Augusto Aras, procurador-geral da República, viu-se obrigado a divulgar uma nota, que tem um quê de ridículo. Lá está escrito: "A Constituição não admite intervenção militar. Ademais, as instituições funcionam normalmente. Os Poderes são harmônicos e independentes entre si. Cada um deles há de praticar a autocontenção para que não se venha a contribuir para uma crise institucional. Conflitos entre Poderes constituídos, associados a uma calamidade pública e a outros fatores sociais concomitantes, podem culminar em desordem social."
O trololó sobre o papel dos Poderes, a autocontenção e o risco da desordem é só gordura retórica. O que interessa é a afirmação: "A Constituição não admite intervenção militar".
Ah, bom! Não admite mesmo. Se admitisse, os militares é que seriam os senhores da Constituição, não a Constituição a senhora de todos, inclusive dos militares. E por que a reiteração do óbvio?
Porque na segunda, no excelente "Conversa com Bial" -- o jornalista conseguiu o equilíbrio perfeito entre a TV e a Internet --, o doutor falou bobagens múltiplas e combinadas ao responder a esta pergunta sobre o Artigo 142 da Constituição:
"Na sua visão de jurista, o artigo legitima uma intervenção militar em caso de conflito entre Poderes?"
Bial é generoso. Aras não é jurista. A resposta que vai a seguir já é a sua maior contribuição — negativa — na área.
Disse o procurador-geral, num "enrolation" que flerta com a bagunça armada:
"Vamos começar do ponto de vista histórico, não é? Do ponto de vista histórico, nós temos algumas passagens que me ocorrem neste instante de momentos em que Poderes constituídos se recusaram a cumprir decisão do Supremo Tribunal Federal, e as Forças Armadas estavam ali como garantes da Constituição e não se moveram, inclusive porque, salvo engano, entendiam que o princípio da separação dos Poderes estabelece o limite da competência de cada Poder. Então nós podemos lembrar de Hermes Lima, em 22... O Supremo Tribunal Federal aplicou uma sanção disciplinar contra um determinado agente público, e essa sanção não foi cumprida. Mais recentemente, o presidente do Senado, Renan Calheiros, se negou a cumprir uma decisão do Supremo, e, ao final, o pleno do Supremo revogou a decisão monocrática do ministro prolator. Isso quer dizer que as Forças Armadas, no plano constitucional, atuam como garantes da Constituição. Quando o Artigo 142 estabelece que as Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia [tem de se dar] nos limites da competência de cada Poder. Um Poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição. Porque, se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir a competência dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes a ação efetiva de qualquer natureza".
Bem lida, a resposta de Aras menos flerta com a intervenção militar do que com a desordem. A rigor, ele está afirmando que decisões do Supremo já foram ignoradas antes sem consequências. É claro que funciona como um mau aceno a Jair Bolsonaro. Caso viesse a desobedecer a uma decisão do STF, então, o presidente não estaria inovando.
O Artigo 142 é notavelmente mal redigido e tem de ser reescrito. Mas é mentira que ele defina os militares como garantidores da Constituição. Lá está escrito outra coisa:
"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Onde está escrito que as Forças Armadas são a garantia da Constituição? Elas garantem, isto sim, a incolumidade dos Três Poderes constitucionais e de suas prerrogativas contra forças exógenas que possam ameaçá-los. Mas não é o Poder dos Poderes ou o "garante", como diz o procurador-geral. Isso é invencionice.
Fosse como ele sugeriu na entrevista a Bial ou quer o advogado Ives Gandra Martins, os militares avaliariam as decisões de cada Poder e, a seu singular juízo, decidiriam a sua validade ou não. Fosse como ele diz, em vez de ser a Constituição a definir, como faz, as atribuições das Forças Armadas, seriam as Forças Armadas a definir o alcance da Constituição, o que elas não fazem.
A Carta não dá às Forças Armadas o arbítrio para decidir impasses entre Poderes. O texto se refere, reitere-se, a ameaças externas a eles, tanto é que, em seguida, ressalta-se também o papel dos militares de garantidores da lei e da ordem, segundo regulamentação legal. E a pedido dos Poderes.
Impasse entre os Poderes, doutor, é resolvido pela Constituição. E o intérprete último da Constituição é o Supremo. O resto é golpe.
Aras achou que seu flerte com a desordem e com a intervenção armada passaria incólume. Não passou, e ele teve de desdizer o dito. De novo! É bom que se cuide. A Constituição que define o papel dos militares, não o contrário, também define o do procurador-geral. E a Lei 1.079, a do impeachment, que tipifica os crimes de responsabilidade do presidente da República, também específica os do chefe do Ministério Público. Que também pode ser impichado.
Por Reinaldo Azevedo
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