Coautor do mandado de segurança que resultou na ordem judicial para a instalação da CPI da Covid no Senado, o senador sergipano Alessandro Vieira, do Partido Cidadania, ironizou a reação de Jair Bolsonaro: "No contato com os seguidores no mundo virtual, Bolsonaro ruge como um leão para o Supremo. Na vida real, mia como um gatinho."
Em entrevista à coluna, Vieira disse ter testemunhado no Senado a articulação do presidente e do seu filho Flávio Bolsonaro para blindar magistrados. "Na vida real, o presidente trabalhou contra os pedidos de impeachment de ministros do Supremo e a CPI da Lava Toga", afirmou o senador.
O relato de Vieira reveste de teatralidade o ataque de Bolsonaro a Luís Roberto Barroso, o ministro do Supremo que mandou abrir a CPI da Covid. O presidente acusou o magistrado de fazer "politicalha". Disse que lhe falta "autoridade moral" para mandar o Senado desengavetar dez pedidos de impeachment contra seus colegas de Corte. Em verdade, cabe à Presidência do Senado deliberar sobre os pedidos de afastamento de membros da Suprema Corte.
Autor do pedido de CPI que investigaria a atuação de ministros do STJ e STF, entre eles Gilmar Mendes e Dias Toffoli, Vieira declarou ter testemunhado a movimentação do governo para enterrar a iniciativa. Assistiu de perto à movimentação de Flávio Bolsonaro, denunciado no caso da rachadinha por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
"Participei de reunião na Presidência do Senado, com vários senadores. E o Flávio fez a manifestação dele, contrária à CPI da Lava Toga. Acho que foi uma das primeiras vezes que ouvi a voz dele. Não é muito participativo. Disse na reunião que não seria conveniente dar sequência a uma CPI que envolveria ministros do STF e do STJ porque aquilo poderia prejudicar o governo na fase inicial."
Convalescendo da covid-19, Vieira revelou-se otimista com a CPI da Covid. Com a experiência acumulada em 20 anos de atuação como delegado civil, o senador disse que a investigação deve começar pelos fatos, não pelos personagens. "Não dá para começar a investigação focando no Bolsonaro ou no general Pazuello. Focando nos fatos, a cada passo vamos verificar quem era a pessoa que assumiu o risco, que tomou a decisão, que cometeu o equívoco. Esse é o melhor caminho." Vai abaixo a entrevista:
— As últimas CPIs que deram resultado foram feitas no século passado: a dos Anões do Orçamento, a do Collor e a dos Correios, que forneceu material para a denúncia do mensalão. Depois disso as CPIs tornaram-se fiascos. Por que avalia que pode ser diferente com a CPI da Covid? Nós teremos pouca demanda por medidas técnicas como quebra de sigilo bancário e fiscal, que normalmente fazem com que uma CPI demore muito. Agora mesmo, estamos com a CPI das Fake News em andamento. A demora na execução desses procedimentos dificulta bastante. Nesta nova CPI, teremos mais oitivas e juntada de documentos. Só remotamente teremos uma medida como quebra de sigilo. Com um bom plano de trabalho, apresentado pelo relator e aprovado pelo colegiado, dá para fazer um trabalho muito produtivo, dentro do prazo de 90 dias.
— Como definiria um trabalho muito produtivo? Na minha visão, o cerne do trabalho consiste em fazer uma reconstituição, passo a passo, de como o Brasil tratou a questão da pandemia. É preciso mostrar onde estão os erros, quais foram as decisões equivocadas, quais foram as falhas de execução. A gestão do Eduardo Pazuello na Saúde teve vários problemas de lentidão, gastos feitos com medicamentos sem comprovação científica.
— Refere-se à cloroquina? Sim, medicamentos como a cloroquina. Errar lá atrás, quando começou a pandemia, poderia ser perdoável. Muita gente errou. Mas permanecer no erro não se justifica. É preciso que exista a responsabilização.
— Acha que a investigação pode migrar do general Pazuello para o presidente Bolsonaro? Como delegado, trabalho há 20 anos com investigação. Uma grande regra que se costuma adotar é partir do fato, não de pessoas. Você investiga fatos. Através dos fatos chega às pessoas. Então, não dá para começar a investigação focando no Bolsonaro ou no Pazuello. Focando nos fatos, a cada passo vamos verificar quem era a pessoa que assumiu o risco, que tomou a decisão, que cometeu o equívoco. Esse é o melhor caminho.
— Há muitos vídeos com declarações do presidente sobre a pandemia. Num deles, Bolsonaro declara, por exemplo, que mandou Pazuello cancelar protocolo de compra de 40 milhões de doses da vacina Coronavac. Noutro, o ministro pronuncia a célebre frase ao lado do presidente: 'Um manda, outro obedece'. Acha que o presidente produziu prova contra si mesmo? São indicativos fortes. Mas é preciso combiná-los com outras evidências. Temos uma noção do que aconteceu. Mas precisamos trazer isso para os autos. Temos de documentar, formalizar, deixar a coisa sólida para, na sequência, tomar as providências. Creio que há condições de fazer tudo isso de forma rápida, ouvindo inclusive os quatro ministros da Saúde desse período.
— Ouvir Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello parece plausível. Mas por que acha necessário ouvir também Marcelo Queiroga, que acaba de assumir o Ministério da Saúde? É importante na reconstituição do que ocorreu. Será muito bom para o Brasil se tivermos uma radiografia completa. Até para que se compreenda se em algum momento o governo entendeu que cometeu erros e corrigiu. Ou se continua na mesma toada, cometendo os mesmos erros.
— O ex-ministro Pazuello é um general da ativa. O governo encomendou a fabricação de cloroquina ao Exército. No episódio do colapso de Manaus, a pasta da Saúde recomendou o kit-covid, com cloroquina, a hospitais que precisavam de oxigênio. Acha que a investigação da CPI pode envolver o Exército? Creio que o Exército não será envolvido como instituição. Mas os gestores que tomaram decisões erradas sim. É preciso entender o que foi feito, qual foi a motivação, quem assumiu essas decisões. Isso será importante para definir responsabilidades.
— O Tribunal de Contas da União já apura o salto na fabricação de cloroquina nos laboratórios do Exército. Essa documentação pode ser requisitada? Sim, todo esse material deve ser requisitado. Pode-se requisitar também dados sobre eventuais empréstimos em condições diferenciadas para fabricantes desse medicamento. Temos notícia desse tipo de procedimento.
— Acha que o governo pode reunir na CPI uma tropa capaz de inibir a investigação? Em regra, não temos no Senado uma situação de domínio do governo. A base do governo é pequena. Há senadores independentes e da oposição. Creio que a CPI terá um quórum independente. O governo não terá a mesma margem de intervenção que teve em CPIs anteriores.
— Ao reagir à ordem de Luís Roberto Barroso para que o Senado instale a CPI da Covid, Bolsonaro misturou as estações. Insinuou que o ministro deveria mandar o Senado retirar da gaveta os pedidos de impeachment contra seus colegas de Supremo -uma atribuição do presidente do Senado. Lembro que o senhor é defensor da chamada CPI da Lava Toga, que empacou. O que achou da reação de Bolsonaro? O presidente tem que migrar da fantasia que utiliza para estimular apoiadores nas redes sociais para a realidade. Na vida real, o presidente trabalhou contra os pedidos de impeachment de ministros do Supremo e a CPI da Lava Toga. Fez isso diretamente e por intermédio do seu filho Zero Um. No contato com os seguidores no mundo virtual, Bolsonaro ruge como um leão para o Supremo. Na vida real, mia como um gatinho.
— O trabalho do senador Flávio Bolsonaro para blindar ministros do Supremo foi feito às claras? Ele trabalhou contra a CPI da Lava Toga abertamente, em reuniões no Senado. Os ex-senadores Major Olímpio e Juíza Selma falaram abertamente sobre as abordagens que sofreram.
— Participou de alguma dessas reuniões? Sim. Participei de uma reunião em que o Flávio Bolsonaro se posicionou contra a CPI de forma aberta e ostensiva. Foi contrário à minha posição, que defendia a CPI.
— Flávio Bolsonaro interveio quando seus problemas no inquérito sobre a rachadinha e o operador Fabrício Queiroz ficaram mais agudos? Isso. Participei de reunião na Presidência do Senado, com vários senadores. E ele fez a manifestação dele, contrária à CPI. Acho que foi uma das primeiras vezes que ouvi a voz dele. Ele não é muito participativo. Disse na reunião que não seria conveniente dar sequência a uma CPI que envolveria ministros do STF e do STJ porque aquilo poderia prejudicar o governo na fase inicial.
— Essa CPI da Toga morreu? Ela está na gaveta. O Davi Alcolumbre [ex-presidente do Senado] usou uma estratégia para tirar das costas dele a decisão. Jogou para a Comissão de Constituição e Justiça, com previsão de recurso para o plenário. Nada disso seria necessário. A decisão é simples e automática, como o ministro Barroso determinou agora no caso da CPI da Covid, reproduzindo a jurisprudência do Supremo sobre essa matéria, que é pacífica. Se estão atendidos os requisitos constitucionais, deve-se instalar a CPI. Não tem votação em CCJ nem no plenário. É preciso apenas assegurar o direito da minoria.
— Acha que essa CPI da Lava Toga pode ser ressuscitada? Seria ótimo se essa mudança retórica no entendimento do presidente impulsionasse a CPI. Mas creio que esse movimento do Bolsonaro ficará na internet, não chegará à vida real.
Por Josias de Souza
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