Quando um governo precário capricha na precariedade, o humor adquire vida própria. Escapa das mãos dos profissionais do ramo. Com Bolsonaro e seu elenco de apoio, o Brasil ultrapassou o estágio da caricatura. Autoconvertido num chiste planetário, o capitão tornou-se o primeiro presidente da história a enviar uma piada para uma missão no exterior. A anedota decolou de Brasília estrelada por um elenco de machões bolsonaristas, sem máscaras. Aterrissou em Israel com a aparência de uma trupe de "maricas" mascarados.
Depois da coreografia executada pelo antichanceler Ernesto Araújo e seus companheiros de viagem —meia dúzia de réus esperando para acontecer numa ação de ressarcimento de gastos ao erário— não há mais do que rir. Sumiu o degradê, desapareceram os semitons. A palhaçada tem cara de palhaçada. A empulhação ganhou hedionda nitidez.
Na pandemia, Israel tornou-se um sucesso de mostruário. Proporcionalmente, é líder mundial de vacinação. Já aplicou em mais de 50% de sua população pelo menos uma dose de vacina. O Brasil mal ultrapassou a marca de 3%. A comparação levou Bolsonaro a concluir que seu governo tem muito a desaprender com a administração de Benjamin Netanyahu.
O chiste enviou a piada a Israel para conhecer não o êxito de planejamento e logística do governo israelense, mas um spray "milagroso" anticovid. O Tribunal de Contas da União farejou na iniciativa uma nova versão da velha prática de jogar dinheiro público pela janela. E Bolsonaro injetou na pauta um extemporâneo interesse em firmar com Israel acordos "na área de ciência e tecnologia". Falou em "remédios" e "vacinas".
Não há vacinas nacionais em Israel. Injetam-se nos braços dos israelenses doses do imunizante da Pfizer. Poderia estar sendo aplicada também no Brasil. Mas o Ministério da Saúde refugou há sete meses uma partida de 70 milhões de doses. Bolsonaro avaliou que a mistura da Pfizer poderia converter brasileiros em jacarés.
Embora a ciência não estivesse no topo das preocupações de Bolsonaro, a comitiva anedótica acabou recebendo lições involuntárias de um país que leva a sério as medidas de restrições sanitárias. Numa recaída de machão, Ernesto Araújo esboçou a intenção de posar sem máscara para uma foto ao lado do colega Gabi Ashkenazi. Levou um pito do cerimonial da chancelaria israelense. Sem mimimi, Araújo afrescalhou-se rapidamente, recobrindo o rosto.
O elenco da piada foi incrivelmente bem escolhido. Ninguém da pasta da Saúde, hoje reduzida à condição de ministério de campanha. Dois representantes da Ciência e Tecnologia, cuja maior contribuição para a pandemia foi o desperdício de dinheiro público no projeto de conversão de um vermífugo chamado Annita em elixir contra o coronavírus. Um discípulo infiltrado na assessoria internacional do Planalto pelo autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Um assessor de comunicação que não se comunica. Um deputado cujo objetivo de vida é atuar como papagaio de pirata de Bolsonaro.
Tudo isso e mais o inefável, indescritível filho 03 do presidente, Eduardo Bolsonaro, uma espécie de inutilidade levada às fronteiras do paroxismo. É como se o presidente da República desejasse escancarar os próprios erros, cometendo-os em série. O Brasil não deseja salvação de um spray cloroquínico. O país deseja apenas restabelecer o seu direito a um recomeço. O reinício, conforme ensina Israel, se chama vacina.
Por Josias de Souza
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