Obcecado pelo plano de obter um segundo mandato em 2022, Bolsonaro esquece de exercer em sua plenitude o mandato que obteve em 2018. Em consequência, o país assiste ao surgimento de um fenômeno inédito: a judicialização do Executivo. Acionados, ministros do Supremo se metem nos assuntos mais comezinhos da administração pública, obrigando o governo a fazer por pressão o que se absteve de realizar por opção.
Nas decisões mais recentes, o ministro Marco Aurélio Mello ordenou a realização do censo demográfico do IBGE, que havia sido cancelado; e a ministra Rosa Weber deu prazo de dez dias para que o governo apresente um plano para assegurar o suprimento de sedativos indispensáveis à intubação de pacientes em UTIs. No caso do censo, a liminar foi expedida a pedido do governo do Maranhão. A decisão sobre os anestésicos foi requerida pelo governo da Bahia.
Na última segunda-feira, o plenário da Suprema Corte decidira, por 7 votos a 4, obrigar o governo federal a fixar o valor de uma "renda básica de cidadania" a ser paga a pessoas extremamente pobres a partir de 2022. Prevista numa lei aprovada em 2004, a renda básica não foi regulamentada até hoje. Coube à Defensoria Pública da União acionar o STF. O relator do caso foi Gilmar Mendes.
No final de fevereiro, Rosa Weber determinara ao Ministério da Saúde que liberasse verbas para reativar leitos de UTI para pacientes de covid na Bahia, no Maranhão e em São Paulo. No início de março, estendeu a providência ao Piauí. "Não há nada mais urgente do que o desejo de viver", anotou a magistrada em seu despacho.
Também em fevereiro, Ricardo Lewandowski mandara o governo definir uma ordem de preferência, entre os grupos prioritários, para orientar a vacinação contra a covid. O ministro realçou o óbvio: a sequência de vacinação teria de seguir "critérios técnico-científicos". Deu cinco dias de prazo para a execução da ordem.
O plano nacional de vacinação, divulgado em janeiro também por pressão de Lewandowski, incluía 77,1 milhões de pessoas nos grupos prioritários —de profissionais de saúde a idosos, passando por portadores de doenças crônicas. Mas não havia clareza quanto à posição de cada grupo na fila da vacinação.
Graças à pregação de Bolsonaro contra a obrigatoriedade da vacina, o Supremo interveio para decidir, em julgamento realizado no plenário, que o Estado pode, sim, nas suas diferentes esferas, adotar providências para tornar compulsória a vacinação. Coisas como, por exemplo, proibir a matrícula de não vacinados em escolas públicas.
Há pouco mais de um mês, o ministro Luís Roberto Barroso homologou parcialmente o Plano Geral de Enfrentamento à Covid para Povos Indígenas apresentado pelo governo por determinação do Supremo. Autor da ordem que levou à elaboração do plano, Barroso disse que suas determinações não foram integralmente cumpridas. Identificou um quadro de "profunda desarticulação" nos órgãos que deveriam zelar pela integridade dos povos indígenas.
No total, foram apresentadas ao Supremo quatro versões do plano. Envolve questões básicas, tais como acesso à água potável e saneamento, com o objetivo de atenuar os efeitos da pandemia. Coube a Barroso determinar ainda a vacinação prioritária dos povos indígenas de terras não homologadas e urbanos sem acesso ao SUS, em condições de igualdade com os demais povos indígenas.
O surto de intromissão do Judiciário no Executivo é absolutamente inusual. Decorre mais da ineficácia negacionista do governo do que do ativismo do Supremo. É como se Bolsonaro ignorasse os mais triviais princípios da política. Quem só ambiciona o poder futuro erra o alvo. Quem não ambiciona o exercício do poder presente em sua plenitude vira o alvo. Aos pouquinhos, Bolsonaro vai transformando o Executivo numa espécie de puxadinho do prédio do Supremo.
Por Josias de Souza
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