quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Justiça deve ser e parecer imparcial (editorial do Estadão)



Ao tratar dos direitos fundamentais, a Constituição estabeleceu, no art. 5o, que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Trata-se de importante limitação do poder do Estado, que assegura duas características indispensáveis da atividade judicial. O órgão julgador deve ser independente e imparcial.

O cuidado da Constituição com a imparcialidade do juiz confirma que o assunto, longe de ser formalidade burocrática, é requisito essencial da administração da Justiça. O Estado só tem direito a estabelecer uma decisão judicial sobre determinada questão por meio de um órgão julgador “competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei”, como expressamente previu a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.

Além disso, em defesa da independência da Justiça, evitando situações de conflito de interesses, a reforma do Judiciário de 2004 estabeleceu uma quarentena para os magistrados. “Aos juízes é vedado exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração”, dispôs a Emenda Constitucional (EC) 45/2004.

Esse marco jurídico cristalino contrasta, no entanto, com algumas condutas de magistrados em processos de falência e de recuperação judicial. Alguns dos casos foram ou estão sendo investigados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Segundo o Estado apurou, juízes pediram demissão e, logo depois, integraram bancas e consultorias que atendem empresas em dificuldades financeiras, cujos processos antes tramitavam sob sua jurisdição.

Por exemplo, em maio de 2021, um mês depois de sua exoneração, um ex-juiz de falências e recuperações judiciais de São Paulo já atuava como representante da Laspro Consultoria, uma das maiores administradoras judiciais do Estado de São Paulo. Antes, havia indicado esse escritório em pelo menos três processos que conduziu como juiz. O ex-magistrado não viu, no entanto, conflito de interesses. “Quando das nomeações, a minha ida à Laspro não era sequer uma hipótese”, disse ao Estado.

Noutro caso, também um ex-juiz de falências e recuperações judiciais de São Paulo associou-se a um escritório de advocacia que defende clientes em processos da mesma vara em que tinha sido juiz. Em pelo menos um processo, houve procuração ao ex-magistrado para atuar na defesa do credor de uma empresa cujo processo de falência foi conduzido pelo então juiz. Questionado pelo jornal, o ex-magistrado disse que essa procuração era fruto de um equívoco, que, tão logo descoberto, foi corrigido.

Tanto o CNJ como os tribunais têm sido instados a se manifestar sobre suspeita de parcialidade de juízes. Num caso, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo determinou a aposentadoria compulsória de um juiz, acusado de atuar indevidamente ao lado de um administrador judicial. Segundo a Corregedoria do tribunal, o filho do juiz teria uma sociedade informal com esse administrador.

Também não se pode ignorar que existem falsas denúncias perante o CNJ, com o objetivo de constranger os magistrados e, assim, limitar sua independência. Os órgãos de controle precisam ser criteriosos, para evitar tanto impunidades como injustiças. Para isso, é fundamental exigir o cumprimento dos requisitos constitucionais e legais da magistratura, evitando dúvidas desnecessárias sobre a independência e a imparcialidade do juiz.

Nessa trajetória de fortalecimento institucional do Judiciário, é também importante prover uma compreensão mais qualificada – mais constitucional e rigorosa – das hipóteses de impedimento e suspeição do juiz. Acertadamente, o Congresso ampliou, com o Código de Processo Civil de 2015, as causas de impedimento, fixando critérios mais precisos para a avaliação das situações em que a imparcialidade do juiz é descaracterizada. A todos, juízes e jurisdicionados, interessa que a Justiça pareça e seja de fato imparcial.

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