quarta-feira, 24 de março de 2021

Sitiado, Bolsonaro agora renega o negacionismo



Finalmente uma boa notícia: O índice de desfaçatez de Bolsonaro não aumentou. Continua nos mesmos 100%. O presidente entrou nos lares dos brasileiros em horário nobre. Falou sobre a pandemia em rede nacional de rádio e TV. Enalteceu as vacinas. Solidarizou-se com as famílias dos mortos por Covid. Não atacou os governadores. Não receitou cloroquina. Expressou-se com respeito e compostura. Ou seja: Bolsonaro estava completamente fora de si.

O surgimento dessa nova cepa de Bolsonaro teve como pano de fundo um país alternativo. Um Brasil que poderia ter existido se o presidente de mostruário que apareceu para os brasileiros na noite de terça-feira fosse real. Não se sabe por quanto tempo vai durar a nova onda do presidente, mais moderada do que as anteriores. Mas o comedimento foi útil para mostrar um Brasil que poderia ter sido e que, por conta da insanidade, não foi.

Bolsonaro tranquilizou os brasileiros. Disse que 2021 será "o ano da vacinação". Será? Assegurou que as vacinas "estão garantidas". Hummmm... Vaticinou: "Ao final do ano, teremos alcançado mais de 500 milhões de doses para vacinar toda a população." Hã, hã... "Muito em breve, retomaremos nossa vida normal". Heimm?!?!? "Em poucos meses, seremos autossuficientes na produção de vacinas." Uauuu!!!!

Renegando o próprio negacionismo, Bolsonaro soou como se ambicionasse trocar o figurino de presidente pelo uniforme de Zé Gotinha. Ele se autoelogiou por ter supostamente enxergado a importância das vacinas desde o alvorecer da pandemia. Comprou a de Oxford. Entrou no consórcio Covax Facility, da OMS. Adquiriu a CoronaVac, do Butantan. Intercedeu pessoalmente junto à cúpula da Pfizer. Adicionou doses de Janssen no cesto do Programa Nacional de Imunização.

Foi encantador o passeio de Bolsonaro pelo Brasil alternativo que apresentou em rede nacional. Infelizmente a realidade ainda é o único lugar onde um país pode conseguir vacinas. Os fatos não deixam de existir porque o presidente os distorce. No mundo real, Bolsonaro nunca foi um fã das vacinas.

A coisa ficou mais nítida em agosto do ano passado. Nessa época, deflagrou uma campanha pela liberdade do brasileiro de não se vacinar. Deu de ombros para uma oferta de doses da Pfizer. Alegou que as cláusulas contratuais isentavam o laboratório de responsabilidade caso o vacinado virasse um jacaré.

Em outubro, Bolsonaro declarou que vacina só seria obrigatória para o Faísca, cachorro da família presidencial. Em novembro, festejou como vitória pessoal a morte de um voluntário dos testes conduzidos pelo Butantan. Era suicídio. Nada a ver com a CoronaVac.

Em dezembro, com a pandemia a pino, Bolsonaro insinuou que o brasileiro deveria enfrentar o vírus de peito aberto. Afinal, não haverá vacina para todos. E o Brasil precisava "deixar de ser um país de maricas". No alvorecer de 2021, declarou que "estamos vivendo um finalzinho de pandemia."

No início deste mês de março, o Bolsonaro real afirmou: "Nós temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas." Colocou a mãe no meio: "Tem idiota que pede compra de vacina. Só se for na casa da tua mãe!"

Bolsonaro exibe sua conversão cenográfica às vacinas com um atraso de quase 300 mil cadáveres. Capricha na teatralidade porque sofre algo muito parecido com um cerco. A maioria dos brasileiros (54%) reprova seu desempenho na pandemia, os governadores cobram coordenação nacional da crise sanitária, o Supremo freia suas idiossincrasias, o centrão torce o nariz para Marcelo Queiroga, o novo Pazuello.

Sitiado, Bolsonaro faz por pressão o que deixou de fazer por opção. Nesta quarta-feira, o teatro do presidente prosseguirá numa reunião estrelada pelos chefes dos poderes Legislativo e Judiciário. O problema é que, a essa altura, amargando mais de 3 mil mortes por dia, o Brasil já não tem a oportunidade de ser o que poderia ter sido sem o negacionismo do presidente. E ainda pode se tornar muito pior, porque a nova cepa de Bolsonaro é uma ficção televisiva. Sua única serventia é acordar as panelas.

Por Josias de Souza

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