O ator Nino Manfredi no papel de Giacinto Mazzatella, o pai amoral de uma família amoral A sociologia que explica o Brasil é outra |
Vocês já assistiram ao filme "Feios, Sujos e Malvados", do italiano Ettore Scola? Não? Recomendo. Ainda voltarei a ele. Sigamos.
Acompanhamos todos um tanto perplexos, mas não surpresos, às afirmações do ex-faz-tudo dos Bolsonaros, Marcelo Luiz Nogueira dos Santos, em entrevista à equipe do Metrópoles. Algumas de suas declarações coincidem com informações já publicadas pela jornalista Juliana Dal Piva, do UOL, sobre a, por assim dizer, vida secreta do clã. Reportagem da Folha publicada em 2018 informava o desempenho invulgar da família na aquisição de imóveis. E, como se sabe, o progresso nessa área não parou. Flávio está numa mansão comprada por R$ 6 milhões — e há quem diga que imóvel igual não custa menos de R$ 14 milhões. Ana Cristina, a segunda ex-mulher do presidente, pivô do que agora vem à luz, acaba de se mudar para outra mansão — supostamente alugada. Segundo Santos, o imóvel é dela.
Se o que afirma o ex-empregado — que não se assume como fantasma porque sustenta que exercia, sim, funções no gabinete de Flávio, mas devolvendo 80% do salário — dissesse respeito apenas à vida privada do casal e da família, muito bem! O conjunto da obra poderia ficar restrito às colunas de fofocas. A Internet se diverte a valer, por exemplo, com o fato de que o agora presidente, então deputado, teria sido traído por um segurança da família, o bombeiro Luiz Cláudio Teixeira, homenageado, por sua vez, pelos então, respectivamente, deputado estadual e vereador, Flávio e Carlos Bolsonaro. Se essa família não existisse, Freud a encomendaria à Psicanálise para fazer estudo de caso...
Ocorre que não se trata de assuntos da vida privada. A lambança que teria unido a família — de patrimônio, reitere-se, invulgar — envolve dinheiro público. No testemunho de Santos, Ana Cristina seria a responsável pela profissionalização, no ambiente da família, do sistema conhecido por "rachadinha", mas que não tem esse nome, não, no Código Penal. Trata-se do Artigo 312: peculato.
O ex-funcionário — que nunca teve carteira assinada ou vínculo empregatício e vivia meio agregado à família, em condições que o Ministério Público costuma considerar análogas à escravidão — afirma que Ana Cristina centralizava a arrecadação de recursos dos funcionários dos gabinetes de Flávio e Carlos, mas isso em nada livra a cara de Bolsonaro se verdade for.
Até porque, assegura Santos, depois que foi descoberta a traição, o agora presidente passou o esquema para o controle da dupla. Diz ele que era proibido tocar no assunto com os políticos da família. Só Ana Cristina tomava decisões. Ora, faz sentido que assim fosse. O esquema, que até Fabrício Queiroz admitiu que existia — mas ele diz que para outros propósitos, claro! —, era criminoso. E não fazia sentido comentá-lo abertamente.
Santos diz que trabalhava e tinha 80% do salário confiscado, mas assegura que a penca de familiares de Ana Cristina lotada nos gabinetes não tirava os pés de Resende, no Rio. Eram, mesmo, fantasmas e ponto. E seus nomes estavam listados entre os funcionários apenas com o propósito de capturar o dinheiro público. "Ah, e se Bolsonaro não sabia?" A pergunta nem sentido faz, não é? Não seria essa uma das origens da milagrosa multiplicação de patrimônio?
O GOLPE E OS MORALISTAS
Estamos aí às vésperas da tal manifestação golpista de 7 de Setembro. Ainda nesta sexta, o presidente voltou a ameaçar ministros do Supremo. A suposição, sempre, é a de que ele e as Forças Armadas formam uma unidade. Caso, então, os demais Poderes da República -- o STF em particular -- não façam o que ele quer, vem o golpe.
Fico cá a imaginar os respectivos comandantes das Três Forças a pôr seu bloco na rua para, entre outras coisas, em nome da moralidade do Brasil, impor censura ao noticiário sobre a rachadinha. Afinal, a honra do "Comandante Supremo" não poderia ser maculada por sua própria biografia, não é mesmo? Que Bolsonaro tenha envenenado a cúpula das Forças Armadas, mobilizando-as contra o Supremo, bem, isso é um fato. Pesa, claro!, a incompreensão desses senhores sobre o papel do tribunal e, em certa medida, o seu próprio papel, segundo designação constitucional, especificada por lei complementar e decreto.
Mas voltemos ao ponto: que os fardados tenham de tolerar, dentro das regras do jogo democrático, um "comandante supremo" com o qual não concordam ou de que não gostam muito, vá lá. Que tenham de se subordinar a alguém de passado duvidoso no jogo da política, bem, isso é da natureza do processo. Mas pergunto: o ex-patrão de Marcelo Luiz Nogueira dos Santos mobilizaria as tropas em favor de um golpe exibindo como cartão de visitas a sua moral ilibada, a sua reputação, os seus bons costumes?
Não que exista biografia boa o bastante que justifique uma quartelada — até porque, se boa de fato, não se mete em assalto às instituições. Mas mesmo os crimes que se cometem em nome da honra da pátria precisam de um mínimo de verossimilhança em matéria de pessoas honradas, não é mesmo, senhores oficiais-generais? Haverá entre vocês os dispostos a rasgar a Constituição, dado o contexto? Como chamaríamos a quartelada? "Rachadão da Rachadinha"?
DE VOLTA AO FILME
Aproveitem o feriado prolongado para tentar assistir ao filme "Feios, Sujos e Malvados", do genial Éttore Scola. É verdade que se retrata ali um estrato social bem mais pobre do que essa gente de que se fala aqui. É uma circunstância importante, mas que não define a absoluta amoralidade das personagens. Estas -- todas elas, sem exceção -- assombram pela ausência de limites, de pruridos, de empatia.
São mesquinhas, vis, oportunistas, desagradáveis... malvadas. Há, claro, uma dimensão sociológica no filme — os marginais no processo de modernização da Itália — que têm de ser revista quando pensamos os nossos "feios, sujos e malvados". O filme faz um recorte do que Marx poderia chamar de "lumpemproletariado".
Eu me atenho, nessa associação, à dimensão psicológica de personagens asquerosas que ganharam uma voz política e que hoje ameaçam, com desassombro, a ordem democrática em nome do que chamam "restauração moral" do país. O Brasil assistiu, na vida pública, à ascensão do "lumpembolsonarismo".
Onix Lorenzoni, o ministro que tentou passar uma rasteira nos trabalhadores brasileiros — de modo que milhões poderiam ter o regime de trabalho no qual se encontrava Marcelo Luiz Nogueira dos Santos — discursou na abertura do tal evento conservador liderado por Eduardo Bolsonaro. E lá ele disse: "Somos nós contra eles". Referia-se, parece, ao PT. Mas eles chamam "PT" a qualquer um que não comungue de sua cartilha.
Em certa medida, isso está mesmo certo: são eles contra nós.
Por Reinaldo Azevedo
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