Jair Bolsonaro demorou a perceber. Mas o coronavírus empurrou o Brasil real para dentro dos gabinetes de Brasília. Surpreendidas, as autoridades têm dificuldade para lidar com a realidade. O governo anuncia a liberação de dezenas de bilhões de reais. Entretanto, não consegue colocar R$ 600 na mão de quem passa fome.
A insistência do capitão em tratar a hecatombe viral como "fantasia", "histeria" ou "gripezinha" retardou o plano de socorro aos brasileiros pobres. A proposta de entregar dinheiro vivo a quem não tem ou perdeu a renda foi à vitrine em 18 de março. Decorridos 15 dias, topou com um inusitado jogo de empurra.
O vale vírus já foi aprovado pelo Congresso, sancionado por Bolsonaro e abençoado pelo Supremo. Mas Paulo Guedes ergue novo obstáculo: o Legislativo teria de aprovar uma emenda à Constituição, sob pena de o governo violar a legislação orçamentária e fiscal. É conversa fiada, rebate Rodrigo Maia.
Numa evidência de que há males que vêm para pior, Onyx Lorenzoni atormenta a paciência alheia com a informação de que ainda não dispõe de um calendário para o repasse da verba. Pior: não sabe como fazer chegar o dinheiro aos autônomos —gente que não está no Bolsa Família nem no cadastro da pasta da Cidadania.
No gogó, o governo diz que gastará R$ 98 bilhões para pagar R$ 600 reais por três meses a pelo menos 54 milhões de pessoas. Algumas delas não são apenas pobres. Frequentam a extrema pobreza. Para esse pedaço da sociedade, o isolamento social é apenas uma outra forma de definir fome.
Há uma semana, numa das entrevistas em que divergiu do mundo ao sustentar que apenas os mais velhos deveriam se isolar, Bolsonaro retirou seu governo da jogada: "O povo tem que parar de deixar tudo nas costas do poder público. Aqui não é uma ditadura, é uma democracia."
Agora, depois que o presidente lavou as mãos, sua equipe some com o sabonete. Faz isso ao retardar o pagamento da mixaria que serviria para segurar os mais jovens em casa, impedindo-os de trazer da rua o vírus que infectará os idosos.
Programado para colocar em pé reformas liberais, o governo do capitão não se equipou para cuidar de pobres. Ao contrário, especializou-se em atormentá-los. Antes do vírus, tentou beliscar o Benefício de Prestação Continuada de deficientes e miseráveis.
Depois do vírus, saiu-se com uma medida provisória que autorizava empresas a suspender contratos de trabalho sem o inconveniente de ter de pagar salários. Denunciada a crueldade, Paulo Guedes inventou um "erro de redação". Acreditou quem quis.
O pobre, como objeto de pesquisas antropológicas, é um ser complexo. Fora dos livros e dos estudos acadêmicos, porém, o pobre adquire uma simplicidade implacável. O pobre não tem tempo para abstrações. Guia-se por um pragmatismo estomacal.
O pobre, quando desce à categoria de miserável, só tem apreço pelo concreto: o feijão, o arroz, a carne... Seu projeto de vida é arranjar comida. Seu mundo cabe no intervalo entre uma refeição e outra.
O relógio dos terrivelmente pobres não combina com o calendário elástico do governo. Ele só marca certas horas: a hora do café, a hora do almoço, a hora do jantar... Sem comida e sem os R$ 600, o relógio dos muito pobres tende a enlouquecer. As horas começam a virar segundos.
Para a burocracia de Brasília, a pobreza é incompreensível. Os burocratas não entendem por que as pessoas que querem almoçar e jantar não abrem simplesmente a geladeira, como se faz, por exemplo, na cozinha do Alvorada.
Por Josias de Souza
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