quinta-feira, 11 de março de 2021

Bolsonaro encena milagre da conversão à vacina



Bolsonaro passou a falar sobre seu amor pelas vacinas como se ela e ele tivessem nascido um para o outro. Agora só falta quem os apresente. Em um ano de pandemia, capitão gastou tanta energia falando sobre os problemas que não teve tempo de enfrentá-los. Não tem planos. Mas, por sorte, dispõe de um versículo do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." Com 270 mil cadáveres de atraso, Bolsonaro vive o milagre da conversão às vacinas. Agora só falta encontrar quem as forneça.

Em cerimônia organizada pelo cerimonial do Planalto em cima do joelho, Bolsonaro sancionou uma trinca de propostas aprovadas no Congresso para impulsionar a compra de vacinas. Ainda dispunha de um prazo de duas semanas para sancionar as novas leis. Não quis esperar. Poderia ter rubricado as peças no recôndito do gabinete presidencial. Preferiu os holofotes de uma solenidade pública. Num esforço para demonstrar que é um novo homem, o presidente apareceu diante das câmeras de máscara. Também as outras autoridades estavam mascaradas.

Toda conversão é uma espécie de revolução pessoal. A mais famosa começou na estrada de Damasco, no século 1 do nosso calendário, com o episódio vivido pelo soldado Saulo, um perseguidor de cristãos. De repente, do nada, Saulo foi paralisado por uma luz ofuscante. Caiu do cavalo. Ouviu uma voz vinda do céu: "Saulo, por que me persegues?" Por algum tempo, ele ficou cego, tal a claridade que o arrebatou. Assim se converteu São Paulo, um dos pilares do cristianismo.

No caso do capitão Bolsonaro, a paralisia ofuscante foi produzida por pesquisas de opinião e mensagens que chegam pelas redes sociais. Revelam que a popularidade do presidente cai na proporção direta do aumento exponencial do número de mortos por covid. O país está prestes a atingir a marca sombria de 3 mil corpos por dia. Não demora e a soma geral dos cadáveres baterá em 300 mil.


O general Eduardo Pazuello, suposto chefe da Saúde, discursou na cerimônia da conversão. "Sem a produção da Fiocruz e Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém", reconheceu o ás da logística. Há uma semana, a pasta de Pazuello estimava que 46 milhões de novas doses de vacina seriam distribuídas. Rebaixada quatro vezes, essa previsão exerce sobre a pandemia o mesmo efeito da cloroquina no tratamento da covid.

"As doses importadas, negociadas, contratadas, empenhadas por laboratórios internacionais, nós temos muita incerteza de recebê-las", lamuriou-se Pazuello, flertando com a interrupção da vacinação. "Nós estamos garantidos para março entre 22 e 25 milhões de doses, podendo chegar até 38 milhões de doses." No intervalo entre 22 e 38, há 16 milhões de razões para não dar ouvidos ao suposto ministro da Saúde.

Considerando-se que Bolsonaro informou que haverá 400 milhões de doses de vacinas no Brasil até o final do ano, pode-se prever, sem nenhuma réstia de dúvida, o seguinte: poderia acontecer de todos os brasileiros adultos serem vacinados antes do Natal, na hipótese de que não faltasse vacina. E a gestão da crise sanitária poderia virar um retumbante sucesso -desde que não fosse um fracasso. Bolsonaro seria um presidente previsível, não fosse sua imprevisibilidade.

Conversão como a do capitão, em que o sujeito é como que fulminado por um raio, sem aviso, assemelha-se a milagre. E, em tempos de pandemia, até o papa Francisco reluta em aceitar milagres. Sob Bolsonaro, "Deus está acima de todos". O livro dos livros ensina que Ele está em toda parte. Mas já não é full time. A escassez de vacinas no Brasil revela que, de maneira geral, é o demônio quem controla o setor de compras do Ministério da Saúde.

Por Josias de Souza

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