A visão de Hamilton Mourão, vice-presidente da República, sobre o que é democracia é tão seletiva como a que ele tinha sobre "disciplina" quando general da ativa.
Em artigo publicado no Estadão, o general desqualificou as manifestações de protesto contra o governo de Jair Bolsonaro, reduzindo-as à baderna, como se o comportamento marginal de uns poucos fosse a expressão da indignação de muitos.
Parece que o vice-presidente se reserva o direito de escolher quais ilegalidades podem e quais não podem ser praticadas. Aquelas que se dão no seu campo ideológico ou na sua área de interesse são relegadas à irrelevância; já as do terreno adversário assumem dimensão apocalíptica.
Não me estranha que tal reação venha da pena de quem integra um governo que, segundo define a Lei de Segurança Nacional, pode ser classificado de subversivo sem que, para tanto, seja necessário interpretá-la. Basta a sua literalidade.
Mourão se lança contra os protestos de rua, liderados pelos chamados "Antifas" -- síncope de "antifascistas" --, tratando-os nestes termos:
"As cenas de violência, depredação e desrespeito que tomaram as manchetes e telas nestes dias não podem ser entendidas como manifestações em defesa da democracia, nem confundidas com outras legítimas, enquanto expressões de pensamento e dissenso, essenciais para o debate que a ela dá vida. Desde quando, vigendo normalmente, ela precisa ser defendida por faces mascaradas, roupas negras, palavras de ordem, barras de ferro e armas brancas?"
Boa parte estava com as máscaras da prudência, senhor general, no país em que hoje o coronavírus mais mata. Há dias, também mascarado, o general que responde pelo Ministério da Saúde, participou de uma manifestação de fascitoides que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo — ato, diga-se, prestigiado pelo próprio presidente da República.
E o senhor ficou calado. Como calado ficou quando, no dia 22 de abril, a seu lado, o presidente da República explicitou com todas as letras que seu incentivo ao armamento da população tem como horizonte uma guerra civil. O senhor é vice de um presidente subversivo e ousa tomar a parte mínima pelo todo, classificando de baderneiros os que defendem a democracia?
Articulistas, às vezes, buscam em citações o argumento de autoridade. Assim, o senhor citou Thomas Jefferson: "Toda diferença de opinião não é uma diferença de princípios". A tradução é ruim porque dá a entender que inexiste diferença de opinião que expresse também diferença de princípio. E é claro que existe. Em Jefferson, no original: "But every difference of opinion, is not a difference of principle. We have called by different names brethren of the same principle. We are all republicans: we are all federalists."
Fica melhor assim: "Nem toda diferença de opinião é uma diferença de princípio. Temos chamado por nome diferentes irmãos de mesmos princípios. Nós somos todos republicanos. Nós somos todos federalistas" (Jefferson's First Inaugural Address).
Com a tradução correta, Jefferson e o senhor têm razão. Mas vamos lá, general. Se, numa democracia, há quem pense que se deve recorrer à violência e ao quebra-quebra para resolver uma diferença, suponho que o senhor tem, com tal pessoa, uma diferença de opinião e de princípio, não? Eu tenho. Na democracia, a violência como expressão política é moralmente injustificável.
Mas cadê suas críticas, general, aos fascistoides que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo, com o aplauso do presidente da República? O mal citado Jefferson vale para esse caso: teria o senhor com eles mera diferença de opinião, mas não de princípio? Emular rituais da Kan Klux Klan em frente ao Supremo traduz diferença de opinião, mas não de princípio; de princípio, mas não de opinião? Nem de opinião nem de princípio?
Indaga o general:
"É lícito usar crimes para defender a democracia? Qual ameaça às instituições no Brasil autoriza a ruptura da ordem legal e social? Por acaso se supõe que assim será feito algum tipo de justiça?"
A resposta, obviamente, é não. Mas cabe a pergunta: qual ameaça às instituições deve ser tolerada, senhor general, pelos cidadãos, especialmente quando elas trazem a assinatura de autoridades?
De uma evidência, senhor vice-presidente, vocês não terão como fugir porque a história se faz a céu aberto: baderneiros se infiltram, sim, entre manifestantes que têm, entre si, diferenças de opinião, mas que comungam dos mesmos princípios: a democracia. Já os que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo, os que admitem armar a população para fazer correr o sangue do povo brasileiro e os que ameaçam as instituições com golpes atacam, com suas opiniões — e práticas — os princípios democráticos. E estes estão no seu campo ideológico.
À patuscada da extrema direita, o senhor classifica candidamente de "exageros retóricos impensadamente lançados contra as instituições do Congresso e do Supremo Tribunal Federal". Esqueceu-se, claro, de lembrar que contam com o apoio do presidente da República e que são admirados, do alto, num helicóptero militar que sobrevoa a Praça dos Três Poderes, pelo chefe da nação e pelo general que responde pelo Ministério da Defesa.
Ademais, senhor vice-presidente, não fosse essa violência marginal, que tem de ser combatida, sim, qual seria o tema do artigo? O senhor aplaudiria o que foram às ruas defender a democracia, a Constituição e o Estado de direito, na contramão de um presidente que os depreda ao prestigiar atos golpistas?
O que é, general? Não tendo esperança de controlar seus radicais, o senhor pretende controlar os alheios? Na hipótese, claro!, de que esses ditos radicais entre os "antifas" não sejam infiltrados. Eu digo: o lugar de quem promove quebra-quebra é a cadeia. O senhor tem a coragem de dizer o mesmo sobre quem promove golpe de estado?
Ou será que, nesse caso, temos uma diferença que não é só de opinião, mas também de princípio?
Por Reinaldo Azevedo
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