Mais de um milhão de brasileiros infectados e 50 mil mortos pela Covid-19, economia nocauteada, ilicitudes eleitorais e outras na mira policial-judicial, assombrações ressuscitadas com a prisão de Fabrício de Queiroz. Apavorantes para o presidente Jair Bolsonaro – que passou a ouvir com maior estridência os ecos de cassação e impeachment –, os últimos dias fazem saltar aos olhos as aberrações de um governo chefiado por um gerador de crises incansável, que só se preocupa com o seu clã e se nega a assumir suas responsabilidades. “Não vão botar no meu colo essa conta.”
Fruto de uma campanha eleitoral que só alcançou sucesso por pegar carona nos resultados da Lava-Jato e no antipetismo, usando sistematicamente todos os artifícios das redes – legais ou não – para bater e abater o inimigo, o eleito achou por bem repetir a tática no governo. De ódio em ódio passou a falar só para um nicho, jogando no lixo quem apostou nele, mas não no extremado besteirol de terraplanistas.
Nada agregou e afastou muitos. Nada fez e muito destruiu.
Desde que se sentou na cadeira, que ele disse ser de criptonita ao se comparar com super-homem, passou a culpar os outros por qualquer revés. E o mundo todo por conspirar contra ele.
Se a economia engripa, o problema é o Paulo Guedes, cujo discurso liberal vitorioso na campanha agora arrepia o presidente. Se o contágio do coronavírus e a depressão no emprego continuam a recrudescer, os governadores e prefeitos são os culpados, como se a decisão do Supremo de garantir a autonomia federativa excluísse a União de combater a pandemia.
O presidente não se cansa de berrar que a conta não cairá no seu colo. Como se possível fosse retirá-lo da fatura depois de fazer pouco da doença – “uma “gripezinha” -, de demitir dois ministros da Saúde que se opunham ao negacionismo científico e à cloroquina. De tentar maquiar os números de mortes – “não podem passar de mil por dia” – e de duvidar da lotação dos hospitais, incitando os seus a invadi-los para fotografar leitos vazios.
No reaparecimento de Queiroz, preso em Atibaia na casa do criminalista Frederick Wassef, advogado do filho 01, Flávio, e do próprio presidente, Bolsonaro repetiu o script de atirar a conta para longe de seu colo.
A afirmação feita na porta do Alvorada há alguns meses de que Wassef o representava no caso da facada de Adélio Bispo agora é negada com veemência. Sobre o amigo Queiroz, Bolsonaro tergiversa. Quando a pendenga da “rachadinha” estourou, entre a eleição e a posse, reconheceu a amizade com o ex-companheiro de armas, mas disse que não falava com ele “há tempos”, frase que repetiu quando o sumiço virou meme nas redes.
Eleito com quase 58 milhões de votos, Bolsonaro passou os quase 18 meses de seu mandato desconstruindo. Encantado com o lustro de seu umbigo, queimou cedo demais o cacife eleitoral que tinha, implodiu seus próprios alicerces.
Detonou tudo o que via à frente sem ter nada para pôr no lugar.
Desmontou o Ministério da Saúde em plena pandemia e o da Educação. Bombardeou os dados de emprego do IBGE e os de desmatamento da Amazônia aferidos pelo Inpe. Incentivou desmate, invasão de terras indígenas e garimpo ilegal. Defenestrou discordantes do Ibama, incluindo o fiscal que o multara por pesca proibida na Estação Ecológica de Tamoios, em Angra. Um dos primeiros da série de atos em que um incômodo particular se impôs em detrimento do interesse público.
Prática recorrente escancarada no dia a dia do governo. A vexaminosa reunião ministerial de abril é prova cabal disso. Nela, Bolsonaro confessa, aos berros, que iria interferir na “segurança”, leia-se, Polícia Federal, para proteger sua família e amigos.
O ex Lula, santificado por fiéis de uma esquerda paquidérmica, consagrou a frase “eu não sabia” na tentativa de se livrar da roubalheira patrocinada pelo seu governo. Bolsonaro, mito de uma direita ignóbil que envergonha os verdadeiros conservadores, tenta arremessar para longe de si a conta contraída em apenas um terço de mandato, mas com peso para expurgá-lo.
Lula foi parar na cadeia, está em liberdade por concessão judicial. Bolsonaro, que prometia dizimar a velha política e a corrupção, faz acordos cada vez mais elásticos com a banda podre do Centrão. E até com o diabo para proteger os rebentos.
Alegar ignorância ou jogar a culpa dos pecados nos outros são truques comuns. Tão manjados que não enganam mais ninguém. A conta é pesada e não há clima para terceirizá-la. Muito menos para a pendura.
Por Mary Zaidan
Nenhum comentário:
Postar um comentário