A crise sanitária mudou de patamar para Jair Bolsonaro. De franco-atirador, o presidente virou alvo. Deve-se a mudança a uma razão singela: Até outro dia, o brasileiro morria de Covid. Hoje, morre-se no Brasil de falta de vacinas. E a escassez de doses é uma incompetência que Bolsonaro não tem como terceirizar.
Há três meses, Bolsonaro dizia que a crise da "gripezinha" estava no "finalzinho". Desde então, o problemão fica cada vez mais grandão. A mortandade diária se aproxima de 2 mil. O total de mortos passa de 260 mil. Os sanitaristas estimam que logo o caos nas UTIs dividirá o noticiário com uma tragédia adicional: o colapso funerário. O Brasil está na bica de virar uma espécie de Manaus hipertrofiada.
Todos já enxergaram o novo calcanhar de vidro de Bolsonaro. Os aliados do centrão e auxiliares do Planalto aconselham o presidente a ajustar o discurso, priorizando a vida. A turma do "fique em casa" decidiu dar o troco. Como o sapo de Guimarães Rosa, governadores e prefeitos, alvos preferenciais de Bolsonaro, dão os seus pulos não por boniteza, mas por precisão. Eles precisam de socorro.
Bolsonaro, como se sabe, odeia a realidade. Mas a realidade ainda é o único lugar onde se pode adquirir vacinas. O presidente faz por pressão o que deixou de fazer por opção. Autorizados pelo Supremo Tribunal Federal, estados e municípios ameaçam comprar vacinas sem a intermediação do governo federal, a quem caberia apenas pagar a conta posteriormente.
Acossado, Bolsonaro viu-se compelido a autorizar o Ministério da Saúde a ir às compras. Em dezembro, o capitão dizia que cabia aos laboratórios cortejar o Brasil. Agora, o general Eduardo Pazuello, gênio da logística, corre atrás até da Pfizer, fabricante da vacina que faz virar jacaré. A alegação de que só agora o Congresso autorizou é apenas uma nova versão para a boa e velha conversa fiada.
Para se reposicionar em cena, Bolsonaro teria de reconhecer que seu governo caiu num buraco. O reconhecimento não resolveria todo o problema. Mas evitaria que o presidente continuasse jogando terra sobre si mesmo e em cima dos brasileiros, como voltou a fazer nos últimos dias. Na sua tradicional live das quintas-feiras, o capitão até tentou soar como um ex-negacionista. Mas foi pouco convincente.
Disse Bolsonaro: "Agora, vêm essas narrativas de que somos negacionistas, não acreditamos em vacinas, aquela história toda para boi dormir..." O negacionismo está grudado na imagem de Bolsonaro como as escamas no peixe. Seu desprezo pelas vacinas está fartamente documentado, inclusive em vídeo.
Bolsonaro declarou no ano passado que não compraria a vacina chinesa do Butantan nem com autorização da Anvisa. Refugou a vacina da Pfizer por sete valiosos meses. Fez piada com o Programa Nacional de Vacinação, declarando que, no Palácio da Alvorada, o único a se vacinar seria Faísca, o cachorro da família.
Ainda que persista, Bolsonaro terá dificuldades de se livrar da pecha de negacionista. Ela aparece de repente, do nada. Como num despacho emitido pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal. Ao ordenar ao Ministério da Saúde que financie leitos de UTI para os doentes do Piauí e de outros estados que necessitem, Rosa trocou o tom moderado por um timbre de admoestação.
"O discurso negacionista é um desserviço para a tutela da saúde pública nacional", declarou Rosa, exibindo os seus espinhos. "A omissão e a negligência com a saúde coletiva dos brasileiros têm como consequências esperadas, além das mortes que poderiam ser evitadas, o comprometimento, muitas vezes crônico, das capacidades físicas dos sobreviventes que são significativamente subtraídos em suas esferas de liberdades".
Ninguém imagina que Bolsonaro vai virar um ex-Bolsonaro. Ao contrário. Se as declarações feitas nas últimas horas serviram para alguma coisa foi para recordar que Bolsonaro, quando imprensado, torna-se ainda mais Bolsonaro. A questão é que ficou mais fácil expor a falta de nexo do discurso oficial.
O presidente defende que os "maricas" saiam às ruas para enfrentar o vírus de peito aberto. Simultaneamente, graças às suas idiossincrasias e à inépcia do general Pazuello, o governo retarda o acesso às vacinas que livrariam os afrescalhados do risco de acabar numa UTI.
Até Paulo Guedes já percebeu que Bolsonaro tornou-se um personagem ilógico. Nesta quinta-feira, o presidente declarou: "Tem idiota que pede compra de vacina. Só se for na casa da tua mãe." Horas depois, o ministro da Economia rendeu homenagens ao óbvio: "Primeiro a saúde. Sem saúde não há economia. E, da mesma forma, a vacinação em massa é o que vai nos permitir manter a economia em funcionamento."
Só os idiotas não enxergam a lógica do raciocínio de Guedes. Mas Bolsonaro, que não se considera um bobo, guia-se pela lógica de um candidato à reeleição em apuros. Vendo sua curva de popularidade decair, o capitão adula seus devotos mais radicais com um discurso eletrificado. Não é certo que vencerá a disputa presidencial de 2022. Mas já conseguiu dar ao trono uma aparência de cadeira elétrica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário