Para quem ainda observa de casa e em quarentena o Brasil de Bolsonaro, o mais excruciante é a ostentação da asneira. O presidente e sua corte não disfarçam a ignorância em todos os aspectos da vida, da economia ao meio ambiente, sexo, ciência, educação e cultura. Eles se superam a cada dia. Trombeteiam o desconhecimento. Só isso explica que Bolsonaro tenha dito ontem que as escolas não deveriam ter sido fechadas nem um só dia na pandemia. Nenhum presidente no mundo ousou dizer tal besteira.
"Nós falamos naquele momento, conforme alguns estudos pelo mundo, que as crianças e os jovens, uma vez acometidos pelo vírus, a chance de partirem para a letalidade era próxima de zero", ressaltou Bolsonaro. "Eu entendo que alguns governadores foram tomados pelo pânico, proporcionado por essa mídia catastrófica que nós temos no Brasil. Não é uma crítica à imprensa, é uma constatação. Me desculpem".
Além de ser uma mentira, até as crianças perguntariam: “Mas, presidente, e os professores e os serventes, e meus pais, meus avós? O senhor queria que eu fosse egoísta e contaminasse a todos em volta?” Desculpe, presidente, mas sua linguagem é tosca. Morte é “partir para a letalidade”? Seus ataques destemperados à imprensa confirmam sua insegurança. “Catastrófica” não é a mídia, mas sua gestão fake, presidente. Não é uma crítica, mas uma constatação.
Não podemos exigir sensatez e empatia de um ex-capitão nostálgico da ditadura militar, fã de torturadores e expulso do Exército por indisciplina. Seus filhos se apoiam na ressurreição da censura e em privilégios especiais para driblar investigações por corrupção. Na liderança do país e até de seu próprio gabinete ministerial, Bolsonaro é um desastre. Diz e se desdiz. Veta seu próprio veto. Endeusa e frita. Sua ausência de discernimento na diplomacia está destruindo o “made in Brazil”. Nossa marca é corroída. Nossa democracia também. Estamos queimando florestas e nosso filme.
Até aí, nenhuma novidade. Você pode até dizer que a ignorância é tática eleitoral. Não seria uma burrice sincera, mas uma falsificação oportunista e deliberada da verdade. A insistência em afirmações facilmente desmascaradas – sobre a eficiência da cloroquina ou o respeito à Floresta Amazônica – pode ser simplesmente uma obsessão por “fake news” como método.
“Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”, dizia Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha nazista. Nesse cenário, o jornalismo profissional, que vive da busca da verdade, é mesmo um inimigo. Por isso o presidente quer “encher a boca do repórter de porrada” e sua ameaça é aceita como normal pelo muy amigo da República, nosso procurador-geral, Aras, que desmerece o significado do prenome Augusto, o venerável.
Como manter a esperança e a sanidade no apocalipse? Como não entrar em pânico diante da mistura de nacionalismo, armas, fanatismo religioso, milícia e desprezo por fatos e números? Alguns se refugiam na fé. Não é meu caso. A saída pode ser o aeroporto.
A opção mais admirável é resistir e se aferrar à perspectiva histórica dos ciclos da humanidade, com suas pestes, seus êxodos, suas crises e guerras convencionais ou civis. Não sejamos ingênuos. Não vamos melhorar nem renascer após a pandemia. Mas “todo cambia”, como canta Mercedes Sosa. Devemos olhar Bolsonaro como uma “corcova da História” e não como uma tendência. Essa expressão é do economista Sérgio Besserman, um estudioso da tribo global do homo sapiens. Besserman enxerga benefícios na pandemia, entre eles a falência do “mais, mais e mais” e do “ter, ter e ter”.
“Estamos numa revolução do porte do Iluminismo, do Renascimento. Tudo isso é amendoinzinho (peanuts) comparado com as próximas décadas. Se não fizermos nada, iremos para o pior cenário do aquecimento global. Para a extinção das espécies. O mundo precisa se preocupar com 100 anos à frente. Parecia que estava tudo bem? Metade dos gases estufa da atmosfera foi emitida nos últimos 30 anos, quando a gente já sabia de tudo e não fazia nada. E por isso a adolescente sueca Greta Thunberg tem razão”.
Em novembro, na eleição presidencial americana, o mundo decidirá se a corcova se prolongará ou não. Se Trump for reeleito, sua vitória dará legitimidade ao discurso de Bolsonaro e de autoritários nacionalistas, populistas e xenófobos, como Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia, Maduro na Venezuela, Putín na Rússia, Modi na Índia, Boris na Grã-Bretanha.
Se Joe Biden derrotar Trump, Bolsonaro ficará sem seu maior aliado na ostentação da mentira e do “bullshit”. Besserman vai além: “Todos esses nacionalistas, ressentidos e saudosistas de ditaduras, de impérios, ou da sharia (a lei islâmica), se tornarão um bando de meia dúzia de malucos com a brocha na mão”. Assim espero. O desejo não move o mundo?
Por Ruth de Aquino
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