O Ministério Público Estadual do Rio entrou com uma Reclamação no Supremo para que seja declarada sem efeito a decisão da 3º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio que, por dois votos a um, decidiu conferir foro especial para o senador Flávio Bolsonaro, retirando o caso das mãos do juiz Flávio Itabaiana, titular 27ª Vara Criminal da Capital, e mandando-o para o próprio TJ. Tiveram esse entendimento os desembargadores Paulo Rangel e Mônica Toledo. Suimei Cavalieri foi voto vencido: para ela, não deveria haver mudança de foro.
Uma nota: a Reclamação é um instrumento que pede que o STF chame para si a competência sobre matéria já decidida pelo próprio tribunal.
Também o partido Rede Sustentabilidade foi ao Supremo — nesse caso, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. O relator desse recurso já foi sorteado: é o ministro Celso de Mello, o que deve ter deixando o bolsonarismo de orelha em pé. Ele é também o relator do inquérito que apura se o presidente Jair Bolsonaro tentou fazer uma intervenção indevida na PF buscando resguardar seu próprio interesse e de aliados. A investigação foi pedida pela Procuradoria Geral da República depois que Sergio Moro, ex-ministro da Justiça, acusou o presidente.
Como as duas ações tratam da mesma matéria, é certo que a Reclamação também deve ser distribuída a Celso de Mello. E, parece-me, será essa a ação que o ministro vai julgar. Do ponto de vista técnico, não vejo como a questão possa ser matéria de ADI. Não se trata de contestar, no caso, a constitucionalidade de uma lei ou de parte dela. A Reclamação serve justamente para que o tribunal acuse que uma competência sua não foi respeitada, como é o caso. O mais provável e que Mello não reconheça a ação da Rede e julgue apenas a do Ministério Público do Rio.
Pois é... Lá vai o ministro entrar na mira das abelhas assassinas que só produzem fel nas redes bolsonaristas. O voto dado pelos dois desembargadores do Rio é tão esdrúxulo, tão absolutamente sem sentido — ao menos segundo jurisprudência do tribunal — que, suponho, o ministro tomará a sua decisão quase que movido pelo tédio. O que espanta é que os dois desembargadores tenham se prestado a tal papel.
Desde 1999, jurisprudência do Supremo decidiu que aqueles que perdem o cargo que lhes garantia o foro especial — que pertence à função, não à pessoa — voltem para a primeira instância.
Se a coisa tivesse ficado por aí apenas, Flávio estaria agora com foro no STF, já que se tornou senador. Ocorre que, em 2018, este tribunal decidiu que "o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas".
Assim, a combinação das decisões de 1999 e de 2018 resulta no óbvio: Flávio tem de permanecer na primeira instância. Afinal:
1: ele não tem mais foro no Tribunal de Justiça porque cessou seu mandato de deputado estadual;
2: ele não tem foro no STF porque o crime que lhe atribuem foi cometido antes de ser senador.
Haveria uma única chance de a investigação contra Flávio ficar no TJ, também segundo a jurisprudência do STF: se a instrução processual já tivesse chegado ao fim, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais. Mas se está muito longe disso. O senador ainda nem é réu.
O despacho de Celso é certo como a luz do dia: vai devolver a investigação para a primeira instância. A hipótese remota é a de que o ministro entenda que caberia Recurso Especial ao STJ antes de apelar o STF. Não creio: afinal, reitere-se, o tribunal constitucional já se pronunciou a respeito.
Quem não cansa de passar vergonha nesse caso é o desembargador Rangel. Ele já defendeu em livro o fim do foro quando cessa a atividade que garante ao indivíduo tal condição. Afirma, no entanto, que, no caso de Flávio, é diferente. É mesmo? Por quê? Ah, porque ele se elegeu senador em seguida. E daí? Em que lei ou em que jurisprudência o doutor encontrou esta saída fabulosa do direito criativo?
Michel Temer, um ex-presidente, foi para a primeira instância em razão desse entendimento. Rangel e Mônica Toledo inventaram o foro perpétuo.
Era e sou da opinião de que o foro de um político deva ser aquele que lhe garante a função que ocupa, pouco importando a data do crime imputado. Mas essa posição foi derrotada no Supremo. Fim de papo! De resto, foi isso o que os bolsonaristas — e o próprio Bolsonaro — pediram nas ruas. Só não contavam que, um dia, Flávio seria vítima das suas próprias convicções, não é mesmo?
O Flávio Bolsonaro voltará para as mãos do outro Flávio, o Itabaiana.
Por Reinaldo Azevedo
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