A reunião do Conselho de Saúde Suplementar esteve mais para uma espécie de "freak show" do que para uma conversa de pessoas de Estado interessadas em implementar políticas públicas em favor dos brasileiros.
Desde o começo do governo — a rigor, antes —, o glorioso ministro da Economia, Paulo Guedes, está de olho nas verbas da Saúde e da Educação. Ele já queria acabar com os desembolsos obrigatórios bem antes de o coronavírus aparecer por aqui. E manteve a determinação mesmo em meio a milhares de mortos. A realidade, para um especulador vulgar ou um sectário, não faz a menor diferença.
O doutor resolveu fazer considerações sobre as dificuldades para financiar o sistema de saúde no país. Se você está entre aqueles que acham que o SUS evitou milhares de mortes, muitos milhares, não pense que o nosso guia genial da economia tem planos para fortalecer o sistema. Nada disso! Ele tem ideias prontas para enfraquecê-lo.
BRASILEIRO QUER VIVER DEMAIS?
O doutor expressou, em tom meio inconformado, uma mania que os brasileiros andaram desenvolvendo: não querer morrer. E isso gera despesas, né? O pobre morrendo num tempo, digamos, oportuno concorre para desonerar o SUS e a Previdência. Que coisa, né, ministro? Poucos veem essa formidável janela de oportunidade. Sabe como é, excelência: humanos tendem a ser sentimentais com esse negócio de vida.
O doutor considerou que não foi a pandemia a evidenciar a dificuldades de financiamento da Saúde. Ele elencou outros fatores: o "avanço a medicina" e o "direito à vida"... Meu Deus! Precisamos rever logo isso, ou as contas não fecham.
Afirmou:
"Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130 ". E concluiu que "não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar".
Huuummm...
A SOLUÇÃO DE GUEDES
Mas ele não é homem só da problemática. Também é o da solucionática. Como trocar o SUS ou parar de investir nele? Ora, O sábio tem a resposta: voucher!!! E aí ele imaginou um suposto diálogo seu com um pobre:
"Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einstein se você quiser".
Imaginem qual seria o valor do "voucher"... É isto: pobre, hoje, só não se trata do Einstein, no Sírio, no Oswaldo Cruz ou no Samaritano porque há o SUS, entenderam? O sonho de Guedes, pelo visto, é pôr fim ao sistema e garantir Einstein para todos. Que coisa!
Sei lá onde o ministro anda com a cabeça nestes tempos de pandemia. Ele não deve ter lido que o colapso nas UTIs chegou antes aos hospitais privados do que aos públicos. Também não deve ter tomado conhecimento que mesmo os hospitais de ponta, nestes tempos de pandemia, passam por uma crise de financiamento porque procedimentos eletivos e rentáveis, em tempos normais, ajudavam a financiar outros, obrigatórios e bem mais caros.
Imaginar que se possa enfraquecer a estrutura do SUS — e há menos de dois meses Guedes tentava avançar sobre o mínimo constitucional reservado à Saúde — e substituí-la por um sistema de "voucher" a ser usado no setor privado é delírio de liberaloide à moda antiga, do tipo que ainda demoniza o Estado. Não está interessado na eficiência do serviço, mas no seu desmonte.
FALÁCIAS
Como se viu, tanto o sistema privado como o sistema público colapsaram. Temos, sim, a enormidade de 400 mil mortos. Sei lá a quantos chegaríamos sem o demonizado SUS. É verdade: o envelhecimento da população pressiona o sistema de Saúde no Brasil e no mundo. Mas que Guedes não venha com a conversa mole do "Tome aqui o seu voucher e vá ao Einstein se quiser". Ele sabe muito bem que os pobres não iriam para os serviços de ponta. Nota: planos de saúde da classe média baixa costumam oferecer um serviço inferior ao do SUS.
Esse é o homem que admirava o sistema de aposentadoria do Chile. Aliás, foi mais ou menos essa ilusão que se vendeu lá pela época da reforma: "Faça a sua capitalização, escolha o seu caminho e vá ser rico". Está lá o Chile tendo de se reinventar, com uma das maiores desigualdades sociais do planeta. Mas ainda é o modelo de Guedes.
Fazer agora esse debate e com essa ligeireza dá conta do seu descolamento da realidade.
Dizer o quê? Esse é o ministro que chegou a ter uma grande ideia para enfrentar a pandemia: três parcelas de R$ 200 para os informais e suspensão dos contratos de trabalhos para os formais, sem pagamento. Não fosse a trinca Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara), José Roberto Afonso (economista) e Gilmar Mendes (ministro do Supremo), o governo teria se lascado. Eles desenharam o modelo do auxílio emergencial e do Orçamento de guerra. Alguém tinha de sair da catatonia.
Finda a primeira fase do desastre, Guedes alimentou a ideia de que era preciso suspender o auxílio emergencial porque já estaria em curso a recuperação em V. Como se vê...
AS EMPREGADAS NA DISNEY
Essa história dos brasileiros que "querem viver 100, 120, 130 anos" e do "tome o voucher e vá ao Einstein se quiser" é irmã-gêmea daquela outra, lembram-se?, das empregadas domésticas que haviam adquirido o hábito de ir para a Disney, o que ele chamou de "uma festa".
Fez aquela afirmação estúpida no dia 12 de fevereiro de 2020, tentando mostrar por que um dólar nos cornos da lua era sinal da nossa vitalidade e das qualidades superiores deste governo. Duas semanas depois, no dia 26 daquele mês, identificava-se o primeiro caso de coronavírus no país.
O resto é uma história impressionante de incompetências e negligências, que já fizeram 400 mil mortos. Pela primeira vez desde 1940, a expectativa de vida dos brasileiros caiu. Afinal, é preciso pôr fim a essa mania de querer viver até os 130 anos...
Por Reinaldo Azevedo
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