É como se os 212 milhões de brasileiros estivessem num avião em queda livre, prestes a se espatifar no chão. Levando-se em consideração o esforço que o piloto da aeronave realiza para apatifar a cabine de comando, "espatifar" é o termo apropriado.
Para mais de 350 mil mortos por covid o avião já se espatifou. A tragédia alcançará milhares de outras almas. Simultaneamente, Bolsonaro converte sua inépcia num processo de apatifamento da Presidência. Deu para chamar rival de "patife".
Quando o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, arrastou o bolsonarismo para dentro de um inquérito sobre notícias falsas, Bolsonaro abespinhou-se: "Acabou, porra!" Era engano. Estava apenas começando. Ou, por outra, tratava-se de uma continuidade. Bolsonaro continuava sendo Bolsonaro.
Quem tem muitos calos não deveria meter-se em apertos. Mas o capitão não sabe desfazer as crises que faz. Tornou-se um estorvo para a aquisição de vacinas, retardando as compras. Há mais braços por imunizar do que doses disponíveis.
Em consequência, o vírus se desdobra em novas estirpes. E os infectados puxam para o alto a curva dos mortos. Tropeçando em cadáveres, governadores e prefeitos arrostam o desgaste de decretar medidas restritivas que estão sempre muitos passos atrás da taxa de contágio. Retardam o lockdown.
Bolsonaro não inventou a crise sanitária. Mas mostrou aos brasileiros que pior do que uma crise, só duas crises. Em vez de administrar a "gripezinha" que estava no "finalzinho", preferiu tratar a segunda onda como "conversinha". Deu no que está dando.
Com a popularidade em queda, o capitão dedica-se em tempo integral a colocar a culpa nos outros. "Dá para admitir no Brasil essa política de lockdwon feche tudo? Toque de recolher?", indagou neste sábado.
Para Bolsonaro, "tudo tem um limite", exceto o cinismo. "Eu e todo o meu governo estamos ao lado do povo. Todos os 23 ministérios estão ao lado do povo. Não abusem da paciência do povo brasileiro."
Bolsonaro elevou o tom da crítica ao governador de São Paulo. A exemplo do presidente, João Doria politiza a pandemia. A diferença é que o governador frequenta a conjuntura como provedor das vacinas do Instituto Butantan. Oito em cada dez brasileiros vacinados receberam doses de CoronaVac —"a vacina chinesa do Doria", que a União não compraria.
"Parece que esses caras querem —como esse patife de São Paulo quer— quebrar o estado, quebrar o Brasil para depois apontar um responsável. É coisa de patife, que é esse cara que está em São Paulo e que usou o meu nome para se eleger."
Alguma coisa voltou a subir à cabeça do capitão. Nada que se pareça com sensatez. Na antevéspera, Bolsonaro havia acusado o ministro Luís Roberto Barroso de fazer "politicalha" ao determinar ao Senado que instale a CPI da Covid.
Aos poucos, a usina de crises do Planalto vai alcançando a autossuficiência. Bolsonaro fornece matéria-prima para a CPI, ele mesmo desarticula o governismo no Senado, ele mesmo força o Supremo a apressar a conversão da liminar de Barroso em veredicto formal da Corte.
Apatifar é um verbo pouco usado. Significa tornar-se um patife, virar um canalha, aviltar-se. Somando-se à incúria presidencial o linguajar chulo de Bolsonaro, o resultado é a conversão da Presidência numa patifaria. Quem não consegue presidir a própria língua não pode presidir o país.
Por Josias de Souza
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