Que país é este, como já indagou aquele, em que uma carta de economistas, empresários e expoentes do mercado financeiro em defesa do óbvio se transforma num fato político? Lembro: o documento defende as seguintes práticas verdadeiramente revolucionárias no combate à Covid-19:
- aceleração da vacinação;
- uso de máscaras;
- distanciamento social;
- coordenação entre os Poderes e os três níveis de governo para enfrentar o contágio e a doença.
Não! Não estou sendo irônico. Eu mesmo elogiei o documento. Ele é poderoso na sua clareza e singeleza. O governo, obviamente, se doeu porque essa obviedade de que falo revelou a delinquência intelectual, administrativa e moral a que estamos submetidos. Em dois dias, bateremos os 300 mil mortos. Aí é só esperar os 400 mil. E assim vamos empilhando cadáveres e empenhando o futuro de gerações.
Sim, é fato, o documento causou estresse em Brasília porque o subscrevem alguns pesos-pesados da economia, da academia e do empresariado. Frações consideráveis de setores a que pertencem essas pessoas deveriam, em tese, estar alinhados com um governo que se dizia arauto da economia de mercado e do liberalismo. Nunca acreditei, como sabem, nessa porcariada. Liberais?
Como na letra da "Balada dos Loucos", de Arnaldo Batista e Rita Lee, cantada pelos Mutantes, "se eles são bonitos, sou Alain Delon". Por que o "liberalismo", por mais que se pensem coisas ruins do velhinho mal afamado, encontraria num reacionário primitivo o seu defensor? Bolsonaro é o maior flagelo com o qual já se deparou o capitalismo no Brasil — mesmo este nosso.
ALGUMA CHANCE?
Alguma chance de a gente parar de povoar a Terra dos Mortos? Se o Congresso, governadores e Supremo tomarem para si a tarefa, algo pode acontecer. Mas não é fácil. Amanhã, há uma reunião entre chefes dos Três Poderes. É possível que alguns governadores sejam convidados. O que dirá Jair Bolsonaro?
Numa solenidade no Palácio do Planalto, nesta segunda, ele afirmou a seguinte maravilha:
"Devo mudar meu discurso? Me tornar mais maleável? Devo ceder, fazer igual a grande maioria está fazendo? Se me convencerem do contrário, eu faço. Mas não me convenceram ainda. Devemos lutar contra o vírus, e não contra o presidente".
Ninguém está lutando contra o presidente, embora isso venha se tornando, a cada dia, um imperativo moral. O que se tenta é mesmo articular ações contra a doença. Vejam ali o falastrão egocêntrico. Ele está ciente de sua posição isolada — no mundo, diga-se —, mas precisa ser convencido, ele diz... Convencido de quê? Se o sujeito vê o Sol à sua esquerda de manhã e à sua direita à noite e não está convencido do movimento de rotação da Terra, como poderia ser convencido de que não foi o Sol que se moveu?
Assim age o presidente. Ele desqualifica o saber firmado sobre a doença e depois diz: "Convençam-me".
Esse comportamento intelectualmente delinquente na Presidência da República é inédito. Uma reunião entre os Três Poderes que não resulte numa guinada radical no comportamento de Bolsonaro será inútil. Mais: é espantoso que, até agora, o governo federal não tenha feito uma campanha nacional — nos meios de comunicação e nas redes sociais — em favor do uso de máscaras e do distanciamento social.
Se Luiz Fux, o presidente mudo do Supremo, estiver presente à reunião de amanhã, lembremo-nos: Bolsonaro recorreu ao tribunal contra matéria já julgada, que afirma a competência das três esferas da administração no combate à Covid-19. Não estivessem governadores e prefeitos lutando, no limite do possível, para conter o contágio, viveríamos situação ainda mais dramática. E é consenso de que ainda vai piorar bastante antes de melhorar.
A força da carta dos economistas e empresários está na sua simplicidade. Alguns nomões do PIB resolveram lembrar o óbvio: "Olhem, quem se move é a Terra". E isso causou grande aflição no Palácio do Planalto.
Por Reinaldo Azevedo
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