Os finórios se incomodam quando se fala de um genocídio em curso no Brasil. Afinal, são exigentes em matéria de morticínio em massa: ou são todos de um mesmo "genus" ou de uma mesma etnia, ou, então, genocídio não é. Sei. Nem importa, no caso, que a maioria das mais de 100 mil vítimas de Covid-19 no país seja formada de pobres e pretos. Pois é...
Fico com parte da definição de genocídio dada pelo Estatuto de Roma, que define os crimes julgados pelo Tribunal Penal Internacional, que, no seu Artigo 6ª, específica:
"Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por 'genocídio', qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticados com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) Homicídio de membros do grupo;
b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial.
Repito aqui o que escrevi no meu perfil no Twitter no sábado: os mais de 100 mil não caíram da árvore dos acontecimentos. Esse número brutal de vítimas — e, ainda assim, há uma subnotificação monstruosa porque não há testagem eficaz — decorre de ações e omissões do governo Bolsonaro.
"Ah, mas a definição do Estatuto de Roma fala em atos 'praticados com a intenção de destruir'". O governo brasileiro teve a intenção de matar as pessoas? Vale aqui o conceito de "dolo eventual" para morticínio em massa. Quem assume o risco consciente de matar pessoas revela uma intenção. Não se trata apenas de uma ação culposa.
Pode-se atribuir ao governo Bolsonaro, particularmente ao Ministério da Saúde, dolo eventual no que resulta ser um homicídio em massa? A resposta é "sim". Por consequência, o que se tem é genocídio mesmo, sem hipérbole e sem metáfora.
Assume-se o risco de matar por omissão quando:
- o Ministério da Saúde gasta pouco mais um terço da verba de que dispõe para combater a pandemia;
- o governo não manda para os Estados os kits de UTI e os respiradores prometidos;
- cria apenas um miserável hospital de campanha;
- deixa acabar o estoque de remédios, especialmente anestésicos para intubação, e os compra com atraso em razão de incompetência e incúria.
Assume-se o risco de matar por ação quando:
- um presidente sabota todos os esforços em favor do distanciamento social;
- entrega-se à farsa milionária da cloroquina;
- sabotando, mais uma vez, o distanciamento social, o governo decide apoiar uma "Black Friday" sob o pretexto de aquecer a economia;
- se politiza a doença, transformando-a numa espécie de tramoia dos adversários.
No dia 22 de março, num dos discursos genocidas por ação e omissão, Bolsonaro foi a público para anunciar que morreriam no Brasil menos de 800 pessoas em decorrência da Covid-19. A realidade agora está aí.
IMPOSTURA HOMICIDA CONTINUA
E a impostura homicida continua. Ultrapassada a marca trágica dos 100 mil mortos, Bolsonaro silenciou no sábado e só se manifestou neste domingo, dizendo lamentar "cada morte, seja qual for a sua causa, como a dos três bravos policiais militares executados em São Paulo". O que uma coisa tem a ver com outra? Nada! Continua a praticar negacionismo asqueroso. E ainda aproveita para fazer baixo proselitismo.
Mais: teve o despropósito de atribuir o elevando número de vítimas ao isolamento social — o que é de uma estupidez asquerosa — e ainda acusou a Globo, sem citar nominalmente a emissora, de comemorar os 100 mil mortos, o que é escandalosamente falso. E aproveitou adicionalmente para cantar as glórias da cloroquina como remédio eficaz contra a doença, quando todos os estudos científicos relevantes o desmentem.
Afirmou:
"No mais, essa mesma rede de TV desdenhou, debochou e desestimulou o uso da hidroxicloroquina, que, mesmo não tendo ainda comprovação científica, salvou a minha vida e, como relatos, a de milhares de brasileiros".
Não há nenhuma evidência de que tenha salvado a sua vida. Da mesma sorte, os milhares de relatos são pura fantasia de negacionista ensandecido.
Escreveu ainda no Facebook:
"Quanto à pandemia, não faltaram recursos, equipamentos e medicamentos para estados e municípios. Não se tem notícias, ou seriam raras, de filas em hospitais por falta de leitos de UTIs [Unidades de Terapia Intensiva] ou respiradores".
Trata-se de mais uma mentira — que, no caso, também pode ser tachada de homicida. Basta consultar o noticiário de cada dia.
Eis aí: ações, omissões e proselitismo raso que assumiram o risco de matar em massa. E que mataram. Genocídio.
Por Reinaldo Azevedo
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