A obsessão de Jair Bolsonaro pela cloroquina transformou-se num processo judicial esperando na fila para acontecer. Documentos internos do Ministério da Saúde revelam que, sob o comando interino do general Eduardo Pazuello, a pasta abarrotou os seus estoques de cloroquina e deixou faltar medicamentos vitais para o tratamento de pacientes de covid-19 internados em UTIs. Fez isso contrariando alertas dos técnicos do próprio ministério.
A barbeiragem sanitária está documentada em atas de reuniões do Comitê de Operações de Emergência do Ministério da Saúde. Os encontros ocorreram entre abril e junho. O Jornal Nacional obteve cópias de alguns desses documentos. Exibiu-os na noite de sexta-feira. Em 25 de maio, o comitê discutiu a compra de cloroquina. Decidiu-se adquirir 3 toneladas de insumo farmacêutico ativo para a produção do medicamento.
A ata da reunião revela que os técnicos fizeram um alerta: "Devido à atual situação, não é aconselhável trazer uma quantidade muito grande, pois, caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas." O comando do ministério deu de ombros.
O general Pazuello tornou-se ministro interino graças à cloroquina. O oncologista Nelson Teich pediu demissão do cargo de titular da Saúde 28 dias depois de tomar posse porque se recusou a avalizar a cloroquinomania de Bolsonaro. Dez dias depois da saída do doutor, o general Pazuello alterou o protocolo da Saúde sobre a cloroquina. Autorizou a prescrição do medicamento inclusive para pacientes com sintomas leves da covid-19 —exatamente como queria Bolsonaro.
A abundância de cloroquina contrastava com a escassez de remédios realmente úteis no tratamento dos pacientes com covid-19. Em reunião ocorrida em 29 de maio, os técnicos do comitê emergencial da Saúde revelavam-se apreensivos com os baixos estoques de medicamentos como analgésicos e sedativos, indispensáveis para entubar pacientes levados à UTI.
Nada menos que 267 insumos estavam com "risco de desabastecimento", anota a ata da reunião. Quem lê o documento é estimulado a suspeitar que o governo estava mais preocupado em ocultar o problema do que em resolvê-lo. O documento anota uma observação "importante", Diz o seguinte: "Não fazer divulgação dos dados."
O comitê da Saúde reuniu-se novamente em 3 de julho. Àquela altura, havia em estoque 4 milhões de comprimidos de cloroquina. A ata registra: "Alguns estados não quiseram receber a cloroquina, com isso ficou em estoque para devolução mais de 1,4 milhão de comprimidos". Nessa ocasião, proliferavam estudos internacionais atestando a ineficácia da cloroquina no tratamento da covid-19.
No mês de junho, governadores de 23 estados e do Distrito Federal subscreveram uma carta conjunta, Nela, pediam ao Ministério da Saúde que fizesse "uma compra centralizada no mercado nacional ou aquisição, por intermédio da Opas, no mercado internacional."
Foi contra esse pano de fundo que a representação do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União pediu a abertura de auditoria para investigar a superprodução de cloroquina pelo Exército, por ordem de Bolsonaro. A estimativa é que o volume de produção tenha aumentado 84 vezes entre março e abril. O TCU deve apurar a suspeita de desperdício de dinheiro público. A chance de algo assim acabar bem é remota.
Ouvido nesta sexta-feira, o ministério alegou que o estoque hipertrofiado de cloroquina pode ser usado também no tratamento de doenças crônicas e malária. Mas isso já vinha sendo assegurado antes da pandemia, sem aquisições mirabolantes. Pelas contas da pasta da Saúde, o estoque de cloroquina no seu almoxarifado é, hoje, de 472 mil comprimidos.
Ainda infectado pelo coronavírus, Bolsonaro comporta-se como garoto-propaganda da cloroquina. Oferece o medicamento até para as emas dos jardins do Alvorada.
Por Josias de Souza
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