A Polícia Federal intimou Hélio Schwartsman, colunista da Folha, a depor no inquérito aberto a pedido de André Mendonça, ministro da Justiça, com base na Lei de Segurança Nacional. A coisa é de um ridículo tal que fica quase impossível expor a razão de modo que não pareça conversa de doido. O inquérito, prestem atenção!!!, investiga um artigo. Sim, é isto mesmo: um artigo escrito por Schwartsman está sob investigação. Seu título: "Por que torço para que Bolsonaro morra". Obviamente, essa porcaria não dará em nada, mas expõe a índole autoritária dessa gente.
De saída, indago e respondo: concordo com o artigo do meu colega ou o considero bom e necessário? Respostas: não, não e não. Escrevi na própria Folha a coluna "Torço para Bolsonaro viver e pagar por seus crimes". Fica claro que discordo da ancoragem filosófica do artigo — o consequencialismo —, da qualidade da argumentação e da oportunidade do texto, dando à sucia autoritária que cerca e apoia o governo uma licença retórica para se colocar no papel de vítima, coisa que essa gente, definitivamente, não é. Vítimas são as 113.358 pessoas que morreram de Covid-19, segundo números oficiais desta sexta.
Embora eu acredite que, em benefício de si mesmas, as pessoas devam evitar torcer para que outras morram, há de se admitir que, para a sobrevida de Bolsonaro ou de qualquer um, a torcida de Schwartsman, a sua ou a minha são absolutamente irrelevantes. O autor se referia, no caso, à doença como algoz do presidente. Ocorre que os patógenos são insensíveis às disposições subjetivas do jornalista. Agora vamos à questão jurídica e política.
Mendonça apelou à Lei de Segurança Nacional, que é de dezembro de 1983. Argumenta-se por aí: "Ah, é uma lei da ditadura". Isso, para mim, é irrelevante. Foi recepcionada pela Constituição de 1988. O Código Penal é de 1940. O Código de Processo Penal é de 1941. São textos aprovados durante a ditadura do Estado Novo. E estão aí — embora, claro!, tenham sido permanentemente modernizados. Mas subsistem muitas disposições octogenárias. A questão é saber se mesmo a Lei de Segurança Nacional abre brecha para o inquérito. E a resposta é "não".
Do que se vale Mendonça? Apela ao Inciso IV do Artigo 31 da Lei 7.170, que prevê:
"Para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal:
(...)
IV - mediante requisição do Ministro da Justiça."
Até aí, bem! Sim, Mendonça pode requisitar que a PF abra um inquérito. Mas como fazer para que Schwartsman — ou seu artigo — seja investigado? Nenhuma outra lei abre brecha, dado o que fez Schwartsman, para que possa ser investigado. Atenção! A Lei de Segurança Nacional TAMBÉM NÃO.
Mendonça ancorou seu pedido no Artigo 26, a saber:
"Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação:
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos."
Vamos ver.
Desde quando desejar que alguém morra de Covid-19 — e o autor é específico sobre a causa — constitui calúnia ou difamação? Nenhuma ditadura conseguiu, até hoje, ser eficaz a ponto de impedir que, intimamente, as pessoas queiram isso ou aquilo. A vantagem da democracia, nesse particular, está no fato de que se pode expressar livremente um desejo. Observem que o jornalista não saiu à rua batendo bumbo: "Vamos matar o presidente, minha gente". E Schwartsman não escreveu: "Torço para que o presidente seja assassinado".
Não há lei que possa punir o desejo e a expressão dele se esta não incita um crime.
Que fato essencial o autor imputa ao presidente? É bastante objetivo: negar a gravidade da pandemia. Alguém, por acaso, contesta tal evidência? Será preciso lembrar aqui a fala sobre a "gripezinha"? Ou, então, a sua previsão de que o coronavírus faria menos vítimas do que o H1N1: nem 800 pessoas? Devemos ilustrar essas informações com as muitas centenas de imagens em que o presidente aparece provocando aglomerações, nas quais ele e seus seguidores estão sem máscara?
Assim, mesmo para os padrões da Lei de Segurança Nacional — que carrega, sim, traços autoritários, ainda que em vigência —, o inquérito é injustificável porque não estão caracterizadas a calúnia ou a difamação.
Fosse o governo, diga-se, acionar cada brasileiro que acusou o comportamento irresponsável de Bolsonaro durante a pandemia, seria preciso abrir milhões de inquéritos. Ademais, há um estudo demonstrando que o negacionismo do presidente, famoso no mundo inteiro, tem impacto importante no comportamento das pessoas — e, pois, na dinâmica da doença.
Como outros não foram processados por censurar o mau comportamento de Bolsonaro durante a pandemia — e, nesse particular, o artigo de Schwartsman é muito menos enfático do que boa parte do que circula por aí —, Mendonça pediu a abertura de inquérito porque o jornalista escreveu torcer para que Bolsonaro morra de Covid-19.
Pode-se achar isso impróprio, de mau gosto, moralmente condenável etc. Mas cadê o crime? Como crime não cometeu o próprio Bolsonaro -- neste caso, não -- quando afirmou que torcia para que Dilma Rousseff morresse de câncer ou infarto. Isso, claro, é coisa distinta de outra afirmação que fez sobre a deputada Maria do Rosário em 2003 e repetida (abaixo) em 2014:
"Ela [Maria do Rosário] não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece".
Considerar que o estupro é matéria de merecimento — como se fosse uma distinção que a mulher recebesse por mérito —, bem, isso, sim, é crime porque corresponde à clara apologia do ato criminoso, que, a seu juízo, deve premiar apenas as mulheres bonitas.
Bolsonaro tentou se esconder atrás da "liberdade de expressão" — que protege, sim, a torcida de Schwartsman — e da imunidade parlamentar. O Supremo, corretamente, não engoliu a explicação, e ele é réu no tribunal por essa fala. O processo está suspenso porque se tornou presidente, e o Parágrafo 4º do Artigo 86 da Constituição impede que seja responsabilizado por atos estranhos ao mandato. Quando encerrar o mandato, o processo deixa o Supremo e será remetido à primeira instância.
É claro que o autoritário e confuso André Mendonça pediu a abertura de inquérito obedecendo a ordens do presidente, o que não o exime de responsabilidade. É compreensível: a agressão a Maria do Rosário evidencia que Bolsonaro não sabe a diferença entre crime e liberdade de expressão. Não é de estranhar que não saiba a diferença entre liberdade de expressão e crime.
Abaixo, o vídeo reproduz o momento em que Bolsonaro comete o crime de apologia do estupro, em 2014, repetindo crime já cometido em 2011:
Por Reinaldo Azevedo
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