quinta-feira, 30 de julho de 2020

Editorial do Estadão - Sinais dos tempos


Bispos aguardam a chegada do Papa Bento XVI, durante a Jornada Mundial da Juventude em Madri, Espanha

Em uma carta Ao Povo de Deus, 152 bispos católicos dispararam críticas acerbas ao governo, alertando para uma “tempestade perfeita” que combina “uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente”.

Os bispos declaram-se estarrecidos com o “apelo a ideias obscurantistas”; os “grosseiros erros” na educação e meio ambiente; a repugnância “pela liberdade de pensamento e de imprensa”; a “desqualificação das relações diplomáticas com vários países”; a insensibilidade “para com os familiares dos mortos”; e especialmente a “omissão, apatia e rechaço” a populações vulneráveis, como as indígenas. Eles reprovam ainda a associação “perniciosa” entre religião e poder no Estado laico, e em particular os grupos fundamentalistas e autoritários empenhados em “manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, e criar tensões entre igrejas e seus líderes”.

A carta, a bem da verdade, não representa oficialmente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por sinal, o fato de ela ter sido “vazada” antes do foro adequado para esta manifestação, a assembleia anual, sugere que os signatários talvez não estivessem seguros de obter a maioria de seus mais de 400 membros. É de notar também que ela não foi assinada pelos representantes de importantes dioceses. Com efeito, os manifestos da Igreja costumam se voltar antes à exortação ao bem do que à agressão particularizada a agentes do mal – a odiar o pecado e amar o pecador.

Os signatários afirmam não ter interesses “político-partidários” ou “ideológicos”. Mas é de perguntar até que ponto lograram seu intento de promover um “amplo diálogo” entre “humanistas” comprometidos com a democracia. As vituperações genéricas e descontextualizadas contra o “neoliberalismo” ou as reformas previdenciária ou trabalhista não ajudam. Até porque, para o bem ou para o mal, o governo nunca se comprometeu com uma agenda liberal e as reformas foram antes uma consecução do Congresso após um amplo escrutínio democrático. Chama a atenção ainda a omissão dos bispos em criticar a omissão do governo no combate à corrupção – que paradoxalmente foi uma de suas alavancas eleitorais. A pauta, como se sabe, é sensível a parte da militância de esquerda – notadamente a petista – que vê na indignação popular com a corrupção um movimento orquestrado pelas elites “neoliberais”.

Mas, apesar de seus indisfarçáveis matizes partidários, as principais críticas da carta são consensuais entre os setores mais moderados e esclarecidos da sociedade brasileira e internacional. A própria CNBB já criticou as políticas do governo na área ambiental e indígena e acompanhou outras instituições nas denúncias do movimento Pacto Pela Vida à participação do governo nas crises sanitária, social e política. No todo, a carta é um importante sinal de que as instâncias religiosas, após tentarem se manter neutras em tantas controvérsias políticas, estão chegando a um ponto de saturação, sugerindo um possível esvaziamento do que há de apoio ao governo na comunidade católica.

Em uma passagem do Evangelho de Lucas, Jesus, instado a solucionar uma disputa patrimonial entre dois irmãos, responde: “Quem me designou juiz de vocês?”. Então ele adverte contra os perigos das ambições terrenas, e acusa a hipocrisia daqueles que leem com exatidão os sinais meteorológicos no céu, mas negligenciam os sinais do tempo presente. “Quando algum de vocês estiver indo com seu adversário para o magistrado, faça tudo para se reconciliar com ele no caminho; para que ele não o arraste ao juiz, o juiz o entregue ao oficial de justiça, e o oficial de justiça o jogue na prisão.”

Embora os bispos não tenham sido exímios nesta arte da reconciliação – longe disso –, a sua carta é mais um sério alerta de que o governo caminha na direção do abismo. Já passou da hora de o presidente aprender a ler os sinais.

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