Pouco importa saber se serão 100 mil, 200 mil ou dois milhões. Já sabemos que a Bozolândia chamará a manifestação golpista de amanhã de "o maior evento político da Terra", visível até do espaço, o que, saibam, a Muralha da China nunca foi. Mas o que quer, afinal, Jair Bolsonaro? Trata-se de um esforço para transformar a opinião extremista de uma bolha — grande e fanática, reconheça-se — num falso consenso nacional. A demonstração de força tem o objetivo de contaminar a opinião pública, de modo a devolver o presidente ao jogo eleitoral. Hoje, como resta evidente, ele é apenas candidato a eleger Luiz Inácio Lula da Silva presidente da República. Em algumas simulações, isso poderia acontecer até no primeiro turno.
Uma nota rápida antes que retorne ao leito. As eleições ainda estão distantes, e muita coisa pode, com efeito, acontecer. Ocorre que os eventos vindouros, muito especialmente os da economia, são adversos para Jair Bolsonaro. A inflação está corroendo o ganho dos trabalhadores nas mais diversas modalidades de contratação e regime de trabalho. Ação do Banco Central na gestão das expectativas dos tais "agentes do mercado" só enxerga um remédio: elevar a taxa de juros. A elevação, como resta evidente, não devolve os preços que interessam ao seu leito e compromete o crescimento do ano que vem. Se, até havia dois meses, o presidente ainda contava com a retomada da economia como trunfo para uma eventual reeleição, bem, não conta mais. Isso ele não terá. E há o ônus adicional do que estava por aí fazia tempo, mas sem ainda se mostrar: a crise energética. Se o país fosse crescer ao ritmo prometido por Paulo Guedes, o apagão seria certo. Com o crescimento de 2022 deprimido, é apenas uma forte possibilidade. De resto, à sua maneira, já existe um apagão: aquele determinado pelo tarifaço, que não irá embora tão cedo. Voltemos ao leito.
DE VOLTA AO LEITO
Então é preciso mesmo fazer alguma coisa. Que Bolsonaro nunca teve apreço pela democracia e alimentava uma perspectiva golpista de exercício do poder, convenham, não é uma novidade. Setores expressivos da população, especialmente das "elites de renda", o escolheram como primeira alternativa ainda assim. Emprego a expressão entre aspas porque ela não circula por aí como um conceito econômico. E cumpre fazer uma pequena consideração a respeito.
Chamo "elites de renda" parcela expressiva dos endinheirados brasileiros que, no entanto, não circulavam — em certa medida, não circulam ainda — nas altas rodas. Podem até ser formadores de opinião, mas essa opinião não consegue se expressar na imprensa ou mesmo em fóruns de representação classista. Tomo como exemplo os ultrarreacionários estratos da produção rural brasileira. Não chegam a imprimir a seus sindicatos e órgãos de representação o que realmente querem: golpe de estado, o poder centralizado na mão de ferro de um presidente e a repressão a demandas dos que estão à margem do processo produtivo. A rigor, a única entidade de representação que expressou, com sem-vergonhice escancarada, a sua adesão ao golpe foi mesmo a Fiemg (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais). Imediatamente após, um grupo de empresários, incluindo o bolsonarista Salim Mattar, fez um manifesto em que prega apreço à democracia.
Assim, o autoritarismo de Bolsonaro e sua aspiração autocrática nunca constituíram segredo. A primeira manifestação de rua, incitada por ele, contra o Congresso e o Supremo, data de 26 de maio de 2019. Lembro que um dos alvos principais daquele ato era Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, que foi figura central na aprovação da reforma da Previdência, sem a qual o mercado teria feito picadinho do governo logo no primeiro ano. As negociações estavam em curso. O texto só seria promulgado pelo Congresso no dia 12 de novembro. Mesmo assim, o presidente da República instigava a cachorrada contra as instituições. O paroxismo do proselitismo golpista, naquela primeira jornada, se deu no dia 19 de abril de 2020, com um discurso do presidente num ato em favor da intervenção militar em frente do QG do Exército, em Brasília. O ânimo golpista do fanfarão só foi refreado pela prisão de Fabrício Queiroz, no dia 18 de junho daquele ano.
A SEGUNDA JORNADA
Com os livramentos parciais e temporários com que a Justiça beneficiou tanto Fabrício como Flávio Bolsonaro, o presidente retomou a sua escalada. Ainda que ele tenha uma atuação destrambelhada e, muitas vezes, sem nenhum método, foi esperto o suficiente para perceber que só o Supremo poderia representar um freio a suas aspirações. O correto, legal e falsamente polêmico Inquérito 4.781, o das fake news, se transformou no seu tormento. Diante de uma PGR inerme e contando com a ajuda involuntária de alguns liberaloides do miolo mole -- que confundem crime com liberdade de expressão --, Bolsonaro percebeu que só há uma barreira de contenção às suas aspirações golpistas: o tribunal.
Notem: quando escrevo "só há uma barreira", observo que excluo de forma deliberada o povo que vai às urnas votar. Esse não aparece na conta de Bolsonaro porque o objetivo do golpe é justamente excluir a vontade popular da história. O ataque às urnas eletrônicas — na verdade, ao sistema eleitoral, mimetizando o que fez Donald Trump nos EUA; e lá sem voto digital — sempre foi o que essencialmente é: a criação de um fantasma que permita judicializar o resultado, impedindo que outro qualquer chegue à Presidência que não ele próprio.
GOLPISTA NÃO DEPENDE DE RESULTADO, MAS...
Um golpista é um golpista, na saúde e na doença, na alegria ou na tristeza. Ainda que as perspectivas fossem as melhores possíveis -- como aos tontos pareciam em 2019, por exemplo --, não seria outro o intuito do ogro. Reitere-se: antes de completar seis meses de governo, suas tropas estavam nas ruas a defender golpe de Estado. E os tais "agentes econômicos" -- leiam-se: setores expressivos do capital produtivo e financeiro -- viam um futuro sorridente para o Brasil. Nem mesmo havia demandas explícitas a opor o Executivo ao Legislativo ou ao Judiciário.
Evidencio, assim, que o golpismo de Bolsonaro não decorre do insucesso de seu governo. Essa é sua natureza política, e existe uma parcela expressiva da população que aderiu a essa pauta. Ocorre que a gestão desastrada — e a pandemia extremou e escancarou a falta de rumo — tornou urgente o assalto às instituições. Com números virtuosos na economia, talvez o fanfarrão pudesse esperar um segundo mandato. Mas há o risco razoável — hoje, é o mais provável — de que ele não tenha uma segunda chance. Então é preciso fazer já.
FRUSTRAÇÃO
Autoritários e tiranos mais poderosos e intelectualmente mais preparados do que Bolsonaro fizeram coisas estúpidas antes dele.
Uma pergunta: as caravanas de golpistas que se deslocam para São Paulo e, muito especialmente, para Brasília estão preparadas para voltar para casa no dia 8, começando a arrumar as malas ainda no dia 7, sem que o seu Napoleão de hospício tenha sido entronizado? O líder preparou seus sectários para a frustração? Tenho a impressão de que não. Há, na mentalidade estreita dos golpistas, a expectativa da apoteose. E não consta que ela virá. É grande — e não deixa de ser o único e possível desdobramento virtuoso de toda essa patuscada — a chance de que parte considerável dos fanáticos passe a ver o seu homem inoxidável com um tigre de papel.
Bolsonaro está, em suma, numa cartada para voltar a ser eleitoralmente competitivo, mas os sentimentos e a massa que mobiliza querem um desfecho rápido e violento, característica imanente a esses movimentos de inspiração fascistoide, que desprezam por princípio a política. A sua mentalidade, insisto na palavra, é do assalto ao poder. Especialmente porque — e esta e outra característica desse tipo de mobilização —, estarão nas ruas os que se sentem insultados e injuriados por Poderes que consideram ilegítimos. Bolsonaro os convenceu de que estão, na verdade, organizando um contragolpe. Os espertalhões sabem muito bem o que fazem. Mas a massa de fanáticos está convencida de que se entrega a uma luta por Justiça.
CONCLUO
Mesmo com tudo o que há de estúpido, violento e insano no discurso de Bolsonaro, ele está numa jornada que ainda prevê uma gradação. O intuito é assustar os adversários e os Poderes com o seu exército -- na esperança de seduzir o outro, o com "E" maiúsculo -- para intimidá-los, arrancando concessões. Mas mobilizou uma horda de fanáticos impacientes, que buscam a vitória já.
Todo cuidado é pouco. É grande, sim, a chance de que essa gente tente tomar na unha o que lhe parece correto e justo, estimulada por seu guia. Que Supremo e Congresso tenham de estar, como estarão, protegidos por forças de segurança — vamos ver se suficientes — para que não sejam invadidos pelos partidários do presidente já indica, por si, o estado miserável a que Bolsonaro conduziu a democracia brasileira.
Nem precisamos ir muito longe. Independentemente do juízo que se faça do impeachment de Dilma, o fato é que as imediações do Congresso foram divididas em duas metades, cada lado ocupou o espaço que lhe foi reservado, e, em nenhum momento, se temeu pela integridade do prédio — simbolizando, nesse caso, o Poder Legislativo. No dia da votação na Câmara, o resultado era mais do que previsto. Já era dado como certo. Vitoriosos e derrotados jogaram dentro das regras, ainda que correntes de esquerda insistam na tese do golpe. Não debato isso agora porque não cabe. O fato: a guerra não aconteceu. Fez-se depois a luta política. E eis um Lula, de novo, favorito.
É que política é o avesso do golpe e da disrupção. E isso, fiquem certos, parcelas consideráveis do bolsonarismo jamais entenderão. Nunca quiseram vencer a divergência. O seu intuito, sob inspiração do líder, é eliminá-la. É grande, pois, o risco de que sua postulação degenere em violência contra as instituições e contra os adversários.
Afinal, suas certezas não são deste mundo.
Por Reinaldo Azevedo
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