A história ofereceu a Bolsonaro a rara oportunidade de presidir a crise sanitária do século. Ele preferiu trocar o figurino de líder pelo papel de estorvo. Transformou-se numa oportunidade que o coronavírus aproveitou.
No dia em que a pilha de cadáveres atingiu a constrangedora marca de 300 mil, Bolsonaro inaugurou o expediente enfeitiçado por um tipo de ilusão que a realidade não costuma perdoar num presidente débil: a ilusão de que preside.
No fim do dia, Bolsonaro foi informado de que seu destino passou a ser presidido pelo vírus. A carta do impeachment retornou ao baralho, sinalizou o presidente da Câmara, Arthur Lira, suposto aliado do governo.
Pela manhã, Bolsonaro colocou em prática um plano para atingir o objetivo estratégico de passar a impressão de que comanda. Reuniu-se no Alvorada com a cúpula da República. Anunciou a criação de um comitê anticovid.
No final do dia, o hipotético presidente da República percebeu que teria de ralar por um segundo objetivo estratégico: não cair. Discursando sobre os erros do governo na pandemia, Lira acendeu o "sinal amarelo". Avisou que "tudo tem limite".
Pressionado pelos líderes partidários, o réu que comanda a Câmara lembrou que os remédios legislativos contra o desgoverno "são conhecidos". Enfatizou: "Todos amargos." Há nas gavetas de Lira sete dezenas de pedidos de impeachment.
Na reunião matutina do Alvorada, aquela que desaguou na criação do comitê de crise, Bolsonaro desperdiçou o tempo dos convidados com idiossincrasias como o "tratamento precoce" da Covid com remédios ineficazes.
A recaída cloroquínica mostrou que Bolsonaro, especialista em virar a mesa, não havia ensaiado adequadamente o teatro de sentar à mesa para negociar. No espaço reservado aos governadores, havia apenas aliados.
Na divisão de tarefas do comitê anticovid, coube ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a tarefa de negociar com os estados. O senador organiza para a manhã de sexta-feira uma videoconferência com governadores. Sem Bolsonaro.
Na saída da reunião do Alvorada, Pacheco chamara o arranjo do comitê de "pacto nacional liderado por quem a sociedade espera que lidere, que é o senhor presidente da República, Jair Bolsonaro."
Ecoando Pacheco, Arthur Lira dissera que o comitê produziria uma unificação de discurso, "para que possamos ter rumo, coordenados com a supervisão do presidente da República, comandante em chefe do Estado brasileiro."
Horas depois, Pacheco trocava telefonemas com governadores. Era como se o vírus tivesse nomeado o comandante do Senado para o posto extraordinário de primeiro-ministro de uma República à deriva.
Simultaneamente, Lira ralhava com o governo no plenário da Câmara. "Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar", declarou Lira.
O líder do centrão acrescentou: "Não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país se, fora daqui, erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que não são muito menores do que os acertos cometidos continuarem a serem praticados."
Para quem ainda não consegue ligar o nome aos prontuários, o centrão é aquele conglomerado partidário que vendeu sua mão de obra legislativa para Lula, aproveitando o Planalto de fachada operária para cavar ótimos negócios.
É aquele mesmo grupo que foi dormir prometendo fidelidade eterna a Dilma Rousseff e acordou nos braços de Michel Temer. Dilma ficou com raiva. O centrão ficou com tudo.
Eleito chamando o centão de "escória", Bolsonaro achegou-se ao grupo em troca de proteção. Entregou cargos e verbas. Entretanto, a pilha de cadáveres começa a modificar a relação custo-benefício.
Sob influência do vírus, o mesmo centrão convida Bolsonaro a submeter a resolução dos seus dilemas sanitários à simplicidade de um semáforo quando muda de verde para amarelo, intimando o sujeito a decidir se para ou avança.
O Legislativo inaugurou um espetáculo novo. Voltou a piscar no letreiro metafórico do Congresso uma indagação que já enviou dois presidentes para casa mais cedo: "Será que termina o mandato?"
Por Josias de Souza
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