domingo, 27 de setembro de 2020

"Lindinhas". E sensuais? O filme que Damares quer censurar na Netflix



Não se nasce mulher. Torna-se mulher. Essa frase, do livro ‘O segundo sexo’, de Simone de Beauvoir, tem 71 anos. E continua atual. Poderia até servir de subtexto para o filme mais polêmico hoje na Netflix, “Lindinhas”, do francês original “Mignonnes”, ou “Cuties” em inglês. Premiado no Festival de Sundance, o filme foi chamado de pervertido por mostrar a erotização precoce de meninas. 

“Lindinhas” foi acusado de apologia à pedofilia, por exibir as garotas treinando para um concurso de dança em pleno “twerk”, com movimentos radicais de quadris e agachamentos, ficando de quatro com dedinho na boca. O “twerk” mistura funk e hip-hop e o foco é o bumbum. O Brasil é mestre nisso (lembram o grupo “é o tchan”?) e há até igreja evangélica tentando atrair jovens com o “funk gospel das novinhas”. Nas comunidades, em escolas, em festas, em tutoriais na internet e mesmo em lares, a dancinha e o rebolado infantis são reais.

A diretora é senegalesa, Maïmouna Doucouré. O filme conta a história de uma menina muçulmana de 11 anos, Aminata, que cresce em um subúrbio de Paris com sua família imigrante do Senegal. Amy, seu apelido na França, se sente dividida entre três culturas: a religiosa africana, a europeia ocidental e a hiperficção das redes sociais. Se já é difícil para qualquer um adolescer, imagine para Amy. Ela participa de cultos com os cabelos cobertos, enquanto as populares da escola usam colantes brilhantes, tops de barriga de fora e jeans rasgados, saltos plataforma, maquiagem, cabelos tingidos de todas as cores. Amy inveja o que lhe parece liberdade.

Amy cuida de dois irmãos pequenos. Vê a mãe chorar porque o marido vai trazer uma segunda esposa do Senegal. Não lhe parece justo perder seu quarto para a nova mulher do pai. Não lhe parece justo que ela e a mãe preparem a festança da boda bígama. Em uma cena, a tia manda Amy descascar sacas de cebolas: “Hoje vou ensiná-la a ser mulher”. 

O que é ser mulher? “Lindinhas” ensina no culto: “As mulheres têm de ser devotas porque no inferno elas serão bem mais numerosas do que os homens. Por isso devemos seguir as recomendações de Alá. O espírito do mal se expressa nas mulheres seminuas. É preciso lutar para não perder o pudor. Devemos obediência a nossos maridos”. 

Por um momento, penso ouvir Damares. Igual a citações dela. É natural que a ministra da Família e ex-pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular tenha se sentido ofendida. O que não é natural é pedir a suspensão de “Lindinhas” na Netflix. A censura não muda a realidade. Não alerta. Não ensina. Além de inconstitucional, é obscurantista. O governo francês defendeu o filme, as ministras da Cultura e de Igualdade de Gênero também. 

O filme perturba, mas não tem nudez nem pedofilia. Faz refletir. É proibido para menores de 16 anos. Amy faz um nude genital que não nos é exibido e posta a imagem nas redes, como rebeldia. E por isso é castigada por seus pares, até por sua melhor amiga, a hispânica Alice. Por ter exagerado na transgressão. Um imã (sacerdote muçulmano) é chamado para exorcizar o demônio dentro de Amy. Não encontra nada.

Não foi só Damares que gritou contra “Lindinhas”. Milhares nos Estados Unidos e no Brasil assinaram petição online contra o filme – mesmo sem assistir. Muitos grupos cristãos. O pôster da Netflix, apelativo e sexualizado, foi trocado pelo cartaz original e divertido do filme. A rede pediu desculpas pela propaganda inapropriada. E também mudou a descrição. Amy não é mais uma menina “que explora sua feminilidade”, mas que “se rebela contra valores tradicionais familiares”. A polêmica inflou a audiência do filme. E levou a cineasta Maïmouna a gravar um vídeo, explicando que a ideia surgiu quando viu pré-adolescentes dançando em Paris.

“Elas disseram que quanto mais sexualizadas as mulheres são nas redes sociais, mais são bem sucedidas. Elas imitam o que veem. Sem entender o significado. Sim, é perigoso. Lembrei de mim mesma, crescendo entre as duas culturas que criaram meus valores. Era obcecada em saber o que significava se tornar mulher. Via injustiça. Sentia raiva. Podemos ver a opressão das mulheres em várias culturas, como a muçulmana. Mas a objetificação do corpo das mulheres no Ocidente não é outra forma de opressão? Essa idade de 11 anos é incrível porque você tem toda a ingenuidade e inocência, imaginação ilimitada, mas ao mesmo tempo tem acesso fácil a conteúdos adultos. Nós podemos, como mulheres, realmente escolher quem queremos ser? Para além dos exemplos impostos pela sociedade? ‘Lindinhas’ é um filme profundamente feminista, com uma mensagem ativista. Um espelho de nossa sociedade. Pode ser difícil olhar para ele. Mas é real”.

Todas nós tivemos 11 anos e sabíamos sentir excitação e desejo. Amy menstrua enquanto ainda se entope de balas e tem bichos de pelúcia. Para mim, o mais perturbador no filme foi a violência física entre as garotas e o bullying, também reais. Amy encontra seu caminho. Nem todas as meninas encontram. Questões da sexualidade feminina seguem sem resposta fácil. Para as garotas e para seus pais. A resposta é simplista para quem acha tudo pecado ou para o outro extremo, os crentes da sociedade de consumo e espetáculo. 

É impossível negar a sensualidade infanto-juvenil. Uma repressão severa pode tornar o sexo uma prática doente e suja, e mesmo impedir o orgasmo. Como educar nossas filhas e netas para o exercício gratificante do sexo? Como ajudá-las a se defender de predadores? Dos que distorcem a pureza da sensualidade? Como ajudá-las a não sucumbir ao patrulhamento do prazer? 

O cenário piora com a obsessão por seguidores e curtidas. Nem precisa chegar à pré-adolescência. Aos sete anos já. Criança não tem celular nem iPad mas usa os dispositivos dos pais. A diretora de “Lindinhas” diz: “Todos nós, pais e mães, professores, políticos, precisamos criar um espaço mais bonito, libertador e saudável para que as crianças cresçam se tornando a melhor versão de si mesmas”. Não querer ver nem ouvir é sempre o pior caminho. Não se nasce censor. Torna-se.

Por Ruth de Aquino

Nenhum comentário: