Em política tudo é permitido, exceto deixar-se surpreender. Nas últimas semanas, Bolsonaro vinha executando uma mudança estratégica: migrava gradativamente do negacionismo para a defesa da vacinação. O movimento foi mais lento do que o avanço do coronavírus exigia.
Bolsonaro apressou o passo. Mas sua retórica chegou desacompanhada das doses de vacina necessárias para atingir a almejada imunização coletiva. Consolidou-se a impressão de que a pandemia virou um problema maior do que a capacidade do governo de resolvê-lo.
Em consequência, ocorre um gradativo deslocamento de poder do âmbito do Executivo para o Legislativo. Esse deslocamento começou a se esboçar quando Bolsonaro trocou, por pressão dos seus aliados no Congresso, um general por um médico no Ministério da Saúde.
Também o chanceler Ernesto Araújo, visto no Legislativo como estorvo para a aquisição de vacinas no exterior, virou uma demissão esperando para acontecer.
A migração ganhou maior nitidez depois que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, assumiu o papel de interlocutor dos governadores na crise sanitária.
A coisa ficou definitivamente clara no instante em que o presidente da Câmara, Arthur Lira, acendeu no plenário o que ele chamou de "sinal amarelo."
"Tudo tem limite", disse Lira, referindo-se aos erros cometidos no enfrentamento da pandemia. Num discurso escrito previamente, sem improvisos, o deputado fez questão de qualificar os equívocos: "Erros primários, erros desnecessários, erros inúteis...", ele disse.
Contra a síndrome do erro, lembrou o réu do centrão que comanda a Câmara, os remédios do Legislativo "são conhecidos" e "amargos". Alguns são "fatais", Lira realçou, como se desejasse lembrar a existência de sete dezenas de pedidos de impeachment em sua gaveta.
Bolsonaro viu-se compelido a receber Arthur Lira em seu gabinete fora da agenda. Levou o deputado até a saída do Planalto, para que os repórteres testemunhassem a cena. "Não tem problema entre nós", disse o presidente, num esforço para passar a impressão de que faz e acontece.
Os presidentes do Senado e da Câmara ocupam a boca do palco empurrados por empresários com os quais se reuniram na semana passada, em São Paulo.
Não é que Bolsonaro será arrancado do poder abruptamente. A questão é que os fatos revelam que, a despeito de permanecer no volante, Bolsonaro já não dita o rumo às forças contraditórias que gravitam ao seu redor. Em vez de governá-las, é governado por elas.
A mudança é compatível com a evolução da pandemia. Nenhum cenário pode permanecer inalterado com a presença de mais de 300 mil cadáveres na paisagem.
Por Josias de Souza
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