Esgoto a céu aberto no bairro Terra Firme, em Belém (PA) Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress |
Em vez de plantar, o Brasil deveria ter enterrado obras. O país arranhou o céu, mas não foi capaz de soterrar manilhas. Levantou prédios e pontes, mas esqueceu do sistema de escoamento das fezes. Virou a nona economia do mundo. E convive com os sem-esgoto, uma legião de mais de 100 milhões de pessoas.
Repetindo: metade da população brasileira não dispõe de privada conectada a uma rede de esgoto. Algo como 35 milhões de patrícios amargam também a ausência de torneira com água limpa em casa. Nesse mundo, isolamento social é comparável à crença do cego no arco-íris. Lavar as mãos é um sonho. Álcool em gel é utopia.
Há três meses, em 26 de março, Jair Bolsonaro conseguiu enxergar poderes curativos no excremento que corre a céu aberto. Previu que o coronavírus não prosperaria no Brasil. "Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele." A pandemia produzira, até então, 2.915 mortos.
Nesta quarta-feira (24), o número de pessoas que o vírus arrastou para a cova era bem maior: 53.874, noves fora a subnotificação. Foi contra esse pano de fundo fúnebre que o Senado aprovou, com séculos de atraso, um marco legal para o setor do saneamento. Como já passou pela Câmara, o projeto vai à sanção de Bolsonaro.
Não se imagina que o presidente se atreva a vetar o projeto. Até porque, a despeito do seu negacionismo crônico, Bolsonaro já deve ter notado que esgoto não é vacina contra o coronavírus. Abre-se, então, a perspectiva de que investidores privados se animem a aplicar em saneamento básico um dinheiro que o Estado não possui.
Se tudo correr como planejado, até o ano da graça de 2033 quase todos os brasileiros terão acesso a uma rede de esgoto (90%) e água tratada na torneira (99%). Ouviram-se palmas e declarações otimistas. É melhor guardar os fogos. É muito cedo para celebrações.
Por coincidência, estou relendo o livro "The Year 1000", dos ingleses Robert Lacey e Danny Danziger. Foi publicado no Brasil pela Editora Campus, sob o título "O Ano 1000 - A Vida no Início do Primeiro Milênio".
Trata-se de um magnífico retrato do cotidiano de uma Inglaterra em que garfo era coisa por inventar e chifre de animal era usado como copo. Uma Inglaterra com pouco mais de um milhão de habitantes, algo como três vezes menos do que a população de Brasília.
A leitura é leve e útil. Conduz à percepção de que parte da realidade dessa Inglaterra remota (a pior parte) está desgraçadamente presente em nacos primitivos do Brasil de 2020.
O livro conta que o grosso das pessoas vivia em casas modestas. Estrutura de madeira, teto de junco, chão de terra batida, paredes de pau-a-pique. Uma mistura de argila, palha e esterco de vaca dava coesão ao entrelaçado de galhos.
A latrina ficava próxima à porta dos fundos. Era curta a distância percorrida pelas moscas desde as dejeções até os alimentos. A ausência de assepsia transformava corpos em hospedarias de parasitas, a solitária entre eles.
Submetidos a um cotidiano assim, rude, os ingleses de outrora se apegavam aos santos. Atribuíam a eles poderes curativos. Tratavam as doenças com terapias que combinavam remédios populares e fé extremada.
Contra as perturbações do intestino, por exemplo, recomendava-se: "procurar uma sarça [planta da família das rosáceas], escolher a raiz mais nova, cortar nove lascas com a mão esquerda; entoar três vezes o salmo 56 e nove vezes o padre-nosso; pegar a artemísia e a perpétua [arbustos da família das compostas] e ferver em leite, junto com a sarça; beber uma tigela com a mistura; jejuar à noite; se necessário, repetir a operação por até duas vezes".
Nada mais parecido com a Europa da virada do milênio do que certos pedaços do mapa do Brasil. A pandemia empurrou para dentro dos gabinetes de Brasília essa realidade surreal.
Parlamentares e autoridades como o ministro Paulo Guedes (Economia) descobriram os brasileiros "invisíveis". Na verdade, eles sempre foram muito palpáveis. O país é que se fingia de cego.
As 182 páginas de "O Ano 1000 - A Vida no Início do Primeiro Milênio" falam de um passado que intima o Brasil a sentir vergonha do seu presente. Há muito por fazer. O caminho é longo. O primeiro passo é perceber que o único lugar onde os aplausos e o otimismo vêm antes do trabalho é o dicionário.
Por Josias de Souza
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