Num instante em que o número de cadáveres produzidos diariamente pela Covid encosta na casa dos 2 mil, Jair Bolsonaro manifesta o desejo de levar a voz e o rosto aos lares dos brasileiros numa transmissão em rede nacional de rádio e TV. O pronunciamento ocorreria na terça-feira, às 20h30. O horário chegou a ser reservado. Mas o presidente recuou. Cogitou falar na noite de quarta-feira. Desistiu novamente. Aliados de Bolsonaro aconselharam-no a lapidar o discurso, ajustando-o a uma pandemia que mudou de patamar.
A aparição pode ocorrer a qualquer momento, pois o presidente não abandonou a ideia de falar para uma plateia mais ampla do que a arquibancada de suas redes sociais. Encanta-se com a perspectiva de ser levado ao ar pela TV Globo minutos antes do Jornal Nacional. Um de seus auxiliares faz troça, afirmando que o chefe "precisa divulgar o que o William Bonner esconde ou distorce."
A novidade é que surgiram na cozinha de Bolsonaro vozes que destoam da ladainha dos colaboradores que, como ele, querem ver o sangue dos adversários. Essas vozes alternativas sustentam que a tática de botar a culpa em alguém, continua sendo útil para animar o bolsonarismo nas redes sociais. Mas perdeu o prazo de validade para o restante dos brasileiros.
Fora da bolha virtual, cresce a percepção de que a falta das vacinas que a União demorou a comprar eleva o custo social e econômico da crise sanitária. Não se imagina que o capitão fará um mea-culpa. Mas espera-se que ele gaste mais energias construindo a própria imagem do que destruindo a de terceiros.
No pronunciamento que ainda não fez, Bolsonaro alardearia o decreto que editou para zerar por dois meses o PIS-Cofins que incide sobre o diesel. A pandemia viria na rabeira do afago nos caminhoneiros. Os defensores da tese de que a retórica presidencial precisa de ajustes avaliaram que o combate ao vírus deveria prevalecer sobre o barateamento temporário dos combustíveis.
Nessa versão, seria conveniente que o presidente encampasse o cronograma de distribuição de vacinas que o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) diz estar assegurado. Sob pena de ser ultrapassado por governadores e prefeitos que acusam a União de negligência inépcia. Alega-se ainda que Bolsonaro ficaria mais bem-posto se anunciasse a aprovação da nova versão do auxílio emergencial, que o Congresso analisa a toque de caixa.
Em relação às vacinas, o general Pazuello pavimentou o terreno, anunciando a decisão de assinar contratos com mais dois laboratórios: Pfizer e Jansen. A vacina da Pfizer é aquela que Bolsonaro se recusou a comprar há sete meses, sob a alegação de que ela poderia transformar os vacinados em jacarés. Uma mudança de discurso conduzirá o orador para algum lugar situado entre o mea-culpa e o cinismo.
De resto, as penúltimas manifestações de Bolsonaro não prenunciam a intenção de dar ouvidos à moderação. Nas últimas 72 horas, o presidente voltou a criticar governadores e prefeitos —a "turma do fique em casa". Acusou o Supremo de lhe amarrar as mãos. Reiterou a defesa do "tratamento precoce" à base de cloroquina. Enviou uma comitiva a Israel para associar o Brasil a estudos sobre os efeitos milagrosos de um spray anticâncer no tratamento da Covid. E acusou a imprensa de propagar o "pânico."
Quer dizer: alheio aos conselhos dos que desejam que ostente um discurso lapidado, Bolsonaro não tem a oferecer senão mais do mesmo.
Por Josias de Souza
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