O ministro Paulo Guedes ameaçou o presidente com o impeachment. Será que adianta? O problema, já escrevi aqui, não é de superfície: gastar menos ou mais. A questão é de fundo: o arranjo que está aí é um exotismo que não tinha como dar certo.
Ainda que compreenda alguns amigos liberais, inclusive da imprensa, que veem em Guedes um caminho, não me resta outra conclusão que não esta: ele também não sabia e não sabe ainda o que fazer. À parte aquela ideia geral de que é preciso menos estado e mais sociedade na economia, pouco há. E também por isso nada andou.
E se pode ir mais fundo. Falta uma coerência mínima num governo de ao menos três faces: a reacionária, a liberal-passadista (liberalismo ultrapassado) e a militar, com um pé no nacional-estatismo. Vira cruzamento malsucedido de vaca com jumento. O híbrido nem dá leite nem puxa carroça.
Por que gente como Salim Mattar e Paulo Uebel acharam que essa estrovenga poderia dar certo e que o "capitão" era o homem? Sei lá eu. Isso, um dia, talvez eles próprios possam responder. E Paulo Guedes? Por que ele apostou no sucesso da empreitada?
Aí há um acento particular. Sempre que se manifesta sobre política, Guedes é um reacionário exemplar. Aquela frase histórica sobre as empregadas povoando a Disney não foi um arroubo politicamente incorreto de alguém que faz do liberalismo um instrumento de progresso econômico e social. Certo! Meus amigos de esquerda dirão que tal corrente jamais será isso. É um ponto de vista. Não é o meu. Tanto como não é o meu o liberalismo de Guedes.
Nesta terça, o ministro resolveu expor parte das entranhas do governo:
"Se tiver ministro fura-teto, eu vou brigar com o ministro fura-teto"
O próprio Guedes lembrou a malfadada reunião do dia 22 de abril em que ele e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, acabaram batendo boca. Alinhado com os militares, desesperados para que o desastre não lhes caia sobre a cabeça — e vai cair —, Marinho quer aumentar os gastos públicos.
Com que roupa? O que está em disputa é o que fazer com o Orçamento no ano que vem. Confrontam-se os que pretendem prorrogar para 2021 o estado de calamidade — e, por consequência, ignorando o teto de gastos — e os que defendem que se recoloque o trem nos trilhos. No falatório desta terça, Guedes afirmou que o presidente está com ele.
Não, não está.
Bolsonaro percebeu o "milagre" — ou quase, já que milagre é efeito sem causa, e não é o caso — que os R$ 600 fizeram em sua popularidade. Mesmo exercendo a necropolítica, mesmo com a economia parada, mesmo com o desemprego e subemprego em escala assombrosa, o presidente viu a sua popularidade melhorar um tanto. E, bingo!, muito especialmente entre os mais pobres.
O (re)ajuste que Guedes quer fazer não é popular. Aí teremos montanha de mortos, mas com menos dinheiro circulando. O tal programa Renda Brasil precisa de recursos. O ministro da Economia, no seu reacionarismo assombroso, ainda tentou morder um pedaço do Fundeb, mas o Congresso não caiu na sua conversa.
Para o "Bolsonaro das Massas" fazer o que tem em mente, será preciso estourar as contas públicas, num ambiente em que as tais reformas, como se nota, estão emperradas.
Há um elemento adicional. O arranjo exótico que uniu liberal-passadistas, reacionários e nacional-estatistas parecia prescindir de base de apoio. Era falso. Quando o presidente decidiu ter os seus homens no Congresso, estava enxergando o risco do impeachment. Aí, então, teve de formar a bancada de proteção, que, por sua vez, não é exatamente fã de corte de gastos. Ao contrário: quer ainda mais grana.
Guedes lembrou uma frase sua -- real daquela reunião de 22 de abril, quando combateu os que queriam mais gastos, militares incluídos:
"Eu estava dizendo exatamente o contrário. Se o presidente quiser ser reeleito, nós temos que nos comportar dentro dos orçamentos, fazendo a coisa certa e enfrentando os desafios de reformas."
Ocorre que o ministro está perdendo a batalha. E reconheceu o peso dos adversários internos:
"E os conselheiros do presidente que estão aconselhando a pular a cerca e furar teto vão levar o presidente para uma zona de incerteza, para uma zona sombria. Para uma zona de impeachment, para uma zona de irresponsabilidade fiscal, e o presidente sabe disso. Então, o presidente tem nos apoiado."
É, não tem apoiado, não!
Bolsonaro só pensa na reeleição. E, para tanto, precisa de dinheiro. Há o risco de cometer pedalada e mandar à favas a Lei de Responsabilidade Fiscal? Há, sim. Mas acusação de crime de responsabilidade só prospera com o apoio de pelos menos dois terços da Câmara.
Segundo Marx, Luís Bonaparte, na condição de fatalista trágico, achava que há paixões às quais os soldados não resistem: champanhe e salsicha com alho. A seu modo, Bolsonaro acha que parlamentares sempre cedem à oferta de mais recursos.
Sim, o descontrole das contas pode ter um primeiro efeito positivo para o presidente, mas é evidente que a vaca acaba indo para o brejo, como foi o governo Dilma. Ainda que petistas queiram acusar a "articulação golpista", o fato é que não se depõe um governo bem sucedido e que não abusa da matemática, como sabe o Lula de 2005, que sobreviveu ao escândalo do mensalão e se reelegeu no ano seguinte.
Ou por outra: o caminho do ajuste das contas faz menos popular o governo Bolsonaro, que, por sua vez, só pensa em reeleição. A farra fiscal e a gastança podem ter um primeiro impacto positivo da popularidade, mas leva o país para um buraco mais profundo.
Aí é uma questão de velocidade. Dilma ainda se reelegeu em 2014. O segundo governo durou pouco. Nenhuma articulação golpista teria prosperado, caso tenha existido, sem o desastre econômico.
Sabe quem está certo no meio dessa barafunda? Ninguém! Liberais dignos desse nome não amarram seu projeto a Bolsonaro nem em nome do mal menor — até porque ele jamais será um mal menor. Bolsonaro, por seu turno, é só um liberal por conveniência — quando foi preciso seduzir o mercado financeiro. Em essência, seu pensamento econômico foi alimentado, como posso dizer?, com as migalhas que caíram do geiselismo — que é o que realmente pensam os militares.
Guedes ameaçar o presidente com o fantasma do impeachment é só sinal de desespero. E é também inútil.
Por Reinaldo Azevedo
Um comentário:
Agora dá para entender a icônica fotografia do presidente Jânio Quadros no dia de sua renúncia, quando olha para trás e fica com os pés torcidos. O Jânio já tinha perdido o rumo. Bolsonaro deve estar apavorado: estamos no mês de agosto, mês de cachorro louco, mês de fim de mandato de dois presidentes anteriores: suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1.954, e renúncia do Jânio em 25 de agosto de 1.961, justamente no Dia do Soldado. Olha a maldição mais uma vez rondando o Planalto Central...
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