, rotineiramente demonstrada em sucessivas pesquisas e no contato direto e regular com a população. Assim, o prestígio das Forças Armadas não é algo momentâneo ou recente, ele advém da indissolúvel relação de confiança com o Povo brasileiro, construída junto com a própria formação do Brasil.

Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira
Ministro de Estado da Defesa

Há 26 dias, o Ministério da Defesa, ainda sob o comando de Braga Netto, mandou a Constituição para o lixo e exaltou o golpe de Estado. Há um representante fardado na Comissão criada pelo TSE para acompanhar as urnas eletrônicas. Bolsonaro mentiu, afirmando que os militares apontaram fragilidades no sistema. Isso não aconteceu. Mas não houve uma resposta do Ministério restabelecendo a verdade. O próprio tribunal teve de se pronunciar. Eis aí uma das tentativas de orientar as Forças Armadas a atacar o processo eleitoral.

Observem que a nota fala sobre essa participação e lembra das "propostas colaborativas", mas perde uma vez mais a chance de deixar claro que não se encontrou evidência nenhuma de que o sistema é fraudável.

As Forças Armadas têm, sim "prestígio", mas não para governar, não é mesmo? Ele cresceu, diga-se, na democracia à medida que os militares se distanciaram da política porque não foram feitas para governar. Ou alguém acha o contrário na caserna?

O QUE REALMENTE IRRITOU
E claro que o Ministério da Defesa tem consciência de que Barroso elogiou as Forças Armadas, conforme se lerá mais abaixo. Mas houve um trecho em que a simples exposição dos fatos, sem acusação nenhuma, evidenciou a tentativa de desordem nos quarteis promovida por quem tomou as decisões: o presidente da República. E a isso a nota da Defesa não respondeu porque irrespondível. Disse Barroso, com correção:
"Até agora, o profissionalismo e o respeito à Constituição têm prevalecido. Mas não deve passar despercebido que militares profissionais, admirados e respeitadores da Constituição, foram afastados: o general Santos Cruz, um herói brasileiro que combateu no Congo; o general Maynard Santa Rosa, um homem da maior integridade, eu mesmo convivi com ele, ambos estudamos nos Estados Unidos numa mesma época, um homem corretíssimo! O próprio general Fernando Azevedo, que foi ministro da Defesa, uma pessoa de imensa integridade, grande liderança! Os três comandantes das Forças todos foram afastados. Não é comum isso. Nunca havia acontecido dessa forma. Portanto, é preciso ter atenção para esse retrocesso 'cucaracha' de voltar à tradição latino-americana de botar Exército envolvido com política. É uma péssima mistura para a democracia. É uma péssima mistura para as Forças Armadas. E eu tenho fé de que as lideranças militares saberão conter esse risco de contaminação indesejável que levou à ruína da Venezuela. Aconteceu na Venezuela: jogar as Forças Armadas no varejo da política e contaminá-las com todas as vicissitudes do varejo da política: da corrupção ao empreguismo. E hoje a Venezuela é uma ruína; é um desastre humanitário".

Barroso lembrou o nome de três generais demitidos e o episódio da destituição dos respectivos comandantes das Três Forças quando Azevedo e Silva saiu. Se o presidente é o que mais emprega militares no Executivo — incluindo o ciclo da ditadura —, é também o que mais submeteu generais à humilhação: onze já foram defenestrados. E todos de modo bastante desrespeitoso, com fritura pública antes, durante e mesmo depois da queda, como aconteceu com Silva e Luna, que presidiu a Petrobras.

O ministro tem razão. É claro que tudo isso é atípico e deve preocupar. Há um evidente esforço de politizar os quartéis. E o protagonista dessa ação deletéria é o presidente. Não fosse assim, e essa nota absurda e infundada não teria vindo a público. E Barroso acerta também quando deixa claro que a Venezuela é hoje governada por um regime militar. Para se manter no poder, Maduro tem de transformar as Forças Armadas em gendarmes da sociedade que atuam em defesa dos próprios interesses. É irrelevante se o viés é de esquerda ou de direita. O fato: exercem a tutela do país.

ELOGIOS
A nota da Defesa é uma provocação -- mais uma, que também busca intimidar o Supremo, que terá que decidir o que fazer com o decreto inconstitucional da graça assinado por Bolsonaro -- absolutamente infundada porque, na verdade, Barroso elogia fartamente o comportamento das Forças Armadas. A meu ver, até exagerou porque não as vejo assim tão profissionais. Afirmou o ministro, depois de lamentar o desfile de tanques nas Praça dos Três Poderes:
"Um fenômeno em alguma medida preocupante, que, até aqui não tem ocorrido, mas que é preciso estar atento, é um esforço de politização das Forças Armadas. Esse é um risco real para a democracia. E aqui gostaria de dizer, por um dever de justiça -- e eu que fui um crítico severo do regime militar; um militante contra a ditadura militar --, nesses 33 anos de democracia, se teve uma instituição de onde não se teve notícia ruim e que teve um comportamento exemplar foram as Forças Armadas. Eu gosto de trabalhar com fatos e de fazer justiça. O país apresentou momentos de turbulência -- impeachment do presidente Collor, casos gravíssimos de corrupção, impeachment da presidente Dilma Rousseff, turbulências variadas no mundo, e ninguém cogitou de uma solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Portanto, nós percorremos todos os ciclos do atraso nessas três décadas de democracia. E o desejável é que continue a ser assim. Mas todos nós assistimos a repetidos movimentos para jogar as Forças Armadas no varejo da política. Isso seria uma tragédia para a democracia e seria uma tragédia para as Forças Armadas, que levaram três décadas para se recuperarem do desprestígio do regime militar e se tornarem instituições valorizadas e prestigiadas pela sociedade brasileira".

O ministro foi até benevolente. Houve, sim, alguns episódios nada abonadores, como os tuítes ameaçadores do general Eduardo Villas Bôas, em 2018, exigindo que Lula fosse mantido na cadeia. Mas essa lembrança, neste texto, tem importância apenas lateral. Observem que o ministro elogia os militares. Mas, tudo indica, não da forma como pretendem ser elogiados.

É claro que é preocupante isso a que se assiste no país. O esforço de politização das Forças Armadas está em curso. O espírito de tutela voltou a se assanhar. Se não há espaço para golpe à moda da velha América Latina, isso não implica que estejamos blindados contra a degradação das instituições. Está em todo canto, por exemplo, que os militares apoiaram o decreto da graça a Daniel Silveira, estupidamente inconstitucional, como se isso fosse matéria do interesse dos quarteis.

Parece que o lobo está com sede de sangue, não de água. O cordeiro tentou demonstrar pela lógica que eram falsas as acusações que aquele lhe fazia. Ocorre que o truculento estava em busca de pretextos, não de motivos. É bom que todos tenhamos claro que uma luta dessa natureza não se vence só com bons argumentos. É preciso também mobilização. De acordo com as regras do jogo: a Constituição.

Quem não gosta de regras é o lobo.

domingo, 24 de abril de 2022

Forças Armadas 'estão sendo orientadas a atacar e desacreditar' o processo eleitoral, diz Barroso


O ministro do STF, Luis Roberto Barroso Foto: Divulgação

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, afirmou neste domingo que vê as Forças Armadas sendo orientadas para atacar o processo eleitoral. Durante sua participação em um seminário promovido por uma universidade alemã, Barroso disse que o Brasil é um dos países que testemunha a ascensão do populismo autoritário e relembrou episódios como o desfile de tanques na Esplanada dos Ministérios e os ataques do presidente Jair Bolsonaro às urnas eletrônicas.

Segundo Barroso, existe uma tentativa de levar as Forças Armadas ao "varejo da política". Para ele, é importante que os comandantes militares evitem esse tipo de contaminação. No ano passado, em meio à pressão do presidente Jair Bolsonaro, o Tribunal Superior Eleitoral convidou representantes das três Forças para participarem do processo de fiscalização das urnas.

— Um desfile de tanques é um episódio com intenção intimidatória. Ataques totalmente infundados e fraudulentos ao processo eleitoral. Desde 1996 não tem nenhum episódio de fraude. Eleições totalmente limpas, seguras. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar. Gentilmente convidadas para participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo — afirmou.

Barroso destacou que nos 33 anos desde a redemocratização, as Forças Armadas recuperaram seu prestígio, mas que enxerga como um risco real o que chamou de esforço de politização dos militares.

— Um fenômeno que em alguma medida é preocupante, mas que até aqui não tem ocorrido, mas é preciso estar atento, é o esforço de politização das Forças Armadas. Esse é um risco real para a democracia e aqui gostaria de dizer que, eu que fui um crítico severo do regime militar, militante contra a ditadura, nesses 33 anos de democracia, se teve uma instituição de onde não veio notícia ruim foi as Forças Armadas. Gosto de trabalhar com fatos e de fazer justiça — afirmou.

Para Barroso, entretano, há repetidos movimentos para jogar as Forças no que chamou de "varejo da política".

— Tenho a firme expectativa que as Forças Armadas não se deixem seduzir por esse esforço de jogá-las nesse universo indesejável para as instituições de estado que é o universo da fogueira das paixões políticas. E até agora o profissionalismo e o respeito à Constituição tem prevalecido. Mas não se deve passar despercebido que militares profissionais e admirados e respeitadores da Constituição foram afastados, como o general Santos Cruz, general Maynard Santa Rosa, o próprio general Fernando Azevedo. Os três comandantes, todos foram afastados. Não é comum isso, nunca tinha acontecido — afirmou o ministro.

No seminário, Barroso evitou comentar sobre o caso do deputado Daniel Silveira, condenado a oito anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, mas que teve sua pena perdoada pelo presidente Jair Bolsonaro.

O ministro afirmou que o caso deverá voltar para a Corte e que, portanto, não pode emitir opiniões sobre o tema antes disso.

O ministro falou por quase uma hora para estudantes brasileiros que moram na Alemanha e falou sobre democracia, desinformação e as instituições brasileiras. Em boa parte da sua palestra, Barroso falou de forma ampla sobre os temas, evitando muitas associações com o Brasil.

O ministro, porém, fez questão de ressaltar que o Brasil é um dos países que passa pela ascensão do que chamou de "populismo autoritário". Questionado por um dos estudantes sobre "sequelas" do governo Bolsonaro, Barroso admitiu que acredita que o país passa por um momento de desprestígio internacional, mas disse que atua como um ator institucional e não político.

— Não faço juízos políticos, não respondo a ataques pessoais. Para mim, não faz muita diferença. Só me mobilizo quando acho que há ataques às instituilções — afirmou.

Em O Globo

sábado, 23 de abril de 2022

Mal maior seria STF condescender com decreto ilegal. E o que quer Bolsonaro



Mas o que quer Jair Bolsonaro ao conceder a graça a Daniel Silveira? Responderei aqui. Antes, quero falar de novo sobre a inconstitucionalidade e a ilegalidade do seu ato.

Com todas as vênias a algumas almas de boa-fé sinceramente interessadas em evitar uma crise, afirmo: é indecoroso que se tente ver alguma sombra de regularidade no decreto de Bolsonaro. O presidente comete crime de responsabilidade, impedindo o livre exercício do Poder Judiciário, conforme Inciso II do Artigo 85 da Constituição e Inciso II do Artigo 4ª da Lei 1.079. Vale dizer: trata-se de uma agressão criminosa à Carta. E o presidente o faz apelando a provocações escancaradas:

1: nas considerações com que tenta justificar a decisão, deixa claro que tem suas próprias opiniões sobre liberdade de expressão e imunidade parlamentar, como se pudesse impor a sua vontade ao Judiciário;

2: atropela a jurisprudência (Súmula 631, do Superior Tribunal de Justiça) ao tentar anular também os efeitos secundários da condenação — ainda que a anulação do efeito primário (a prisão) fosse legal, o que não é. Bolsonaro tenta garantir, assim, a elegibilidade a Silveira, matéria que não se presta a graça ou indulto. Bolsonaro não tem competência para tornar elegível o inelegível;

3: decreta a graça por antecipação, uma vez que a condenação nem havia ainda transitado em julgado: assim, concede o perdão a quem não está condenado, o que evidencia o ânimo para a provocação e o confronto;

4: expõe no próprio decreto que está impedindo que a Justiça se faça para atender ao clamor de sua base eleitoral, evocando uma suposta "comoção" decorrente da condenação;

5: fragiliza e desmoraliza a graça e o indulto uma vez que não os emprega para fazer justiça. É preciso que nos perguntemos, numa mirada necessariamente teleológica, qual é a finalidade desses dois institutos. Servem para garantir a impunidade ou para, se necessário, corrigir uma injustiça ou minorar a severidade das penas? A competência exclusiva do presidente para conceder esse tipo de perdão é uma herança do tempo em que o monarca absolutista tinha seus momentos de generosidade. O presidente da República transforma um ato original de benevolência numa tentação absolutista. É uma aberração.

6: nem se tem memória de quando a graça, como ele a impôs, foi empregada no país pela última vez. A cada ano, há os decretos de indulto, que atende a um grupo de pessoas. Cabe, sim, ao presidente, excetuando-se os crimes insuscetíveis de graça ou anistia previstos na Constituição (Art. 5º, XLIII), estabelecer os critérios. É livre, mas não é arbitrário. Procura-se sempre compatibilizar o benefício segundo disposições da Lei de Execução Penal.

MAIS AGRESSÕES À CONSTITUIÇÃO
"Mas é ou não é competência do presidente conceder indulto e graça"? É, sim! Como é competência do Judiciário fazer cumprir a lei penal. Ocorre que Bolsonaro não se conforma com o que dispõe o Artigo 2º da Constituição, que ele também viola com sua decisão tresloucada: "Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário."

Resta evidente, no próprio texto do decreto, que se trata de privilegiar Daniel Silveira, alegando-se até mesmo interesse público, o que também escracha o Artigo 37 da Carta: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência". O ato é ilegal, é imoral e, obviamente, interessado, agredindo também a impessoalidade.

QUALQUER COISA
Convenham: a ter estabelecido o presidente da República um padrão -- "concedo a graça a quem quiser" --, pode-se dizer que ele se considera o juiz dos juízes, o Supremo do Supremo. O que impede o inquilino do Palácio do Planalto de fazer "A Lista de Bolsonaro", buscando livrar a cara de seus condenados de estimação?

Compreendem? Afirmar a legalidade do decreto — ignorando-se os óbices listados aqui — corresponde a entregar a Bolsonaro a chave da cadeia. Por ora, ele não tem como mandar pra lá todos quantos queira, mas poderia de lá tirar os condenados que são do seu interesse.

MAS O QUE QUER BOLSONARO?
Há várias petições encaminhadas ao Supremo contra o ato de Bolsonaro. Quem vai decidir, em suma, se o decreto vale ou não é o tribunal atacado por Silveira e por seu protetor.

Bolsonaro jogou para a sua galera sabendo que o tribunal pode tornar sem efeito o seu texto. Em qualquer caso, ele quer a Corte na mira, numa espécie de jogo de ganha-ganha. Se o decreto for declarado ilegal, reafirma aos seus que há um mal no Brasil que precisa ser combatido. Se os ministros buscarem alguma acomodação, que consistiria em aceitar a anulação da prisão, mas mantendo a cassação e a perda dos direitos políticos, aí o presidente edeclara meia vitória e deixa claro que a luta continua.

O STF é um dos alvos de Bolsonaro desde 2019, quando começaram os atos fascistoides contra o tribunal e contra o Congresso. Ele cumpre o roteiro de todos os extremistas que chegam ao poder: elegem imprensa e Judiciário como inimigos principais. Se reeleito, terá mais duas indicações a fazer para a Corte. Mas ele não quer parar por aí.

Alguns bolsonaristas de peso estão se candidatando ao Senado. O "Mito" vai radicalizar a luta contra o Supremo na campanha eleitoral, pouco importa o destino que tenha seu decreto. Saindo tudo de acordo com o seu sonho, ele se reelege, faz as duas indicações, e senadores de sua tropa de choque tentam emplacar o impeachment de algum ministro

ACOMODAÇÃO
Muitos defendem uma espécie de solução salomônica: acata-se a parte do decreto que trata da condenação principal, mas se mantêm os efeitos secundários dela derivados, ainda que, reitere-se, o decreto seja ilegal e inconstitucional. Argumenta-se que Bolsonaro conta com a derrubada do seu decreto, o que o levaria a fazer discursos mais violentos contra Justiça, como querem seus fanáticos. Assim, o melhor seria desarmar o gatilho que ele armou.

Entendo o raciocínio, é legítimo, mas discordo. Um dos erros brutais que muita gente cometeu a respeito de Bolsonaro foi supor que ele se moldaria à institucionalidade e se conformaria em governar uma democracia. Como sabem, nunca acreditei nesse troço.

Prestem atenção! Pouco importa o destino que se dê ao decreto, Bolsonaro vai atacar a corte. É da sua natureza e da natureza de sua campanha. Assim, entendo que a única coisa a fazer é declarar a óbvia ilegalidade da graça concedida a Silveira. A tentativa de acomodação só vai dizer a Bolsonaro que tem de fazer de novo.

CONCLUO
Nesta sexta, Bolsonaro voltou a falar na "nossa liberdade", que estaria sendo ameaçada pelos ministros do Supremo. Há exatos dois anos, realizou-se a famigerada reunião ministerial proibida para menores, cujo conteúdo acabou vindo a público.

E, aos berros, o presidente falava sobre "a nossa liberdade", que teria se ser assegurada, disse ele, por meio das armas. É um disruptivo, um subversivo da ordem democrática, um fascistóide. Mantendo ou não mantendo a validade do decreto, o STF tem de saber: vai apanhar de Bolsonaro e dos bolsonaristas. Faz parte do show da extrema direita.

O mal maior, nesse caso, é condescender com a ilegalidade. E o decreto de Bolsonaro é ilegal, imoral e golpista.

Por Reinaldo Azevedo