André Mendonça, ministro da Justiça, já confundiu crime com liberdade de expressão. Assim, não me surpreende que confunda liberdade de expressão com crime.
Há menos de um mês, passou a mão na cabeça de delinquentes que dispararam fogos de artifício contra o Supremo, simulando um ataque armado. Agora, quer enquadrar Hélio Schwartsman, articulista da Folha, na Lei de Segurança Nacional porque este afirmou em artigo que torce para que Jair Bolsonaro morra em decorrência da Covid-19.
Eu não torço. Quero que responda pelos crimes tipificados no Código Penal, na lei 1.079 e no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional para punir indivíduos, não países, por crimes de guerra, de genocídio, de agressão e contra a humanidade.
No dia seguinte ao ataque ao STF, o ministro divulgou uma nota simpática aos agressores: “Devemos agir por este povo, compreendê-lo e ver sua crítica e manifestação com humildade. Na democracia, a voz popular é soberana.” Chamava “povo” aos lunáticos golpistas e reconhecia a soberania da súcia sobre a Constituição. Eram dias anteriores à prisão de Fabrício Queiroz, marco da conversão de Bolsonaro à democracia. Aposto que a ida do primeiro-amigo do presidente e das milícias para a prisão domiciliar vai baixar o índice de apreço do ogro pelas instituições.
Mendonça tratava crime como liberdade de expressão e ainda convidava o agredido a um mea-culpa. E quer agora enquadrar Schwartsman no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional, o que, além de evidenciar a sua falta de credenciais democráticas, levanta suspeita sobre a sua sanidade jurídica. A referida disposição pune crimes de calúnia e difamação contra presidentes de Poderes. Desejar a morte de alguém pode não ser fofo. Mas calúnia e difamação não é. A acusação é tão exótica que nem errada chega a ser.
Para que o autor do texto representasse ameaça ao presidente, forçoso seria que tivesse algum comando sobre o coronavírus. Não tem. O troço vitima, a gente vê, gregos e troianos, guelfos e gibelinos, gênios e idiotas, insanos e insanáveis. Patógenos não têm moral nem fornecem uma aos doentes.
O artigo de Schwartsman é o mais equivocado que já saiu de sua pena inteligente.
O autor apela à ética consequencialista para explicar a sua torcida. Pode-se resumir assim: o comportamento de Bolsonaro contribui para espalhar a doença e, pois, a morte. Se a Covid-19 o matasse, vidas seriam poupadas. E é bom notar que o articulista não fez arminha com os dedos, mirando o presidente.
O consequencialismo é matéria controversa. A sua principal fragilidade está na abolição dos princípios em favor da eficácia. Ocorre que aquele que tem o poder de fazer escolhas não detém o monopólio do bem universal, e tais escolhas, medidas apenas pelo resultado, podem ser um atalho para a barbárie, ainda que supostamente iluminista.
Não terá o próprio Bolsonaro sido “consequencialista” a seu modo quando fez reiterados flertes ao morticínio em massa, alegando que a paralisação da economia geraria mais estragos do que a própria doença? A diferença entre as duas proposições pode estar apenas no preço a pagar pelo alegado bem a ser alcançado: o jornalista tratou da morte de um homem que resultaria na salvação de milhares. O presidente preferiu apostar na morte de milhares para, segundo diz, salvar os empregos.
Sou um anticonsequencialista. No direito, por exemplo, o consequencialismo —que já chegou ao Supremo— tem produzido desastres em série. Não raro, relativiza-se a letra da lei em favor de uma noção de eficácia que resulta em solipsismo e desordem. Maquiavel nunca escreveu que os fins justificam os meios. Deve ter sido obra de algum candidato a tirano. O que o meu anticonsequencialismo me diz é que os meios qualificam os fins.
A tese de Schwartsman é ruim, mas, obviamente, não é criminosa. Ocorre que Mendonça não sabe a diferença entre crime e liberdade de expressão e entre liberdade de expressão e crime. E só por isso é ministro de Bolsonaro.
Por Reinaldo Azevedo
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