quinta-feira, 30 de abril de 2020

Bolsonaro anuncia recurso. Será? Não pode fazer cônsul o cavalo Incitatus


Repordução

Jair Bolsonaro é um tigre de papel, ancorado em alguns generais e com milícias digitais que criam a fama do mito. Depois de a Advocacia Geral da União afirmar que não iria recorrer da decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, que suspendeu, por meio de liminar, a nomeação de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal, veio o papo, roncado com o rancor do ressentimento impotente: "É dever dela [AGU] recorrer. Quem manda sou eu, e eu quero o Ramagem lá."

Pode querer. Caso se realize, não será tão cedo. O que ele vai fazer? Nomear uma segunda vez? De novo, os que entendem que a nomeação frauda a Constituição iriam recorrer. E, por óbvio, o caso iria parar outra vez nas mãos de Alexandre de Moraes. É o princípio da prevenção. Nesse caso, nem prevenção seria, mas loucura. Bolsonaro pretende repetir o ato impugnado? 

Ocorre que já não há mais do que recorrer. A decisão, suspensa pela liminar, já não existe porque a nomeação foi revogada. O recurso, diga-se, chegaria às mãos do ministro. E, por óbvio, ele teria de arquivá-lo apontando a perda de objeto. Não existe mais o ato presidencial que motivou o Mandado de Segurança. A liminar suspendeu os efeitos de um ato que já não está mais no mundo. Recorrer contra o quê?

Não! Bolsonaro não manda nada nesse caso. Quem manda é a Constituição.

O presidente ainda não entendeu como funciona um modelo baseado, então, no mandamento constitucional. Ele tem uma reserva exclusiva de competência, sim, garantida pela Carta e, nesse caso, por uma lei. Mas isso não o torna senhor absoluto para nomear quem lhe der na telha. As funções privativas de um presidente da República só podem ser exercidas segundo o que dispõe a Carta Magna. Que parte é tão difícil de assimilar?

Bolsonaro não pode, por exemplo, nomear um asno -- aquele apropriadamente chamado, de quatro patas -- para um cargo na República, como Calígula, nascido no ano 12 e assassinado em 41, teria ameaçado fazer com Incitatus, seu adorado cavalo, que ele queria cônsul.

É provável que não tenha acontecido. Suetônio (62-141), que difama bastante o imperador -- e também a outros em "Os Doze Césares" -- assevera que aconteceu. Deve ser mentira: nasceu 21 anos depois da morte do difamado. Contou o que ouviu dizer.

De todo modo, Bolsonaro poderia se distrair com a vida de Calígula, ainda que contada pelas lentes distorcidas de Suetônio, que primeiro caracteriza um príncipe exemplar para depois pintar um monstro.

Sem que tenha vivido a primeira experiência, convém que Bolsonaro não se entregue aos delírios da segunda. Segundo Suetônio, a um interlocutor e depois a outro, o imperador disse frases como: "Lembra-te que me é lícito agir contra quem bem entenda", e "Podem me odiar, contanto que me temam!".

Costumava, está no livro, ao beijar o pescoço de mulheres que resolvia tomar para si, recitar-lhes aos ouvidos: "Esta bela cabeça cairá quando eu quiser." Repetidamente asseverava que ainda faria Cesônia, sua mulher, confessar, por meio de tortura, por que o amava tanto. Foi brutalmente deposto e assassinado aos 29 anos, tendo reinado três anos, dez meses e oito dias.

Ainda que Suetônio tenha fantasiado bastante, o livro "Os 12 Césares" é uma espécie de advertência contra os efeitos colaterais do poder e os mecanismos de paranoia e mistificação que, adormecidos ou nem tanto, ele acorda. Calígula, o bom e o mau pintados pelo autor, não tinha uma Constituição a seguir. Bolsonaro tem. Aquele, se quisesse, daria carne humana de comer aos leões ainda que não o tenha feito, como está no livro. Bolsonaro exerce o poder segundo regras.

LEVAR A VOTO

De resto, ainda que o recurso fosse cabível, ainda que restasse objeto, cabe ao relator -- o próprio Alexandre de Moraes -- decidir em que momento estaria apto a levar a questão a voto. Luiz Fux, por exemplo, demorou três anos para submeter aos colegas a sua liminar que estendeu a todos os juízes e membros do MP o auxílio-moradia. Na sequência, cumpriria ao presidente da Corte pautar o tema.

Assim, parece que Ramagem não vai ocupar tão cedo o cargo de diretor-geral da PF. Afinal, Bolsonaro não é o Calígula de Suetônio. E ainda que fosse... Aliás, convém não tentar ser.

Por Reinaldo Azevedo

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