O discurso de Jair Bolsonaro, na cerimônia dos "Mil Dias" — ou 1.001 — não se limitou às duas grandes indignidades de que já tratei: 1) pedir desculpas a seus golpistas porque, afinal, não tem o comando das Forças Armadas para coisas ilegais; 2) usar o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para praticar negacionismo. Ficou evidente que o presidente deu largada à campanha eleitoral.
Ele tentou disfarçar. Mas é sincero às vezes: por distração, não por cálculo ou alguma outra qualidade imanente. Lançou, na cerimônia, a cruzada contra o PT. Até aí, ok. Não são mesmo coisas que se misturem. Ocorre que o fez num discurso oficial, ao anunciar uma jornada de viagens e eventos que será financiada com dinheiro público.
A propaganda eleitoral antecipada começou nesta segunda e terá sequência nas viagens país afora que ele próprio anunciou. Apresentou-se, ainda, como o único candidato com chances de vencer os petistas. Nesse caso, tenta matar a tal terceira via ainda na semente. A íntegra do evento está aqui.
Num discurso confuso — em que o "lé" buscava outro "lé" e dava de cara, invariavelmente, com o "cré" — brandiu o fantasma da venezuelização do país caso o PT vença as eleições — o que, note-se, é uma rematada bobagem. Mais Bolsonaro tentou seguir no Brasil certos padrões de Hugo Chávez do que Lula ou Dilma, e não seria difícil demonstrar.
Afirmou:
"Não pensem [que] o que acontece com certos países no mundo não pode acontecer com o Brasil. Quem diria que, nos anos 90, que a nossa riquíssima, integrante da Opep, Venezuela, também riquíssima em minerais, chegasse à situação que chegou hoje em dia. Assim acontece com outros países (...)"
Vale a pena um comentário rápido. Bolsonaro nada sabe ou entende de Venezuela. Chávez era um tiranete, e o regime vigente naquele país é uma semiditadura. Mas cabe indagar: como é que o "líder bolivariano" chegou ao poder por meio de eleições? Corrupção, pobreza e desigualdade preparam o terreno. Sugerir que a Venezuela foi do céu ao inferno é uma tolice e uma mentira. Tenta, é claro!, sugerir que o PT buscaria modelo semelhante por aqui.
Curioso, não? Lula governou por oito anos. Dilma, por pouco mais de cinco. Nunca se ameaçou intervir no Supremo, tratorar o Congresso ou submeter tribunais à vontade do mandatário. Chávez, de fato, fez tudo isso em seu país. E, ora, ora, Bolsonaro tentou fazer o mesmo, a seu modo, no Brasil. E igualmente com o auxílio de milícias mobilizadas contra a democracia. O modelo que o "Mito" tinha na cabeça era uma espécie de bolivarianismo de extrema direita. Mas voltemos à sua fala.
"COMO ESTARÍAMOS?", ELE QUER SABER
E Bolsonaro prosseguiu:
"Se a facada fosse decisiva naquele momento, é só imaginar quem estaria no meu lugar: o perfil dessa pessoa; o seu alinhamento com outros países do mundo, em especial aqui da América do Sul, onde nós estaríamos agora? E o futuro do nosso Brasil passa por quem vocês, um dia colocar (sic), obviamente, para pilotar esse grande país."
Ao falar tolices sobre 2018, dá, vamos dizer, as "pegadas" da campanha do ano que vem. É claro que Bolsonaro está sugerindo que, tivesse ele morrido, o PT teria vencido a eleição. Quem conta a história que não houve? Bronco e despreparado como é, foi eleito, sim, com votos dados à pauta de extrema direita, mas o que determinou a sua vitória foi o forte sentimento antipetista de 2018.
Tivesse morrido naquele ataque, eleitores dispostos a votar contra o PT migrariam automaticamente para Fernando Haddad? Insisto: aquilo que não aconteceu fica para a imaginação e para a especulação. Mas a lógica indica que, sem o "Mito", outro candidato conservador disputaria o segundo turno com o petista. E talvez o vencesse com mais facilidade. Reitere-se: são divagações sobre o que jamais saberemos. Resta mesmo é a pergunta de Bolsonaro: "Onde nós estaríamos agora?"
Deixem-me indagar:
- com inflação de alimentos acima de 17%?;
- com produtos da cesta básica subindo 50% em 12 meses?;
- com mais de 14 milhões de desempregados?;
- com a gasolina nos cornos da Lula?;
- com 19 milhões de pessoas passando fome?;
- com o botijão de gás transformado em artigo de luxo?;
- com 600 mil mortos por covid-19?;
- tentando dar calote nos precatórios para furar teto, numa espetacular pedalada?;
- com um presidente tendo de se desculpar com suas milícias porque não conseguiu dar o golpe?;
- com um presidente pregando tratamento vigarista contra covid-19?
Ufa! Ainda bem que Bolsonaro nos livrou de todos esses sortilégios!
NÃO É O MELHOR. É DEUS
E Bolsonaro prosseguiu:
"Estamos acompanhando já os debates antecipados para 22. Eu sou melhor? Não! Aqui mesmo tem dezenas de pessoas melhores do que eu. Se for olhar para o Brasil, são milhares de pessoas melhores do que eu. Mas quis o destino que caísse o governo, né, a Presidência... ficasse comigo, sobrevivendo à facada, uma eleição completamente atípica, que não vai acontecer nos próximos 100 anos outra igual a essa, e nós devemos aproveitar a oportunidade que Deus nos deu."
Notem que ele se considera mesmo uma obra divina.
Há uma primeira verdade aí. Há milhares de pessoas melhores do que ele para governar o país. Há uma segunda verdade: a eleição foi mesmo atípica. Afinal, aquele que liderava as pesquisas e que poderia batê-lo nas urnas foi condenado por um juiz incompetente e suspeito, que aceitou ser seu ministro da Justiça sete meses depois de determinar a prisão do tal adversário... Não consigo pensar em nada mais atípico do que isso.
De fato, não vai se repetir. Nem em 100, 200 ou 300 anos.
Na sequência, Bolsonaro reconhece alguns problemas do seu governo — preço dos combustíveis, dos alimentos, dólar nas nuvens—, mas assegurou que não tem nada com isso.
O OUTRO CARA
Retomou o ataque ao PT:
"Imaginem se outro cara, que ficou em segundo, estivesse aqui. Já teria imposto o passaporte da vacina no Brasil ou não? Eu acho que não precisa responder para vocês. Porque os seus assemelhados em outros países fizeram isso daí. Não tem coisa mais importante do que a liberdade para todos nós.
O passaporte da vacina, que tem de ser implementado aos poucos, aguardando a vacinação plena, é uma questão civilizatória. Parece-me, sim, razoável que Bolsonaro se oponha a ele em nome do que a extrema direita chama "liberdade" mundo afora.
Liberdade de quê? De contaminar terceiros? De contribuir para a circulação do vírus? De pôr a vida alheia em risco?
Não é liberdade. É crime.
E AGORA O FANTASMA
Bolsonaro se apresenta como o único nome capaz de vencer o PT. Leiam:
"Agora tem um desgaste para o futuro. Vai disputar a reeleição ou não? Eu não vou entrar nessa guerra ainda. Agora, eu fora de combate, quem sobra para [enfrentar] o outro lado? Tem alguém do perfil semelhante ao meu? Alguns podem perguntar (sic): 'Graças a Deus não tem'. Eu não tenho que debater contigo (sic). Você já sabe qual o filme do futuro porque você viveu 14 anos passados esse filme. E podem ter a certeza: não serão apenas mais 14 anos. Serão no mínimo 50. É isso o que nós queremos para a nossa pátria?".
Pela ordem:
- já entrou na guerra;
- está em campanha faz tempo e deu uma espécie de largada oficial -- e ilegal -- nesta segunda;
- ninguém tem mesmo perfil semelhante ao seu porque isso Deus faz uma vez e joga, assustado, a receita fora.
Vejam ali: Bolsonaro diz que o PT pretende ficar 50 anos no poder. Bem, todo partido sempre quer vencer. Se estiver no poder, nele quer continuar. Angela Merkel faz um governo eficiente há 16 anos. Mas deixo isso para outra hora. Vamos aos fatos.
1: Lula teria condições, se quisesse, de emplacar a emenda para a segunda reeleição. Não o fez;
2: Dilma foi impichada, e os petistas deixaram o governo sem qualquer ameaça à ordem;
3: Lula foi condenado e preso. Nem tentou fugir nem propôs enfrentamento;
4: dos 17 processos de que o ex-presidente se tornou alvo, resta apenas um ativo. Venceu a maioria na Justiça Federal, não no Supremo;
5: o líder petista constituiu advogados, não propôs luta armada.
O PT ficou pouco mais de 13 anos no poder e o deixou quando o Parlamento assim decidiu. Em paz.
O primeiro ato das milícias bolsonaristas, estimulado pelo Planalto, pregando fechamento do Congresso aconteceu em 26 de maio de 2019. E o ogro não parou mais. Até a carta de rendição.
Bastaram dois anos no exercício do poder, e Bolsonaro pôs em dúvida a realização das eleições de 2022. E a possibilidade de um golpe, que sempre achei impossível, começou a ser discutida abertamente.
Bolsonaro, ele sim, tentou pôr fim à alternância de poder.
Bolsonaro, ele sim, tentou dar um golpe.
Bolsonaro, ele sim, tentou pôr fim à democracia.
ENCERRO
Aquilo a que se viu nesta segunda foi o primeiro ato de uma sequência que caracteriza, de maneira escancarada, campanha eleitoral antecipada.
Resta evidente nas palavras do presidente, acima transcritas. Não é uma interpretação. É um fato.
Por Reinaldo Azevedo
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