sexta-feira, 23 de abril de 2021

Em defesa da Lava Jato, Barroso atacou até a liberdade de imprensa


Gilmar Mendes: ministro foi um dos alvos das grosserias gratuitas de Roberto Barroso, cujo voto versou
sobre matéria que não estava em pauta Imagem: Agência STF

O bolsonarismo tem suas teorias conspiratórias. O ministro Roberto Barroso também. Segundo a narrativa que inventou, o hackeamento que levou luz aos porões da Lava Jato é parte da reação dos corruptos. E sugeriu, o que também não cabe a um juiz, que existe um esquema organizado de financiamento por trás dos hackers. Disse:

"No avanço do enfrentamento da corrupção, verificou-se uma imensa reação da corrupção. Reagiu com vigor e ousadia. O meio que escolheu foi o hackeamento criminoso dos celulares de todos os que ousaram enfrentá-la. Um dia se saberá quem bancou essa empreitada criminosa. 'Porque nada há encoberto que não haja de se revelar nem oculto que não se haja de saber' (Mateus 10, 26). A partir da invasão criminosa de privacidade, passou-se a vazar a conta-gotas o produto criminoso do hackeamento para que os criminosos se apresentassem como vítimas".

Nesse ponto, Barroso ofende o jornalismo e todos aqueles que produziram reportagens, rigorosamente apuradas, a partir de material entregue por fonte anônima ao The Intercept Brasil. Com todas as vênias, digo: "vazar a conta-gotas uma ova"! O ministro pode não ler as peças processuais sobre as quais vota, mas jornalistas dignos de sua profissão apuram antes de publicar trechos de conversas.

Cada uma das reportagens da Vaza-Jato foi acompanhada de apuração para verificar se os fatos a que os diálogos aludiam realmente tinham acontecido. Isso demanda tempo. Mais: ele desconhece o formato dos arquivos e, pois, não sabe quão trabalhoso pode ser distinguir questões que têm relevância pública daquelas que não têm. Saiba, senhor ministro: conversas pessoais, que não diziam respeito ao interesse público, não vieram a... público.

A propósito: por que o mesmo Barroso nunca se insurgiu contra o vazamento, também criminoso, de investigações sigilosas? Crime talvez mais grave porque praticado por quem tem o dever do sigilo. Nos dois casos, tendo a informação, o papel da imprensa é publicar.

O ministro apela a São Mateus. Não sei se já se prepara para os tempos vindouros no Supremo. Mas, em relação à Lava Jato, faço também minhas as palavras de Mateus que ele fez dele: "Porque nada há encoberto que não haja de se revelar nem oculto que não se haja de saber".

COMO? ILICITAMENTE DIVULGADAS?

Ora vejam...

Parece que, estivéssemos os jornalistas sob o escrutínio único de Barroso, também iríamos em cana. Disse:
"E, claro, nas conversas privadas, ilicitamente divulgadas, encontraram pecadilhos, fragilidades humanas, maledicências. E, num show de hipocrisia, muitos se mostraram horrorizados com aquilo a que indevidamente tiveram acesso: gente cuja reputação não resistiria a meia hora de vazamentos de suas conversas privadas. Note-se bem: não vazou a existência de uma prova fabricada, falsificada ou do propósito de se condenar, mesmo que sem prova alguma, o que naturalmente seria muito grave. Vazou que juiz e membros do ministério público conversavam".

Como? As conversas foram ilicitamente divulgadas? Barroso deve estar confundindo. Ilícita foi a gravação da conversa da então presidente Dilma Rousseff com Lula. Ilícita foi a divulgação do diálogo. A publicação de conversas entre os procuradores e de Deltan Dallagnol com Moro é lícita, assegurada pela liberdade de imprensa, garantida nos Artigos 5º e 220 da Constituição.

Todas as espetaculares ilegalidades e impropriedades da Lava Jato ficaram mais do que evidenciadas pelas reportagens da Vaza Jato. Barroso expôs os critérios do que considera apenas "pecadilhos"...

Jamais perca de vista, leitor, uma questão. Nada disso era matéria daquele julgamento.

MÃOS LIMPAS
O ministro resolveu comparar a Lava Jato com as Mãos Limpas, na Itália, e afirmou:
"Quem acompanhou o que aconteceu na Itália conhece o filme da reação da corrupção:
1: mudança na legislação ou na jurisprudência;
2: demonização de procuradores e juízes;
3: tentativa de sequestro da narrativa e de cooptação da imprensa par mudar os fatos e recontar a história."

Ainda que o ministro estivesse certo, faltou um quarto item na sua lista. Refresco a sua memória:
4: Itália: Silvio Berlusconi; Brasil: Jair Bolsonaro

CHUTES NO TORNOZELO
O ministro havia distribuído alguns chutes no tornozelo, em seu voto, como quem falasse da sede da moralidade para os imorais. É compreensível. Como não leu as peças processuais, segundo ele mesmo, mas votava a respeito, restou-lhe fazer, então, a dissertação contra a corrupção.

As coisas ficam mais fáceis assim. Não havia um Lula condenado sem provas em seu voto. Havia a sua determinação pessoal de lutar contra a corrupção, alinhado com a Lava Jato. Na sua ordem de considerações, pessoas não foram condenadas sem provas, não houve prisões preventivas e conduções coercitivas arbitrárias, jamais uma delação se confundiu com conluio.

O discurso de Barroso teria feito um sucesso imenso durante a Revolução Cultural Chinesa, por exemplo. Até porque abriu sua intervenção exaltando o número de condenados. Não serei eu a lembrar ao ministro que condenação não necessariamente culpa; absolvição não é necessariamente inocência; processos em massa não são necessariamente justiça.

Até porque o "paciente", como eles dizem, em favor de quem se impetrou o habeas corpus ficou 580 dias preso, condenado por um juiz incompetente e suspeito. E com uma sentença sem prova. Renovo aqui o convite para o ministro tentar encontrá-la na sentença.

CANELADAS
Roberto Barroso deveria pedir desculpas a Ricardo Lewandowski, a Gilmar Mendes e aos demais ministros.

Diante da defesa incondicional da Lava Jato e da sugestão de que aquela própria sessão poderia ser parte de uma conspiração contra a força-tarefa, Lewandowski reagiu com lhaneza. Lembrou que opor-se aos métodos da força-tarefa não implicava ser conivente com a corrupção. Trouxe à luz os óbvios prejuízos à economia. Barroso tentou colocar palavras da boca do colega:
"Vossa excelência acha, então, que o problema foi o enfrentamento da corrupção e não a corrupção?"

Mais adiante, num debate sobre a licitude das provas, outra canelada:
"Então o crime compensa para Vossa excelência",

O embate com Gilmar Mendes evidenciou a disposição para o confronto. Este respondia a críticas de Barroso sobre o encaminhamento de votações na Segunda Turma. Barroso afirmou que houve um conflito entre o relator e a turma, seja lá o que isso queira dizer. Mendes reagiu:
"Também eu quero aprender essa fórmula processual"

E Barroso:
"A fórmula processual é: se os dois órgãos têm o mesmo nível hierárquico, um não pode atropelar o outro".

E Gilmar:
"Depois me indique...

Barroso não deixou que terminasse a frase:
"Eu estou argumentando juridicamente. Não precisa vir com grosseria".

Acabava de falar o ministro que pouco antes havia dito a Lewandowski:
"Então o crime compensa para Vossa Excelência".

CONCLUINDO
Lamento ter de constatar que Barroso não participou da sessão com o objetivo de votar o que estava em pauta. Sabia que se alinharia com o lado perdedor. Também não tentou convencer os pares. Manifestou-se como um cruzado na Lava Jato. E deixou claro que, nessa condição, nem os processos, que ele confessou não ter lido, importam. Só a missão.

Ministros julgam processos. Os paladinos ou fundam uma seita ou migram para a política.

Ouviu-se Gilmar, à derradeira, dizer para Barosso: "Perdeu",

Perdeu. E não foi apenas a votação.

Por Reinaldo Azevedo

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