Na quarta, véspera de o país atingir a marca de 400 mil mortos por Covid-19, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) assegurou a empresários e banqueiros, informa Mônica Bergamo na Folha, que a CPI não vai dar em nada para Jair Bolsonaro. Não se sabe exatamente o que o senador entenderia por "dar em alguma coisa".
Ele também teria dito que não cabe superestimar o papel do relator, Renan Calheiros (MDB-AL). E deu o que parece ser o roteiro da impunidade: caso o relatório de Renan não seja do agrado do governo, a bancada oficialista faria um outro, alternativo, e pronto! Estabelecer-se-ia uma guerra de versões. Garantiu, adicionalmente, que não existe risco de impeachment porque Arthur Lira (PP-AL) arquivará no lixo todas as denúncias que entulham a Presidência da Câmara.
Assim, parece, Nogueira, alçado à condição de condestável da República, tranquilizou a audiência. Nada a temer. Não será por causa de quatrocentos mil mortos — por enquanto... — que se vai criar estresse, não é mesmo? E é possível que, naquela noite, muitos tenham dormido em paz. Bolsonaro continuaria, então, firme e forte. Dizer o quê? Eis aí um dos emblemas destes tempos. Então vamos ver.
Com efeito, se o Ministério Público não se mexer, pouca coisa acontece para efeitos penais. No que diz respeito ao presidente e a outros com foro especial, a tarefa de dar consequência aos achados da CPI é da Procuradoria Geral da República. Também a Polícia Federal, diante da evidência de crimes, pode abrir investigação. Mas Nogueira parece ter a certeza de que está tudo dominado. Com essa plêiade de Varões de Plutarco que chegou ao topo à esteira da razia provocada pela Lava Jato — Nogueira atravessa governos, sempre no poder —, a impunidade não se conta só em reais, mas também em corpos.
O que dizer? É, de fato, uma tolice esperar que a comissão derrube o governo. Se cair — e não estou dizendo que esteja na iminência de —, não será por isso. Com o Ministério Público Federal que aí está, há indignidade suficiente para a morte de outros 400 mil. O ponto não é esse.
A importância política — e não politiqueira — da CPI está em fazer falar quem tem de falar. Pessoas às quais cabiam ações de combate à pandemia, no comando de aparelhos de Estado voltados para essa tarefa, têm de explicar como se fabricou esse resultado. Sim, é verdade: o coronavírus teve um efeito devastador no mundo inteiro. Mas foram poucos os países em que as políticas públicas postas em prática se aliaram ao patógeno e à doença, não à população e aos doentes. E, no que respeita ao presidente da República — que não pode ser chamado a depor nem pode ser pessoalmente investigado pela comissão —, as escolhas seguem as mesmas.
Ciro Nogueira pode vender a seus ouvintes a paz dos cemitérios; pode até ajudar a bancada governista a fazer as perguntas erradas, mas não tem como impedir que seus pares da oposição e os chamados independentes façam as perguntas certas. Também não dispõem de instrumentos para condicionar as respostas dos que forem convocados. E é bom que fique claro que os chamados na condição de testemunhas têm a obrigação de falar a verdade.
PALANQUE
Não deixa de ser curiosa a acusação de que a CPI serve de palanque para a oposição. Flávio Bolsonaro, o senador da mansão de R$ 6 milhões, acusa os adversários de subir "nos caixões de 400 mil mortos" para fazer política.
Ainda que assim fosse, e não é, haveria uma diferença importante entre discursar sobre caixões para evitar novas mortes e fazê-lo para produzir ainda mais cadáveres, a exemplo da atuação do seu pai, que continua a desprezar as regras elementares da vida civilizada — e até da morte — também em tempos de pandemia.
Aqui e ali vejo especulações sobre ser a CPI um instrumento de luta política e, mesmo necessária, consideram alguns, seria esse seu aspecto negativo ou um risco a ser evitado. Uma pena de aluguel da Lava Jato chegou até a especular que Renan estaria na comissão como uma espécie de operador de Lula.
Não sei se essa gente é mais burra do que asquerosa ou mais asquerosa do que burra. Como notam, está posto que as duas qualidades concorrem pela primazia.
A comissão de inquérito instalada só recebe o adjetivo "parlamentar" porque é necessariamente política. Se tem ou não efeitos eleitorais, isso deriva, em grande parte, dos fatos que trouxer à luz. Digam-me cá: o que seria, então, "ético" e "desejável"? Que as ações nefastas e as omissões do governo fossem ignoradas para evitar o tal "risco" eleitoral? Os eventuais adversários de Bolsonaro em 2022 deveriam se abster de tratar do assunto para não criar constrangimentos ao presidente-candidato negacionista?
Quanto aos alinhamentos desse ou daquele senadores na comissão, pergunta-se: ainda que fosse verdadeira a inclinação de Renan, os demais membros da comissão se identificam com quem ou com quê? Pensam apenas nos destinos da humanidade? A propósito: as garantias oferecidas por Nogueira a seus convivas derivam de sua independência, é isso? Ora...
E que se note: não estou aqui a decretar um empate entre as partes: há uma diferença moral entre identificar os responsáveis pelo descalabro e lutar para, como é mesmo?, que tudo "dê em nada". Ou ainda: há uma diferença entre fazer da denúncia do morticínio um palanque e usar o morticínio como palanque. Dito de um terceiro modo: há uma diferença entre denunciar no palanque a necropolítica e fazer da necropolítica um palanque.
Por Reinaldo Azevedo
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