Escrevi na manhã desta segunda um texto sobre o que chamei "Os 1.001 e dias e noites" de horror do governo Bolsonaro. Afirmei que nem mesmo a sua espetacular ruindade poderia pôr em segundo plano a evidência de que as duas características principais da gestão são o golpismo e o negacionismo. E, por óbvio, essa gente terá de responder por isso.
O Palácio do Planalto preparou uma pajelança para marcar a data. E agora haverá uma agenda de viagens do presidente, que, obviamente, tem todas as tintas e características de campanha eleitoral antecipada, com dinheiro público. Que as instâncias adequadas sejam acionadas. Quero me fixar no evento em si. Bem, não havia acontecido ainda quando escrevi, mas já dava para adivinhar: golpismo e negacionismo estiveram no centro do discurso do presidente — e, como está demonstrado, também antecipou a campanha eleitoral de 2022. Dado que é uma solenidade oficial e com discurso público, o crime eleitoral é patente. Voltarei ao ponto em outro texto.
Falaram, antes de Bolsonaro, Pedro Guimarães, presidente da Caixa (à distância porque está com Covid-19); Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral); João Roma (Cidadania); Paulo Guedes (Economia) e Ciro Nogueira (Casa Civil). Há particularidades a destacar dessas falas, mas não neste artigo. O sotaque era, digamos, administrativista, a indicar quão operoso é o governo. O titular da Economia, claro!, resolveu fazer voos políticos. Com a habilidade costumeira. Mas me fixo em Bolsonaro.
O GOLPSIMO
Ah, sim, ele está mais contido. Tenta fingir um perfil institucional. Fala mais pausada, mais contida, convocando, desde já, o antipetismo a entrar em ação -- sabem como é... Há o receio de que surja, à direita, uma alternativa a seu nome. Mas é quem é. Dois momentos têm de ser destacados.
O presidente resolveu explicar a seus extremistas por que, afinal de contas, não deu o quase prometido golpe de estado -- segundo Guedes, isso não passa de um "script" da imprensa; o presidente seria um democrata exemplar. Bolsonaro referiu-se aos militares nos seguintes termos:
"As Forças Armadas estão aqui. Ela (sic) está a meu comando? Sim, é meu comando. Se eu der uma ordem absurda? Elas vão cumprir? Não! Nem a mim nem a governo nenhum! E as Forças Armadas têm de ser tratadas com respeito. Quando criaram a [Ministério da] Defesa, em 1999, não foi por uma necessidade militar. Foi por uma imposição política. Para tirar os militares desse prédio. Alguns criticam que eu botei militar demais [no governo], mais até do que nos governos de Castelo Branco a Figueiredo. Sim, é verdade! É meu círculo de amizades. Assim como de outros presidentes foram de outras pessoas. Era o círculo de amizades deles. Comparem hoje todos os nossos ministros, incluindo os civis, com os que nos antecederam. É simples".
RETOMO
Antes que vá ao essencial, considerações rápidas:
1: Comparar ministros? Devemos começar por Eduardo Pazuello ou Marcelo Queiroga?. Aliás, Bolsonaro deveria pedir essa comparação a Ciro Nogueira, segundo quem, em fala da campanha de 2018, Lula havia sido o maior presidente da história do Brasil:
2: os generais da ditadura tinham qual círculo de amizades para ter menos milicos no governo?;
3: Ministério da Defesa é cargo político, não militar. Logo, a Defesa não haveria mesmo de ser criada por "razões militares".
Mas vamos à questão essencial do trecho: Bolsonaro está dizendo a seus fanáticos por que não deu o golpe de Estado. Ele simplesmente não seria obedecido, como não foi quando ordenou, segundo o ex-ministro Raul Jungmann, que um caça desse um rasante na Praça dos Três Poderes para quebrar os vidros do prédio do Supremo.
Vejam a fala do presidente na íntegra no fim deste post. É uma espécie de grande lamento sobre suas impotências. Disse que nada pode sobre o preço dos combustíveis. Disse que nada pode sobre a inflação. E explicou, finalmente, que nada pode sobre... golpe de estado. Como fica evidente, se pudesse, daria. Mas... A sua fala compassiva, em tom aparentemente lamentoso, busca refazer pactos com os seus extremistas, como a lembrar: "Ainda sou eu que estou aqui; lembrem-se de quem eu sou. Mas não posso tudo".
O NEGACIONISMO
Bolsonaro segue o negacionista de sempre. O discurso saiu descosturado, sem nexo ou ideias principais e secundárias.
Depois de reclamar da demissão de um militante bolsonarista, dispensando de uma emissora de televisão por ter contado mentiras sobre o tratamento precoce, o presidente resolveu contar uma historinha que considerou edificante:
"Nos EUA, na iminência de retornamos para cá, chegou pra mim, em primeiro lugar, o nome do Queiroga, que estava ali infectado. E eu fui no quarto do Queiroga. Estava arrumadinho, cheiroso, bonitinho, feliz. [Falei]:
-- E daí, Queiroga, tudo bem contigo? Tomou a vacina?
-- Tomei.
Costumo brincar com ele, né?
-- Dormiu de máscara?
Ele sorriu. Todo mundo sabe que raramente ele tira a máscara. Falei:
-- Você está infectado. Infelizmente, não vai poder viajar conosco!
Não vou falar tudo o que conversei com ele. Mas me dirigi a ele e falei o seguinte:
-- Você vai seguir o protocolo do Mandetta: esperar sentir falta de ar para procurar um médico ou vai partir para um medicamento qualquer outro agora? Não vou responder a vocês o que ele me disse."
Bem, ele está sendo pusilânime sobre o que chama "protocolo de Mandetta". Era o que recomendavam a OMS e a comunidade cientifica então para evitar corrida desesperada aos hospitais. Mas isso remonta aos primeiros tempos da pandemia. A orientação mudou há muito tempo.
É uma fala asquerosa, nojenta! Ataca o uso de máscara e põe em dúvida a eficácia da vacina, embora ele vá dizer mais adiante que a intenção não era essa. Importa o que disse, não o que afirmou ter querido dizer.
Releiam. Se Queiroga tivesse, então, dado uma resposta que está de acordo com o saber firmado da ciência, por que Bolsonaro a omitira? Afirma, de modo indireto, que seu ministro da Saúde, um médico, está tomando uma ou mais drogas do "Kit Covid", comprovadamente ineficaz contra a doença.
Queiroga é fiel a seu senhor, mas não é louco. Duvido que esteja. Mas duvido também que vá desmentir o presidente. Qual é o "medicamento" contra a Covid, que não aqueles que servem para minorar sintomas da doença ou que atuem contra moléstias ou pré-existentes, que podem se tornar mais agudas, ou males oportunistas? Bolsonaro, obviamente, não está se referindo a essas drogas.
Aí emendou:
"Não tou contra a vacina. Se tivesse contra, Paulo Guedes, não teria assinado a Medida Provisória de dezembro do ano passado, destinando R$ 20 bilhões para comprar a vacina. Mas nós respeitamos a liberdade. Por mais que me acusam (sic) de atos antidemocráticos, são apenas acusações. Ninguém mais do que eu respeita o direito de todos. A vacina não pode ser obrigatória. Tereza Cristina tomou as vacinas e está em casa. O Bruno Bianco, a mesma coisa. O meu filho Eduardo Bolsonaro, a mesma coisa. Ainda há uma grande incógnita nisso daí. Prato feito para a imprensa dizer que eu sou negacionista. É a liberdade. Tem certas coisas que você tem ou não tem".
RETOMO
Assiste alguma razão a Bolsonaro: há certas coisas que você tem ou não tem. Cito exemplos: decência, vergonha na cara, honra... Não se tem pela metade.
Se ele tivesse decidido não comprar a vacina, já teria caído. A saúde é um direito constitucionalmente assegurado. Não comprou as vacinas por gosto, mas por imposição dos fatos. E o fez tardiamente, como a CPI comprovou, enquanto o Ministério da Saúde era colonizado por canalhas.
Obviamente, põe em dúvida a eficácia da vacina, o que é desmentido no Brasil e no mundo. O imunizante só é uma incógnita para negacionistas que fazem discursos filo-homicidas, como o que vai acima.
Ainda que a fala sobre a suposta liberdade de contribuir para a proliferação do vírus fizesse sentido, cumpriria indagar: o que isso tem a ver com a eficácia das vacinas?
ENCERRO
Escreverei depois sobre outros aspectos do discurso dos "Mil Dias". Mas ali está Bolsonaro. Não aprendeu nada. Não esqueceu nada. Em tom quase choroso, deixa claro a seus extremistas que as Forças Armadas não o obedeceriam se resolvesse virar a mesa. E continua fiel à agenda da extrema direita mundo afora: negacionista e antivacina. Um discurso que foi fragorosamente derrotado, por exemplo, nas eleições alemãs. E que será aqui também.
Nos "mil dias de governo", os grandes ausentes foram os 600 mil mortos.
Em vez disso, o presidente preferiu combater as formas comprovadas de combate à Covid-19, desculpando-se com seus brucutus por não ter podido virar a mesa.
Por Reinaldo Azevedo
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