Tuíte criminoso que, na prática, combate a vacina. O ministro das Comunicações, Fabio Faria (alto), pode ser acusado de crime de responsabilidade por postagem da Secom, cujo titular é Fábio Wajngarten (acima, à esq.). Com a palavra, Augusto Aras (à dir.) Imagem: Reprodução/Twitter; Reprodução/Facebook; Reprodução |
A irracionalidade é o principal fermento do bolsonarismo. Assim, por paradoxal que pareça, quando o presidente afirma que "ninguém pode ser obrigado a tomar vacina", anuindo com o apelo de uma simpatizante às portas do Palácio da Alvorada, o líder político está sendo, digamos, racional e pragmático dentro do universo da própria estupidez e da parte considerável daqueles que o admiram. Sabe que a fala ajuda a manter unida a sua seita — ou o seu gado, como se convencionou chamar. Ah, sim: isso tudo acontece ao mesmo tempo em que o Facebook derruba páginas do movimento QAnon no Brasil — que, por obvio, já se confunde com as milícias bolsonaristas.
Há, no entanto, limites nessa estratégia se os entes que compõem o Estado brasileiro fizerem cumprir a lei. Uma coisa é uma fala solta, que, pode, vá lá, ser considerada impensada, um rompante, algo sem importância ou solenidade. Outra, distinta e mais grave, é o que fez a Secom ao ir às redes sociais para afirmar:
"O Governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para estados e municípios, saúde, economia, TUDO será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos."
Na sequência, vem a afirmação em caixa alta:
"NINGUÉM PODE OBRIGAR NINGUÉM A TOMAR VACINA"
"O GOVERNO DO BRASIL PREZA PELA LIBERDADE DOS BRASILEIROS".
Esse despropósito traz a marca da Secom e do governo. Agora, tudo indica, se está na esfera do crime.
Claro! Moralmente é uma coisa estúpida, detestável. A vacina nem sequer existe. Ela é a esperança dos bilhões de pessoas mundo afora de voltar a ter uma vida normal — na verdade, querem sua vida de volta. A Secom tem o despropósito de espalhar uma mensagem como essa no dia em que o país atinge a marca de 122.596 mortos pela doença, com 3.950.931 contaminados. Só nesta terça, somaram-se 42.659 novos casos.
Mais: a cada dia, a ciência vai conhecendo novas — e más — faces da Covid-19, com um elenco de sequelas muito maior do que se sabia inicialmente. Além de não ser uma "gripezinha", também não é, em milhares de casos, uma doença que some, que desaparece sem deixar vestígios. O vírus se vai, mas fica a sua marca.
Assim, do ponto de vista moral e científico, a boçalidade está dada. Mas também há a questão legal. E é nesse ponto que a Procuradoria Geral da República está obrigada a agir.
Está no Parágrafo 1º do Artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo modificação introduzida pela Lei 13.257:
"É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias."
Segundo o Artigo 268 do Código Penal, "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa" rende pena de "detenção de um mês a um ano e multa".
A Secom, comandada por Fábio Wajngarten, está subordinada hoje ao Ministério das Comunicações, cujo titular é Fábio Faria. Pergunto: o sr. ministro endossa a afirmação? É essa a recomendação que um pai de três filhos dá aos brasileiros? Ele assume os riscos dessa afirmação? Ou isso vale para os filhos de pretos e pobres, mas não para os seus, é claro?
Estamos diante de uma escancarada afronta a dois Artigos da Constituição, a saber:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado."
Reitero: uma coisa é o presidente disparar um de seus perdigotos morais à guisa de pensamento. Outra é uma manifestação com chancela oficial do governo, como o tuíte indecente. Trata-se de crime de responsabilidade, senhor Fábio Faria, segundo dispõe a Lei 1.079, itens 3 e 7 do Artigo 9º, a saber:
São crimes de responsabilidade contra a probidade da administração:
3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;
(...)
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.
Em tempos normais, a Associação Médica Brasileira viria a público nesta quarta-feira para expressar o seu repúdio tanto à fala do presidente como à peça vil de propaganda. Mas não acontecerá desta vez. A AMB está por demais ocupada tentando explicar a sua relação com a cloroquina...
O Brasil anda tão estranho que existem até médicos bolsonaristas. Pertencem à categoria intelectual dos astrônomos terraplanistas...
AGUARDEM O PIOR
Aguardem o pior na disputa eleitoral de 2022.
Noticiou o Estadão na segunda:
O Facebook removeu da rede social alguns dos principais grupos e páginas que promoviam o movimento conspiratório QAnon no Brasil. As suspensões ocorreram após o Estadão revelar a adesão à versão tupiniquim da teoria da conspiração criada pela extrema-direita americana entre usuários brasileiros, com campanhas de desinformação contra adversários do presidente Jair Bolsonaro e contra medidas sanitárias de combate à pandemia.
Ao todo, a reportagem constatou que saíram do ar grupos e páginas que promoviam a conspiração e tinham, juntos, 572 mil membros ou seguidores. Somente o maior grupo de adeptos da QAnon reunia mais de 22 mil membros. Páginas identificadas como "oficiais" e dedicadas à publicação de conteúdos agressivos ou falsos também foram encerradas.
Os conspiracionistas tarados, entre outros delírios, promovem campanhas contra as vacinas.
No dia em que ficamos sabendo o tamanho do estrago que a pandemia fez na economia brasileira, presidente e seus assessores diretos celebram uma campanha criminosa contra uma vacina que, infelizmente, ainda não está à disposição da humanidade.
O bolsonarismo representa também ódio até mesmo à esperança de dias melhores.
E todos aqueles que servem a essa malignidade terão de responder por suas escolhas. Se os tribunais que temos são muito frouxos para punir crimes dessa natureza, é de se esperar que a história faça o ajuste. Nem sempre acontece, é verdade. Mas também não é impossível. É preciso trabalhar para que se faça justiça histórica.
E o primeiro passo é documentar meticulosamente quem fez o quê.
Enquanto não acontece, cabe a pergunta: e aí, senhor Augusto Aras? A Secom e o Ministério das Comunicações têm carta branca para rasgar a Carta que em branco não está porque expressa os direitos fundamentais dos brasileiros?
Por Reinaldo Azevedo
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