sábado, 15 de agosto de 2020

Editorial do Estadão - Torpor moral




Bolsonaro desembarca em São Raimundo Nonato (PI)

A aprovação popular do presidente Jair Bolsonaro melhorou consideravelmente, segundo pesquisa recente do Datafolha. Passou de 32% em junho para 37% agora a parcela de brasileiros que consideram Bolsonaro “ótimo” ou “bom” mesmo com mais de 100 mil compatriotas mortos numa pandemia que poderia ter sido mitigada se o presidente não tivesse desdenhado da doença nem das vítimas; mesmo com a economia em ruínas e com perspectivas sombrias graças à falta de rumo do governo; mesmo com a destruição do Ministério da Educação, com efeitos avassaladores para o futuro do País; mesmo com a devastação da Amazônia a olhos vistos, estimulada pela leniência oficial; mesmo com a transformação do Brasil em pária internacional graças a uma política externa ideologicamente sustentável; mesmo com o sistemático descumprimento de todas as promessas de campanha, inclusive aquela que garantia que Bolsonaro não recorreria ao toma lá dá cá no Congresso; e mesmo com o aparecimento inexplicável de cheques suspeitos na conta da primeira-dama, algo que, em outros tempos e com outros personagens, causaria furor nacional.

Que a popularidade do presidente tenha aumentado entre os mais vulneráveis da população, justamente aqueles que dependem da ajuda do governo federal para atravessar as terríveis provações causadas pela pandemia, é compreensível, mas não deixa de ser amargo: trata-se da comprovação de que uma parcela significativa dos brasileiros se dá por satisfeita e fica feliz com o governo quando tem o que comer.

Mas Bolsonaro melhorou seu desempenho também em segmentos sociais de maior renda, e sua rejeição, no geral, recuou de 44% para 34%. No conjunto, o presidente desfruta da maior popularidade desde que começou a governar. A relevante alta de seus índices de aprovação coincide com sua mudança de atitude política: em lugar da histrionice autoritária que vinha caracterizando seu comportamento, para alegria dos camisas pardas bolsonaristas e desespero do resto do País, Bolsonaro parou de criar uma crise por dia, calando-se e aproximando-se de partidos fisiológicos para garantir apoio mínimo no Congresso.
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Ou seja, Bolsonaro tornou-se mais popular não em razão de algo extraordinário que tenha feito à frente da Presidência, mas como consequência do que deixou de fazer. Isso mostra que o País vive uma espécie de torpor moral, em que grande parte de sua opinião pública considera as múltiplas barbaridades cometidas pelo presidente, jogando inclusive com a vida de seus concidadãos, não só aceitáveis, como irrelevantes, a ponto de passar a caracterizar seu governo como “ótimo” ou “bom” – embora seja o pior da história recente, por qualquer critério que se use.

Essa confusão de valores morais permite que Bolsonaro não se preocupe nem mesmo com a lei. Pois o presidente, horas depois de prometer que respeitaria o teto de gastos públicos – inscrito na Constituição –, disse em uma rede social que “a ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?”. Ou seja, para Bolsonaro o cumprimento da lei é algo passível de “debate”, estabelecendo, portanto, o vale-tudo como parâmetro de administração e de política.

Quando parte da sociedade perde a capacidade de se escandalizar com tamanho desdém pelos valores que lhe deveriam ser mais caros – a vida, a democracia e a lei –, sistematicamente vilipendiados pelo presidente Bolsonaro, não se augura boa coisa. Mas é preciso insistir: um governante “ótimo” ou “bom” é aquele que assume a responsabilidade pelos destinos do país, especialmente em meio a uma grave crise como essa, sem ficar o tempo todo buscando culpados por seus próprios erros; é aquele que dá um norte claro para sua administração e procura agregar as melhores experiências, em vez de dividir a sociedade em “nós” e “eles”; é aquele que sabe que a solução para os problemas não é fruto de iluminação messiânica, e sim de árdua negociação política, democrática e institucionalizada; e por fim, mas certamente o mais importante, é aquele que consegue se colocar no lugar de seus governados.

Editorial de O Estado de S. Paulo (15/8/2020)

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