Quando a posteridade puder falar sobre a pandemia sem o risco de produzir efeitos colaterais constrangedores, a história da megacrise sanitária será um relato das coisas que poderiam ter sido evitadas. O que já foi feito não pode ser refeito. Mas certas providências poderiam ser abortadas. Jair Bolsonaro acaba de fazer um gol ao incluir o Brasil na aliança internacional por vacinas contra a Covid-19, coordenada pela OMS. Depois de muita hesitação, ele liberou R$ 2,5 bilhões para esse projeto, que aproxima o Brasil do desenvolvimento de nove vacinas.
A arquibancada ainda nem teve tempo de comemorar e surge a notícia de que o governo se equipa para fazer um gol contra. O Ministério da Saúde cogita realizar em 3 de outubro o Dia D do enfrentamento à Covid-19. Essa terminologia —Dia D— costuma ser usada em campanhas de vacinação. Na falta de uma vacina, pretende-se intensificar a distribuição do kit Covid, um embrulho que inclui a cloroquina, a hidroxicloroquina, a azitromicina e a ivermectina. O que se diz é que o presidente pode inclusive bater bumbo num pronunciamento em rede nacional de rádio e TV. É uma ofensa à inteligência alheia.
Tudo isso ocorre contra um pano de fundo manchado pela presença de quase 140 mil mortos. Uma evidência de que ou a comunidade médica enlouqueceu ao ignorar a genialidade sem comprovação científica de Bolsonaro ou o kit cloroquínico do governo não tem serventia. Simultaneamente, veio à luz um livro em que o ex-ministro Henrique Mandetta se dedica a falar bem de si mesmo e a expor as mazelas do combate à pandemia no Brasil.
Mandetta relata, por exemplo que expôs em 27 de março numa reunião com a presença de Bolsonaro cenários que indicavam que o coronavírus poderia matar até 180 mil pessoas no Brasil. Mal comparando, o livro de Mandetta surte o efeito de outro livro recém-lançado nos Estados Unidos pelo jornalista Bob Woodward.
Numa série de entrevistas gravadas, Donald Trump admitiu, ainda em fevereiro, ter ciência do grau de letalidade do coronavírus, que seria "até cinco vezes mais mortal". Nos Estados Unidos, o livro rendeu críticas a Trump e também ao jornalista, que sonegou ao público informações vitais. No Brasil, é preciso perguntar a Mandetta se, em meio a tantas autopsias, ele também não poderia ter aproveitado o livro para fazer algum tipo de autocrítica.
Por Josias de Souza
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