Não se trata, por óbvio, de nenhuma metáfora agressiva, até porque não recorro a animais para apontar aspectos pouco apreciáveis nas pessoas. Aconteceu mesmo. O presidente da República latiu ao sancionar a lei que aumenta a pena para quem maltratar cães e gatos — só cães e gatos. O resto não conta. Antes, a pena era de três meses a cinco anos de reclusão; agora, de dois anos a cinco. Isso quer dizer que há o risco efetivo de o condenado ir para a cadeia.
Como é visível, está em curso a construção da figura reeleitoreira de um Bolsonaro, digamos, mais humano. E, para tanto, é preciso que se ele mostre mais doce com os bichos. Assim, a sanção da lei — um projeto original do deputado Fred Costa (Patriota-MG) — virou uma solenidade, com direito à presença de cachorros.
Em um dos trechos compreensíveis de seu discurso, afirmou o presidente:
"Não sei se o Sansão vai entender aqui, né? 'Au, au' quer dizer Parabéns, Sansão!"
Sansão é o nome de um pitbull que teve as patas traseiras decepadas a golpes de foice na cidade de Confins, em Minas, num desentendimento entre vizinhos. Deu apelido à lei.
Bolsonaro decidiu fazer uma graça, transformando Paulo Guedes numa espécie de primeira-dama do B:
"Eu nunca tive dúvidas se eu ia sancionar ou não até porque eu fiquei sabendo da aprovação do teu projeto pela primeira-dama (Michelle Bolsonaro). E ela perguntou em casa: 'Já sancionou?' Eu falei: 'Você tá dando uma de Paulo Guedes, que manda eu sancionar imediatamente os projetos que têm relação com a economia. O Paulo, eu obedeço. Quem (sic) dirá você".
Foi uma de suas raras deferências a Guedes em tempos recentes. Não sei quantas reivindicações Michelle tem conseguido emplacar ultimamente. O ministro da Economia tem perdido todas.
Nem sempre Bolsonaro esteve inclinado a sancionar o texto. Na "live" do dia 10 de setembro -- aquele de que participou uma garota de 10 anos, que é youtuber mirim, ele afirmou:
"O que eu pretendo fazer, vou botar no meu Facebook, o texto da lei para o pessoal fazer comentários. Só deixo avisado: quem for para baixaria, é banimento, não tem papo. Pode reclamar: 'A pena é excessiva, é pequena, é grande, tem que sancionar, tem que vetar'. Porque não é fácil tomar uma decisão como essa."
A dúvida do presidente: a pena para quem pratica abandono de incapaz, como um recém-nascido, por exemplo, é de seis meses a três anos. Pode ter sido a única dúvida razoável que Bolsonaro teve na vida...
Pelo visto, seu público foi simpático à ideia. E não se diga por aí que o presidente daquele país em que já morreram 143 mil pessoas de Covid-19 é insensível ao sofrimento de cães e gatos.
Para lembrar: no discurso que abriu a 75ª Assembleia Geral da ONU, na manhã do dia 22, Bolsonaro lamentou "cada morte" ocorrida no mundo. Mas não fez menção aos mais de 137 mil óbitos no território sob o seu governo. Ao contrário: ele atacou o distanciamento social, única medida conhecida que tem eficácia para conter a expansão do coronavírus, e cantou as glórias de drogas inócuas para combater a Covid-19. É seu jeito de amar a humanidade.
Ah, sim: a Lei Sansão não pune quem é omisso, por exemplo, diante das onças, cobras, jacarés e outros bichos crestados na grande pira em que se transformou o Pantanal. Nem quem, por palavras e atos, incentiva, na prática, queimadas e desmatamento, o que também mata bicho e gente.
Já temos um presidente humano, que se preocupa com cães e gatos. E seus admiradores nas redes sociais já podem exaltar este benfeitor dos pets.
Só me cumpre encerrar com o poema "Anedota Búlgara", de Carlos Drummond de Andrade:
Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.
Por Reinaldo Azevedo
Um comentário:
“O canalha nunca se acha canalha, se acha de uma bondade inexcedível.” (Nelson Rodrigues)
Postar um comentário