Não é palatável, deglutível, muito menos justo. Mas a pandemia desdenhada pelo presidente Jair Bolsonaro, que escancarou sua desumanidade diante do flagelo de milhares de brasileiros (sua incapacidade de governar há muito já se tornara ferida exposta) pode, ironicamente, salvá-lo.
Turbinado pela prorrogação do auxílio emergencial e pela anunciada criação do Renda Brasil, a ser custeado por um tributo nos moldes da CPMF, o presidente imagina ter munição para chegar fortalecido a 2022. Mais: embora a incompetência crônica dele e de seu time seja assustadora, o fracasso será debitado exclusivamente à Covid-19. Narrativa já adotada por ele ao culpar governadores e prefeitos pela erosão da economia.
Longe se vai o setembro de 2019 em que Bolsonaro defenestrou o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, feroz defensor do imposto do cheque. A irresistível sedução de popularidade advinda da distribuição de dinheiro aos mais pobres tem o condão de transformar o presidente em devoto do novo tributo sobre transações digitais que o ministro Paulo Guedes pretende criar no bojo da reforma tributária.
Guedes só pensa nisso.
O anúncio déjà vu feito pelo ministro na semana passada de que a reforma tributária está pronta e será encaminhada ao Congresso na terça-feira, repete o modelito de promessas de mundos sem fundos: reformas administrativa e tributária, novo pacto federativo e privatizações em massa. Nada além de lábia.
Protegido pela tarja liberal, embora não tenha conseguido colocar em prática qualquer ação próxima disso, Guedes vendeu ao mercado competências que, se as tem, estão de todo escondidas. Mesmo quem torcia o nariz para o então candidato Jair Bolsonaro respirava quando ouvia o futuro ministro elencar medidas para destravar a economia.
Falou demais e nada entregou.
O PIB de 2019 foi de 1,1%, menor do que os 1,3% dos dois anos anteriores. O do primeiro trimestre de 2020, antes mesmo de a pandemia exigir suspensão de atividades econômicas (as primeiras medidas de fechamento de comércio são de 18 de março) negativou em 1,5%.
O pouco que o Brasil conseguiu no primeiro ano de Bolsonaro se deve à herança bendita de Michel Temer, que flexibilizou regras trabalhistas, segurou a inflação e derrubou a taxa de juros pela metade, além de avançar no projeto de reforma da Previdência.
Nela, Guedes foi derrotado em várias frentes. Internamente, quando o presidente mostrou as garras em favor das corporações, especialmente dos militares e policiais, e no sistema de capitalização, uma péssima ideia copiada do Chile, que por lá impôs a miséria a milhões de idosos. Sem apoio de Bolsonaro, que trabalhou contra, a nova Previdência só saiu pelo esforço combinado dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Assim como o novo marco do saneamento básico, cujo acordo feito com o Congresso o presidente traiu.
Sem os confetes da Previdência, Guedes bateu bumbo em torno da reforma administrativa que sempre prometia enviar na semana seguinte. Como um bobo da corte, demorou a entender que seu chefe jamais pretendeu mexer nesse vespeiro.
Restou a tributária, já avançada na Câmara e no Senado, para a qual Guedes tirou da cartola um projeto praticamente idêntico ao anunciado em setembro do ano passado, e que não se efetivou. É quase inacreditável que em um ano e meio ele e sua equipe não tenham conseguido sequer escrever um projeto de reforma, quanto mais tirá-lo do papel.
Na época, além do IVA (Imposto sobre Valor Agregado) e da fusão de tributos como o PIS/Cofins, o ministro defendia a CPMF repaginada, com alíquota de 0,4%. Agora, bonzinho, diz que seria baixinha, de apenas 0,2%. E só para transações digitais. Como se os produtos comprados pela internet fossem isentos de impostos. Pior: como se o cidadão, que não tem contrapartida decente aos impostos que paga, aceitasse entregar ao governo um único centavo a mais.
A proposta é de todo indecente.
O ponto de partida para executá-la foi o veto do presidente à prorrogação da desoneração da folha de pagamentos, na contramão do que fora acordado com o Congresso. Paralelamente, Guedes tenta atrair empresários com garantias de que seu projeto de reforma, financiado pelo novo imposto, prevê alívio maior. Aos parlamentares neoaliados, a oferta do governo é de parceria autoral no Renda Brasil.
O setor produtivo desconfia. Escaldado, prefere ter um pássaro na mão a crer no sucesso de um novo tributo que ninguém, nem mesmo Guedes, sabe explicar como seria efetivado, e que tem chances reduzidas de aprovação. Sem saída para fortalecer a economia e ofertar a Bolsonaro as prometidas condições para a reeleição, o ministro vai insistir na tecla.
Ao Congresso cabe derrubar os vetos do presidente, fazendo valer seu poder institucional, e impedir a criação do tributo eleitoral. Do contrário, se curvará a quem só se importa com a renovação de seu mandato. Que, incapaz, não apenas virou as costas ao país como elegeu um caminho sórdido: transferir a conta de sua incompetência para a pandemia.
Por Mary Zaidan
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