Jair Bolsonaro durante live, ao lado de Pedro Guimarães (esq), presidente da Caixa: falou em tom manso, mas o conteúdo é golpista Imagem: Reprodução |
Jair Bolsonaro decidiu, mais uma vez, entrar em choque com o Supremo e voltou, em sua live do fim do mundo, a engrolar palavras ambíguas — ou nem tanto — que ameaçam o país com uma solução de força. A palavra que define tal prática é "golpe".
De forma escancarada, incitou os descontentes com as medidas de restrição de circulação a se rebelar contra os governadores e prefeitos e se ofereceu como líder da reação: "O que o povo quer, a gente faz (...). O povo está pedindo é democracia e liberdade". Numa democracia, o governante faz o que a Constituição e as leis permitem que faça.
Por "democracia e liberdade", o presidente entende o fim de todas as medidas em curso para tentar frear a escalada da doença. Sem limites, voltou a criticar o uso de máscaras. Vamos por partes.
A ADI
O presidente anunciou que instruiu a Advocacia Geral da União, depois de consulta ao ministro da Justiça, André Mendonça -- que dúvida!!! -- a entrar no Supremo com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra medidas adotadas por Estados e municípios para diminuir a circulação e aglomeração de pessoas.
Além de aberração técnica (ver texto no blog), é provocação barata. O Supremo já julgou a questão e definiu por unanimidade a competência concorrente da União, de Estados e de municípios no enfrentamento da pandemia. Trata-se matéria julgada. Parece querer criar as circunstâncias para um passo seguinte: atropelar o tribunal.
O "Mito" anda ouvindo delinquentes morais e intelectuais, disfarçados de juristas, que lhe sopram aos ouvidos que isso é possível. Só se for por meio de um golpe de Estado. Mas eis o homem. Ele diz fazer "o que o povo quer". E "povo", para Bolsonaro, são aqueles que seguem a sua liderança. Que importa que essa gente seja uma decrescente minoria?
O presidente voltou a insistir na tese estúpida de que medidas restritivas se confundem com estado de defesa e estado de sítio:
"Bem, entramos com uma ação hoje, Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal exatamente buscando conter esses abusos, que inclusive, no decreto, o cara bota ali 'toque de recolher'. Isso é estado de defesa, estado de sítio que só uma pessoa pode decretar: eu".
E partiu para o incitamento e a ameaça.
INCITAMENTO
Referindo-se aos protestos contra as medidas de governadores e prefeitos, afirmou tratar-se de "um movimento voluntário, do coração do povo, que pede cada vez mais que tenhamos fé no Brasil, que os Poderes, cada vez mais, sejam harmônicos e todos produzam para o Brasil".
Emendou com uma filosofada:
"A maior produção que nós podemos ter, uma das mais importantes, nossa liberdade e democracia, que a gente sabe, pelo que a gente vê no Brasil, não estão tão sólidas no Brasil. Devemos nos preocupar com isso."
AMEAÇA
Resolveu, então, comparar a convivência entre os Poderes com um casamento. Como ele está no terceiro, talvez esteja pensando em causar um divórcio entre o Executivo e o Judiciário:
"O pessoal fala muito em democracia e ditadura. Mas é do ser humano uma característica: cada vez mandar mais. E isso começa a ter dentro do próprio lar. E temos que, cada um, reconhecer a sua importância e também os seus limites, senão o caldo pode entornar, ter uma briga em casa, ter tensões entre os Poderes, e ninguém quer isso aí".
E então veio o papo furado de que faz aquilo que o povo quer que ele faça. É evidente que se trata de uma ameaça. Afinal de contas, ele sabe que não será bem-sucedido no Supremo. Se José Levi, advogado-geral da União, tem um mínimo de juízo, deve tê-lo advertido de que se trata de um despropósito.
BOBAGENS
Bolsonaro sempre foi um reacionário primitivo. Ele emprega mal e fora do contexto palavras e expressões correntes no vocabulário da direita. Fazer lockdown, segundo o pensador, é só uma das manifestações do pensamento politicamente correto -- o que evidencia que ele não tem a menor noção do que isso quer dizer. Afirmou:
"Para mim é muito fácil eu aderir ao lockdown, confinamento, feche tudo. É bacana. É politicamente correto. Mas eu estaria traindo minha consciência se eu agisse dessa maneira".
E voltou a atacar as máscaras:
"Você vai, por exemplo, no metrô, ônibus, o pessoal está assim, apinhado lá dentro. Não adianta botar máscara dentro, pessoal"
CRIMINOSA
É uma fala criminosa. Notem que ele admite que a aglomeração potencializa o contágio. Em casos assim, o único meio conhecido para diminuir o risco de contaminação é o uso da máscara. Mas ele, mais uma vez, contrariando todas as evidências científicas, nega a sua eficácia.
O país está em colapso com uma adesão ao distanciamento da ordem de 30%. Imaginem como estaríamos seguindo as suas orientações: todos circulando à vontade, sem máscaras.
NÃO SÃO COISAS BOAS
Bolsonaro, por óbvio, não está pensando coisas boas. A insistência com que ele associa restrição de circulação a estado de defesa e a estado de sítio -- destacando que declará-los é prerrogativa sua -- indica que anda a pensar no assunto. Ao estimular a reação contra prefeitos e governadores e ao confrontar o Supremo, parece apostar numa convulsão que levaria, então, a uma solução de força.
"Ah, ele não seria louco o bastante para investir nisso!"
Ele é louco o bastante para estimular as pessoas a não usar máscaras em vagões e ônibus lotados num país em que milhares de doentes estão à espera de leitos de UTI. E com o estoque de anestésicos e neurobloqueadores chegando ao fim.
Ah, sim: ele falou mansinho. O golpismo está no conteúdo.
Por Reinaldo Azevedo
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